Arquivo mensal: Julho 2016

Nem só de pão vive o homem

índiceManuela Ferreira Leite, Expresso

O recente êxito do futebol português no Campeonato Europeu reuniu um generalizado e consensual sentimento de genuína alegria e orgulho, dificilmente repetível a propósito de qualquer outro sucesso nacional talvez por este desporto ser provavelmente o maior fenómeno mundial de arrastamento de massas. Mas a intensidade da explosão das manifestações ocorridas também se justifica pelas nossas características. Nós temos uma imensa dificuldade em acreditar em nós próprios e nas nossas capacidades e raramente confiamos naqueles que ainda não foram  reconhecidos por terceiros, o que acontece em variados domínios. Qualquer sucesso é sempre uma surpresa, não uma certeza; é um milagre, não o resultado de um árduo trabalho. Assim, os festejos funcionam como uma catarse nacional, libertadora de receios e inseguranças acumuladas que minam a nossa autoestima.

Aprendamos a lição para nos habituarmos a valorizar os talentos e a estimulá-los desde o princípio, porque pior do que nos enganarmos na nossa percepção é desperdiçarmos valores porque não os descobrimos a tempo.

E, já agora, o que mais me incomoda é que nesta cultura do “útil” que nos rodeia, já se comece a ouvir falar do valor económico desta alegria, não sei se mensurável pelos litros de cerveja ou pelo número de comprimidos contra a rouquidão. Deixem-nos festejar sem preço.

Ter uma vida

isabel-leal-rsh-2011-230Isabel Leal, psicóloga, CARAS

“Tem uma vida!” ou “arranja uma vida!” é uma expressão que se vai ouvindo e que quer dizer “não chateies”. Fica bem aplicada em situações em que alguém valoriza excessivamente um detalhe, mostra hiper preocupação em relação a terceiros ou se leva demasiado a sério. Claro que toda a gente tem uma vida: boa, má, monótona, incrível, cheia, desafiante, triste, fabulosa, vazia, apaixonante, frustrada, etc.

Seja como for que adjetivemos a nossa vida, o que felizmente muda com o tempo, as experiências e elaborações que vamos conseguindo, o facto é que temos a extraordinária e improvável circunstância de sermos. Neste caso, como em todos, há diferentes perspectivas, pelo que não serão poucos os que acham que não faz sentido gastar superlativos a gabar a existência, já que é o único estado que conhecemos. Muitos outros nem têm como colocar a questão, que nunca os visitou nem inquietou, e da existência têm uma consciência moderada quando não apenas pragmática e literal. Alguns, no entanto, genuinamente sentem que a existência merece celebração. Sentem que a existência, para lá de todos os constrangimentos, vicissitudes e contratempos é, em si mesma, uma oportunidade e que por isso o tempo disponível, as diferentes fases da vida, os vários acidentes de percurso, os encontros felizes, os amores vividos, os laços estabelecidos, as pequenas e grandes perdas e conquistas, devem ser saboreados com respeito e a devoção que têm todas as experiências únicas e irrepetíveis.

Ter uma vida é o oposto da metáfora de outros tempos da vizinha sempre debruçada à janela a ver o que os outros fazem e como fazem, e a partir daí ter assunto e ser um ponto de interesse.

Ter uma vida quer dizer envolver-se naquilo que nos diz respeito e ao mundo que nos concerne e poder distinguir o essencial do acessório, o relevante do circunstancial, o que deixa lastro e tem consequências do que é efémero e pontual.

Ter uma vida quer dizer ser o protagonista da sua própria história, assumir as responsabilidades por inteiro e, a partir desse lugar, construir sentidos, uns próprios, outros partilhados. É definitivamente bom ter uma vida!

para glória do Seu nome

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agradecimento de Fernando Santos

“Em primeiro lugar e acima de tudo, quero agradecer a Deus Pai por este momento e tudo aquilo da minha vida. Quero deixar uma palavra ao especial ao presidente [Fernando Gomes, presidente da Federação Portuguesa de Futebol] pela confiança que sempre depositou em mim. Não esqueço que comecei com um castigo de oito jogos, a toda a direção e aos que viveram comigo estes meses. Aos jogadores, quero dizer mais uma vez que tenho enorme orgulho em ter sido seu treinador a estes e aqueles que não estiveram presentes, também é deles esta vitória.”

