Arquivo mensal: Janeiro 2017
Os mártires mentais
Miguel Tamen, Observador, 27.1.2017
Não há por estes dias valentão ou -tona que não ache que está a ser politicamente incorrecto e por isso meritório naquilo que diz em público. A quase totalidade das pessoas que fala em público orgulha-se de dizer coisas com que o público não concorda; e o público que as ouve orgulha-se de concordar com quem não concorda com ele.
No público espanta a docilidade de quem vê as suas convicções mais íntimas insultadas; e nos insultantes nunca lhes ocorrer não serem caso isolado. As duas situações fazem sorrir, embora não se perceba muito bem quem tenha melhor motivo para o fazer; desde logo porque ao público nunca acontece imaginar que possa estar a ser insultado; e aos insultantes nunca acontece perceber que a sua valentia oral se tornou um modo de vida muito partilhado.
Os que acham que são incorrectos naquilo que dizem imaginam-se em geral cruzados contra a estupidez humana universal e o preconceito. Estimula-os a fantasia secreta de um estado policial que os persegue com denodo; mas naturalmente o estado tem mais que fazer; e eles no fundo sabem que não têm grande coisa a temer. Dizer a verdade ao poder é uma actividade plácida, como a dos bobos e a das videntes. Não obstante, é assim que a maioria das pessoas se acha membro de uma minoria de mártires mentais e se satisfaz com a ideia de que sempre que abre a boca se está a sacrificar pela maioria no altar das enormidades que diz e pensa.
Não existe porém nenhuma minoria, visto que a ninguém ocorre admitir que o que diz ou pensa irá ser alguma vez examinado por alguém; ou que as suas afirmações serão tratadas como afirmações. A concordância com terceiros mostra-se antes no modo como unanimemente se declara que as convicções de terceiros nos são completamente indiferentes e as nossas opiniões são completamente únicas. Estas unanimidades são conhecidas: existem a respeito da inteligência, da beleza e do conhecimento. A marca infalível do estúpido é achar que é inteligente; e a marca infalível do muito estúpido é achar que faz parte de uma reduzida minoria de pessoas inteligentes.
Surpreende em particular que os alvos da incorrecção dos diversos valentões concordem quase sempre com as enormidades de quem os insulta, e se confessem também mártires mentais ao serviço da incorrecção. Porque naturalmente os alvos também se imaginam minorias; e assim participam na ideia maioritária de que a enormidade é o modo normal de lidar com as outras pessoas. Não será o caso de apreciarem a maneira como as suas convicções são escarnecidas: é antes o caso de no fundo não acharem que as suas convicções podem ser objecto de escárnio. As suas convicções, como as dos insultantes, são uma mera coisa mental; são por isso à prova de enormidades.
Conhecer e Amar
pe. Vitor Gonçalves, pároco de S. Domingos – Lisboa, Voz da Verdade, 15.1.2017
“Eu não O conhecia, mas foi para Ele Se manifestar a Israel que eu vim baptizar na água.” Jo 1, 31
É curioso observar as pessoas nas nossas deslocações pela cidade. O telemóvel tornou-se um prolongamento da mão e talvez no futuro seja implantado logo à nascença! As cabeças debruçadas sobre um écran causam as situações mais caricatas, e até perigosas, que nem ousávamos imaginar. É importante reconhecer: a nova droga de consumo generalizado é “estar ligado”, “saber o que acontece”, “dar a conhecer a mais pequena insignificância”. Conhecer e ser conhecido são o novo alimento, capaz de encher de sentido uma experiência e uma vida. O que está longe torna-se mais importante do que o que está perto, e vive-se à distância! Quem vai connosco pouco interessa porque o que está longe é mais urgente! O máximo conhecimento acaba por eliminar a proximidade, e o desprezo por quem temos à nossa frente e ao lado matam a comunhão e a comunicação!
A sede de ser conhecido e de julgar que conhecemos os outros pode revelar um enorme egocentrismo. Conhecer não é dominar nem absorver, mas abrir-se e sair de si. Conhecer alguém cria um laço não só intelectual mas da ordem do amor. Por isso gosto tanto desta mútua implicação entre conhecer e amar, cada um a fazer crescer o outro! Admira-me a repetição de João Baptista ao dizer por duas vezes que não conhecia Jesus. Era familiar, mas não conhecia a sua identidade divina. Só se conhece Deus por revelação ou por testemunho. Jesus não se fez homem para ser conhecido pelas suas obras humanas e sociais, como benfeitor ou herói da humanidade. Veio ao mundo como Filho de Deus. E ainda que muitos fiquem no homem excepcional, na sua doutrina e obras que são verdadeiramente inspiradoras, conhecê-lo humano e divino implica o dom da fé, que transforma a nossa vida e a projecta na eternidade.