“A toda a direção e a todos os que viveram comigo estes meses. Aos jogadores, dizer mais uma vez que tenho um enorme orgulho em ter sido o seu treinador. A estes e aqueles que aqui não puderam estar presentes. Também é deles esta vitória. O meu desejo pessoal é ir para casa, dar um beijo do tamanho do mundo à minha mãe, mulher, filhos, ao meu neto, ao meu genro e minha nora e ao meu pai, que, junto de Deus, está seguramente a celebrar.

“A todos os amigos, muitos deles meus irmãos, um abraço muito apertado pelo apoio mas principalmente pela amizade. Por último, mas em primeiro, quero ir falar com o meu maior amigo e sua mãe, dedicar-Lhe esta conquista e agradecer por me ter convocado e agradecer por me ter concedido o dom da sabedoria, da perseverança e humildade para guiar esta equipa, com Ele a ter-me iluminado e guiado. Espero e desejo seja para glória de Seu nome.

Espaço para a profecia

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Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XIII do Tempo Comum, homilia

Queridos irmãs e irmãos,

A Palavra de Deus também funciona como um espelho. Como um espelho onde nós encontramos histórias com as quais nos podemos identificar, histórias que trazem uma profundidade de sentido até à nossa vida, nos colocam perguntas, colocam-se a conversar com aquilo que somos, aquilo que vivemos, aquilo que trazemos dentro de nós. É uma espécie de mosaico. É sempre uma narrativa muito ampla, muito aberta mas capaz de tocar pontos concretos do itinerário que cada um de nós, cada um de nós sem exceção, está a fazer. Este conjunto de histórias, à maneira de um repositório, acaba por traduzir de forma muito concreta aquela que é a vontade de Deus inspirar a nossa vida, transformar, transfigurar, iluminar, reconciliar profundamente a nossa vida.

A primeira história é aquela do profeta Elias e do profeta Eliseu. É muito belo porque o profetismo não tem a ver com a família, o profetismo acontece de surpresa, Deus manifesta-se na vida de forma surpreendente. E é importante estarmos abertos para as surpresas de Deus. O modo como Deus vai entrar na vida de cada um de nós é um modo único, é um modo diferente. É importante cada um de nós estar aberto para essa surpresa.

Eliseu estava com os seus bois e o seu arado a trabalhar na terra, as expetativas dele seriam continuar ali, e passa o profeta Elias e tira-lhe a capa. Isto é, desafia-o a começar um destino novo com o qual ele não contou. E então, Eliseu faz um gesto de grande beleza: mata as juntas de bois e com a madeira do próprio arado faz um banquete para os seus e despede-se, e começa um tempo novo de vida.

Mas, ele quer começar esse tempo novo de vida com um momento de dádiva, transformando aquilo que tem numa dádiva, numa oferta aos outros. Isto para nós é um desafio muito grande, porque nem sempre aquilo que temos nós conseguimos transforma-lo em dádiva, conseguimos transforma-lo em oferta, em lugar de encontro, em potenciador da relação. Mas, o que temos são apenas coisas, são apenas bois e são apenas arados. Ser capaz de transformar os bois e arados numa festa é alguma coisa para a qual Deus desafia cada um de nós. No fundo, o que é que fazemos com aquilo que possuímos? E como é que sentimos que estamos a ser chamados?

Nós somos um povo de profetas. Então, na vida de cada um de nós tem de haver espaço para a profecia. Não são apenas: ah, a madre Teresa de Calcutá é uma grande profeta, Jean Vanier é um grande profeta. Sim, sem dúvida são vozes proféticas mas o que Deus quer é um povo de profetas. Isto é, cada um de nós, no seu espaço, no seu território existencial possa fazer acender a profecia. Como é que nós fazemos acender a profecia? A profecia é sempre um gesto disruptivo, é sempre um gesto novo, é sempre um gesto capaz de trazer a força do Espírito Santo.