Quando João Baptista testemunha que conhece Jesus e o apresenta como Filho de Deus, a sua missão parece estar completa e ele pode diminuir. Mais tarde enviará discípulos com uma pergunta, a que Jesus responderá apontando os sinais messiânicos de libertação e salvação. E João escreverá a assinatura no seu testemunho com o sangue. Hoje, quem apontará com o dedo o Filho de Deus aos nossos contemporâneos, senão os que dizemos acreditar n’Ele? E isso não passará pela modificação dos nossos modos de consumo, pelo questionamento de hábitos pessoais e sociais que escravizam e exploram, pelo compromisso em prol da justiça e da dignidade de todos, em especial os mais pobres, pelo testemunho de uma fé feliz e criadora de fraternidade? Assumir as consequências do conhecimento e do encontro de Jesus Cristo pode não dar-nos 5000 amigos nas redes sociais, mas certamente nos fará mergulhar mais nos olhos uns dos outros!
Epifania
pe. Vitor Gonçalves, pároco de S. Domingos – Lisboa, Voz da Verdade, 8.1.2017
“Regressaram à sua terra por outro caminho.” Mt 2, 12
Quem nunca se maravilhou com o episódio dos Magos que vieram adorar Jesus? Temos a sua peregrinação pela casa até chegar ao presépio, as “cabalgatas de reyes” que a tradição espanhola promove, a curiosidade científica em torno da estrela/cometa/conjunção de planetas, e até a tradição de que as suas relíquias se encontram na catedral de Colónia, na Alemanha. Na literatura, na escultura e na pintura são inúmeras as suas representações. Não foi o quadro “Adoração dos Magos” de Domingos Sequeira capaz de reunir contributos no valor de 600 mil euros para a sua aquisição? O que nos maravilha tanto neste episódio de 12 versículos que o evangelista Mateus nos conta?
Creio que o índio brasileiro, com o seu toucado de penas, talvez da tribo tupinambá, pintado por Vasco Fernandes como rei Baltazar na sua “Adoração”, parte do retábulo da Sé de Viseu, ilumina uma resposta. Maravilha-nos o que ainda não conhecemos, aquilo que está para lá das fronteiras. Aquilo que tememos por ainda não conhecer também nos atrai e desinstala. Maravilha-nos o caminho dos magos, seguindo uma estrela que parece brincar com eles, indo meter-se na boca do lobo e até aí receberem um novo sinal. Maravilham-nos os presentes, evocação de uma riqueza que é mais essencial do que material. Maravilha-nos o Menino e sua Mãe que eles encontram, e a humildade de O reconhecerem como rei. E até nos maravilha o novo caminho do seu regresso. Como eles, ninguém volta aos mesmos caminhos depois de encontrar Jesus!
Importa que os caminhos valham mais do que as fronteiras. Se as delimitações marcam territórios e identidades, elas são chamadas a ser também lugar de encontro, de comunicação, de descoberta e abertura. Quando se impõem pela força, quando isolam e atrofiam o desejo de comunhão, são um dos fracassos da fraternidade humana. Para além das fronteiras de rios ou montanhas, outras são obstáculo maior, como as económicas, fruto de egoísmos individuais e colectivos. Que fronteiras mantemos encerradas na vida e no pensamento pessoal e comunitário?
Os Magos romperam as fronteiras do messianismo judaico. São pagãos que reconheceram Jesus como Salvador, muito antes dos próprios judeus. Desapareceram silenciosamente para dar lugar a todos os que buscam sentido e plenitude de vida. E falam-nos da maravilhosa aventura que é abrirmo-nos ao outro, vencendo os medos que aprisionam, derrotando os egoísmos que estrangulam com o excesso de coisas. Não são eles os padroeiros de todos os que procuram o que vale a pena adorar?
Rumo à unidade do continente europeu
Perante a chegada de emigrantes, ultrapassemos o medo!
O encontro organizado pela Comunidade de Taizé no final de Dezembro de 2016 em Riga reuniu jovens de toda a Europa. Vindos tanto de países membros da União Europeia como de países que dela não fazem parte, fizeram a experiência da fraternidade que pode unir pessoas de todo o continente.
Este encontro nórdico permitiu também aos jovens de outras regiões descobrir o rosto báltico da Europa, uma das faces da bela diversidade de povos, cada um com a sua história, as suas tradições, as suas particularidades. Um futuro de paz necessita que os Europeus alarguem a sua consciência, de forma a fazerem crescer uma solidariedade entre todos os países que constituem o continente. É fundamental multiplicar contactos e formas de partilha e de colaboração.
A construção da unidade do continente não pode ser efectuada sem que, em primeiro lugar, o diálogo e a escuta se instaurem entre os países: os da União Europeia e os outros, os da Europa Ocidental e os da Europa Central e Oriental, os do Norte e os do Sul. Cada país, pequeno ou grande, deve poder fazer ouvir a sua voz, com a sua especificidade. O esforço para compreender o interior da consciência dos outros é condição para que as atitudes, por vezes discordantes, sejam melhor decifradas e não suscitem reações motivadas somente pela emoção.
Poderão os Europeus descobrir que as suas raízes comuns são bem mais profundas do que as suas divergências?
A Europa desenvolveu um impulso de reconciliação após a Segunda Guerra Mundial. Mais tarde, depois da queda do Muro de Berlim, conheceu um novo período de busca da unidade. Muitos jovens pensam que a Europa não continuará a edificar-se sem aprofundar este ideal de fraternidade. Aspiram a uma Europa não apenas unida no interior de si mesma, mas aberta aos outros continentes e solidária com os povos que atravessam grandes provações.
Em todo o mundo, há mulheres, homens e crianças que são obrigados a abandonar a sua terra. É o desespero que cria neles a motivação para partir. É mais forte do que as barreiras erguidas para travar a sua marcha. As manifestações de inquietação nas regiões ricas não desmotivam a deixar o seu país aqueles que lá vivem sofrimentos intoleráveis.
Alguns afirmam: «Não podemos acolher todas as pessoas». Outros, pelo contrário, consideram que os movimentos de populações a que assistimos são inevitáveis, pois resultam de situações insuportáveis. Procurar regular estes movimentos é legítimo e necessário. Abandonar os refugiados às mãos de traficantes, arriscando a sua morte no Mediterrâneo, contradiz todos os valores humanos.
Não é possível ignorar a parte de responsabilidade dos países ricos nas feridas da História e nos distúrbios ambientais que provocaram e continuam a provocar múltiplas migrações, desde África, Médio Oriente, América central, e ainda de outras regiões. Hoje, algumas escolhas políticas ou económicas dos países ricos continuam a provocar instabilidade noutras regiões. As sociedades ocidentais precisam de ir além do medo do estrangeiro, das diferenças culturais, e corajosamente começar a moldar o novo rosto que lhes estão a dar já as migrações. Ainda que verdadeiras dificuldades estejam associadas à chegada de migrantes, a sua vinda pode ser uma oportunidade para estimular a Europa a ser mais aberta e solidária.
Existem locais em que o número de pessoas que chegam é tal que os habitantes se sentem assoberbados e exaustos: um fardo demasiado pesado permanece sobre os seus ombros, pois os países europeus ainda não conseguem assumi-lo em comum. Porém, muitos oferecem um acolhimento generoso aos refugiados e fazem a experiência de que o contacto pessoal desenvolve frequentemente uma bela fraternidade recíproca.
Nada substitui os contactos pessoais. Esta verdade aplica-se especialmente em relação ao Islão. Muçulmanos e cristãos podem procurar gestos para testemunhar juntos a paz e rejeitar em conjunto a violência exercida em nome de Deus. Há 800 anos, no seu desejo de contribuir para a paz, Francisco de Assis não hesitou em ir ao encontro do Sultão do Egipto. A Madre Teresa consagrou a sua vida aos mais pobres, independentemente das suas religiões.
Os países europeus que se queiram isolar não terão futuro. Entre europeus, como perante os refugiados, a fraternidade é o único caminho para preparar a paz.
fotos de Taizé
A não-violência: um estilo de vida
Mensagem do Papa para o 50º Dia Mundial da Paz
1. No início deste novo ano, formulo sinceros votos de paz aos povos e nações do mundo inteiro, aos chefes de Estado e de governo, bem como aos responsáveis das Comunidades Religiosas e das várias expressões da sociedade civil. Almejo paz a todo o homem, mulher, menino e menina, e rezo para que a imagem e semelhança de Deus em cada pessoa nos permitam reconhecer-nos mutuamente como dons sagrados com uma dignidade imensa. Sobretudo nas situações de conflito, respeitemos esta «dignidade mais profunda» e façamos da não-violência ativa o nosso estilo de vida.
Esta é a Mensagem para o 50º Dia Mundial da Paz. Na primeira, o Beato Papa Paulo VI dirigiu-se a todos os povos – e não só aos católicos – com palavras inequívocas: «Finalmente resulta, de forma claríssima, que a paz é a única e verdadeira linha do progresso humano (não as tensões de nacionalismos ambiciosos, nem as conquistas violentas, nem as repressões geradoras duma falsa ordem civil)». Advertia contra o «perigo de crer que as controvérsias internacionais não se possam resolver pelas vias da razão, isto é, das negociações baseadas no direito, na justiça, na equidade, mas apenas pelas vias dissuasivas e devastadoras». Ao contrário, citando a Pacem in terris do seu antecessor São João XXIII, exaltava «o sentido e o amor da paz baseada na verdade, na justiça, na liberdade, no amor». É impressionante a atualidade destas palavras, não menos importantes e prementes hoje do que há cinquenta anos.
Nesta ocasião, desejo deter-me na não-violência como estilo duma política de paz, e peço a Deus que nos ajude, a todos nós, a inspirar na não-violência as profundezas dos nossos sentimentos e valores pessoais. Sejam a caridade e a não-violência a guiar o modo como nos tratamos uns aos outros nas relações interpessoais, sociais e internacionais. Quando sabem resistir à tentação da vingança, as vítimas da violência podem ser os protagonistas mais credíveis de processos não-violentos de construção da paz. Desde o nível local e diário até ao nível da ordem mundial, possa a não-violência tornar-se o estilo caraterístico das nossas decisões, dos nossos relacionamentos, das nossas ações, da política em todas as suas formas. Continuar a ler A não-violência: um estilo de vida