Outra imagem muito forte, e ao mesmo tempo de grande realismo, é aquela que nos é oferecida por S. Paulo na Carta aos Gálatas. S. Paulo explora aqui uma coisa que ele vai trabalhar muito também noutras epístolas, que é esta: cada um de nós experimenta princípios contraditórios dentro de si. Que ele resume em dois: o princípio da carne e o princípio do Espírito. O princípio da carne leva-nos para um lado, aquilo que é o Espírito em nós leva-nos para outro, e cada um de nós experimenta o conflito, experimenta a dificuldade de ser. Tanto assim que S. Paulo noutra carta vai dizer isto: “Quem me libertará deste corpo de morte? Porque eu não faço aquilo que acredito, mas acabo por fazer aquilo que odeio, aquilo que não quero.” E nós sabemos que é assim. Tantas vezes não fazemos aquilo que achamos que é o bem, aquilo que acreditamos que é o bem e acabamos por ficar escravos apenas da nossa carne e da nossa vontade e vivemos esta contradição interna. S. Paulo dá-nos este retrato. Quer dizer, Deus sabe aquilo que nós vivemos, Deus sabe o que está em cada um de nós, Deus conhece-nos a fundo. E, nesse sentido, esta contradição humana, esta dificuldade de viver, de ser, que cada um de nós experimenta é mesmo assim. Contudo, a palavra de Paulo é esta: “Não podemos desistir de dar na nossa vida prioridade ao Espírito. Não podemos desistir de fazer experiência de liberdade.” E às vezes para nós a liberdade mais difícil é a liberdade face ao nosso “eu”, face ao nosso ego. Porque o nosso “eu”, às vezes, tem exigências tirânicas; o nosso “eu”, às vezes, é uma prisão que nos prende. Nós temos de ouvir a voz do nosso eu, mas ao mesmo tempo não podemos ficar submissos a essa voz. Temos de ter uma liberdade, temos de experimentar um desapego face às exigências do nosso eu, na nossa vontade, nas nossas necessidades. Experimentar uma liberdade, um espaço de liberdade. E é essa liberdade, esse desapego, essa relativização de nós mesmos que também cria espaço para a liberdade do Espírito, para a criatividade do Espírito na nossa vida.

O Evangelho de hoje também é uma sucessão de imagens com as quais nos temos de confrontar. A primeira é esta: Jesus ia a passar na peregrinação de Jerusalém, os discípulos vão preparar-lhe um lugar na Samaria, mas como os samaritanos odeiam os judeus quando sabem que Jesus vai para Jerusalém fecham-lhes a porta. E os discípulos dizem: “Senhor, queres que mandemos cair fogo do céu para queimar esta gente dura de coração?” E Jesus diz: “Não, vamos para outro lugar.” Reparem a forma como Jesus ultrapassa o conflito. Às vezes nós ficamos presos a lutas que não vão a lado nenhum, às vezes nós ficamos a combater por causas que só aumentam a violência, que já não dão possibilidade de encontro e o que é belo é esta sabedoria do Evangelho que diz: “Não, vai para outro lugar. Vai-te embora, desiste disso. Tu não vais mudar a rixa, o conflito entre os samaritanos e os judeus. Começa uma outra coisa, vai para outro sítio.” E este ir embora é, no fundo, também uma possibilidade de começar uma coisa nova.

Aquele discípulo que vem dizer: “Senhor, seguir-te-ei para onde quer que fores.” E Jesus diz-lhe: “As raposas têm as suas tocas, as aves os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça.” Isto é, nós seguimos Jesus, cada um de nós segue Jesus mas não é para chegar a um lugar, não é para ter um prémio, não é para entrar num parque de estacionamento, não é para ficar parado, não é para ficar seguro. A religião não é uma seguradora, não é a ‘Fidelidade’, não é a ‘Tranquilidade’, não é uma seguradora. A religião é um clube de risco, é para quem, de facto, quer arriscar. E, muitas vezes, precisamente os crentes, precisamente aqueles que se abandonam, aqueles que aceitam Deus têm de viver no nada, no Deus dará, no Deus dará. Têm de fazer a experiência da Providência, têm de sentir que Deus não está a por a mão por baixo, têm de sentir o silêncio de Deus. Têm de sentir que a vida é um risco, é um acreditar. E o acreditar não é: eu somo dois mais dois e então percebo que é assim. Não, eu não consigo somar nada, mas acredito que é assim. Este atirar a vida para diante é a confiança daqueles que seguem Jesus.

Aquela palavra daquela pequena história é uma palavra que para nós nos desassossega porque aquele homem veio dizer a Jesus: “Senhor, eu sigo-Te mas deixa-me primeiro ir despedir-me dos meus pais.” É um pedido honesto, é um pedido certo, até o profeta Elias permitiu que Eliseu se fosse despedir da sua família. Mas porque é que Jesus diz: “Não, não deixa lá isso. Quem coloca as mãos na charrua não pode olhar para trás senão deixa de ser digno de Mim.” Há aqui um paradoxo claramente, Jesus usa também metáforas paradoxais. Mas o que é que Jesus nos quer dizer? Nós temos de ser capazes de experimentar na nossa vida a prioridade de Deus, a prioridade do Reino de Deus. Porque é muito difícil amar a Deus sobre todas as coisas, é muito difícil. É muito difícil colocar Deus em primeiro lugar na nossa vida. Porque é que é difícil? Porque há tantas coisas que são importantes, há tantas coisas igualmente necessárias. E às tantas nós vivemos a adorar tantos deuses, nós vivemos presos a tantas coisas sem a capacidade de perceber qual é a coisa mais importante, qual é o passo que nós temos de dar. Por isso, Jesus diz: “Quem tiver lançado as mãos ao arado e olhar para trás não serve para o Reino de Deus.” Isto é, temos que nos projetar para diante, temos de acreditar que aquilo que o Senhor pede a cada um de nós é, de facto, aquele lugar de encontro e de reencontro. Mesmo que nós não estejamos a ver como é que as coisas se vão passar, como é que vão ocorrer. Maria também não sabia quando o anjo veio ter com ela. Mas, Deus pode, Deus faz, Deus é capaz, a Deus nada é impossível. E é nesta Palavra, é nesta experiência que nós temos de ancorar a nossa vida.

Vamos assim aceitar receber esta Palavra, expor-nos a ela e que este conjunto de histórias correspondam a outros tantos desafios concretos capazes de dialogar com aquilo que nesta hora nós estamos a viver.

Um coração maravilhoso

índiceCardeal Gianfranco Ravasi, Avvenire

«Acredito que um dia, o teu dia, meu Deus, avançarei para ti com passos titubeantes, com todas as minhas lágrimas na palma da mão, mas também com este coração maravilhoso que nos deste, este coração demasiado grande para nós porque é feito para ti.»

«Amarás o Senhor teu Deus com todo o coração…» Todos recordamos este apelo do Deuteronómio (6,5), o quinto livro da Bíblia. O Catecismo da Igreja Católica explica que «a tradição espiritual da Igreja incide também no coração no sentido bíblico de “fundo do ser” em que a pessoa se decide ou não por Deus» (n. 368).

O profeta Jeremias, por seu lado, estava certo de que Deus quer «escrever a sua lei no coração» dos homens (31,33). O “coração” não é reduzível, portanto, ao sentimento, mas é, na prática, a nossa consciência, a nossa alma, aberta ao infinito, ao eterno, ao mistério divino. É isto que exprime sugestivamente Jacques Leclerq (1891-1971), teólogo moral belga, precursor do Concílio Vaticano II, nas palavras intensas e espirituais que citámos acima.

Na Bíblia denuncia-se o coração «endurecido», quase petrificado, que não pode, por isso, dilatar-se a abraçar Deus, os grandes horizontes, o respiro da beleza e da verdade. Repete-se muitas vezes a célebre frase dos “Pensamentos” de Pascal: «O coração tem as suas razões que a razão não conhece» (n. 277). A vastidão e a liberdade da alma humana não se comprimem na, ainda que gloriosa, caixa craniana.

Diante de Cristo, «manso e humilde de coração», tomamos a oração de um conhecido escritor sueco, Pär Lagerkvist (1891-1974): «Tem-me, Senhor, com a tua mão misteriosa e não me abandones. Conduz-me sobre luminosas pontes que atravessam o vertiginoso abismo, onde reténs prisioneira a treva».

traduzido do italiano por Rui Jorge Martins, Pastoral da Cultura, 01.07.2016