Arquivo mensal: Maio 2017

Compaixão

Clara Soares, jornalista e psicóloga, Visão, 28.maio.2017

James poderia ter sido apenas mais um miúdo pobre, com fome, condenado a crescer numa família disfuncional e a viver à margem até final dos seus dias numa pequena aldeia da Califórnia. Tinha 12 anos quando entrou numa loja de magia. A misteriosa mulher que o atendeu foi o seu porto de abrigo: durante um mês e meio, ensinou-lhe “truques” que lhe mudariam a vida. Meio século depois, o prestigiado neurocirurgião dedica-lhe o livro Dentro da Loja Mágica (Lua de Papel, 230 págs, €14,90).

Nesta obra, o médico explica como superou a adversidade e alcançou o sonho de vencer na vida através de técnicas milenares – relaxando o corpo, acalmando a mente, visualizando o que desejava. James teve tudo – tornou-se milionário – e quase tudo perdeu, na bolha das dot.com. Restavam-lhe ações de uma empresa que valiam 30 milhões de euros, aplicadas num fundo universitário. Apesar de ter dívidas de 3 milhões de euros, Doty decidiu doar todas essas ações ao fundo, aplicando a quarta técnica que a tal mulher misteriosa lhe ensinara: abrir o coração. Hoje, continua a acreditar que a generosidade e a compaixão transformam o mundo. Decidiu fundar o Centro de Investigação e Educação da Compaixão e Altruísmo (CCARE), apoiado pelo Dalai Lama. Aos 61 anos, James vive cada dia como se fosse único. Porque é mesmo.

  • Dorme pouco por natureza?

Por norma, costumo precisar de quatro a seis horas. Mas, se estiver realmente muito cansado, sou pessoa para dormir 12 horas seguidas. Outras vezes opto por fazer uma pequena sesta.

  • É raro encontrar médicos e investigadores que tenham um discurso próximo do místico.

Se pensarmos no que nos torna humanos, seja através da religião, da cultura ou da sociedade, chegamos sempre à compaixão. Deve haver uma razão para isso. Como cientista, sou ateu. Não acredito num Deus que olha por mim nem que existe algo mais para além do presente. Tal não impede que haja uma maioria a acreditar nisso, nem que eu reconheça a beleza da vida e a capacidade para amar e cuidar que as pessoas têm. Fascina-me como os líderes filosóficos e religiosos estão disponíveis para motivar as pessoas a serem melhores. Os budistas, por exemplo, usam técnicas validadas pela ciência para melhorar a saúde física e mental.

  • Diz que o coração é um órgão inteligente. Quer explicar isso um pouco melhor?

Começa a provar-se cientificamente o que diziam os líderes espirituais: a ligação entre a mente e o coração, que está ligado ao nervo vago, situado entre a base da cabeça e o tronco cerebral. Estes dois órgãos comunicam entre si através do sistema nervoso autónomo, que é formado por dois sistemas, o simpático e o parassimpático. Continuar a ler Compaixão

Humor

«Com frequência somos demasiado áridos, indiferentes e desinteressados, e em vez de transmitir fraternidade, transmitimos mau humor, insensibilidade e egoísmo. E com mau humor, insensibilidade e egoísmo não se pode fazer crescer a Igreja», afirmou o papa em 2013.

Poucos dias antes do Natal do ano seguinte, no encontro com os cardeais e colaboradores da Cúria Romana, Francisco integrou no «catálogo» das enfermidades da estrutura da Santa Sé a «doença da cara fúnebre, ou seja, das pessoas rudes e amargas que consideram que, para se ser sério, é preciso pintar o rosto de melancolia, de severidade e tratar os outros – sobretudo aqueles considerados inferiores – com rigidez, dureza e arrogância».

«Um coração cheio de Deus é um coração feliz que irradia e contagia com a alegria todos aqueles que estão ao seu redor: disso nos damos conta imediatamente! Assim, não percamos aquele espírito jubiloso, bem-humorado e até auto-irónico, que faz de nós pessoas amáveis, mesmo nas situações difíceis. Quanto bem nos faz uma boa dose de são humorismo», declarou.

Como “receita” para essa maleita, o papa prescreveu a oração de S. Tomás More – que afirmou rezar todos os dias -, onde se lê: «Dai-me, Senhor, o sentido do bom humor. Concedei-me a graça de compreender uma brincadeira para descobrir na vida um pouco de alegria e partilhá-la também com os outros». Provavelmente inspirado por estas palavras, e também por uma homilia que Francisco proferiu poucos meses depois de ser eleito, em maio de 2013, dizendo que «os cristãos melancólicos» têm «cara de vinagre», D. Juan del Río, arcebispo castrense de Espanha, propõe um «decálogo para viver a alegria de ser cristão»:

«1. O Evangelho cativa pelo sorriso e o gozo do discípulo missionário.
2. O humor faz-nos humildes e recorda o pouco que somos nesta vida.
3. O bom carácter facilita deixarmo-nos surpreender por Deus a cada dia.
4. O humor fomenta as boas relações e reduz os conflitos.
5. Sem vivacidade de ânimo perdemos perspetiva e escapam-se muitas coisas.
6. O riso, o engenho, é uma arma contra o orgulho dos poderosos.
7. Sorrir é bom para o corpo e alma, atrai e dá serenidade.
8. A hospitalidade pede: acolhimento gozoso, sorriso franco e doses de humor.
9. Estar contente abre a mente e o coração para a oração e a ação.
10. A alegria cristã é corajosa diante das dificuldades e mesmo diante do martírio».

fonte: Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura

A beleza da vulnerabilidade

Ana Luísa de Castro Oliveira, psicóloga, psicologia.pt

Estamos constantemente sujeitos a situações que implicam um maior ou menor grau de vulnerabilidade, e por vezes colocamo-nos noutras tantas que nos deixam ainda mais vulneráveis. A vulnerabilidade é, assim, como que uma condição inerente à nossa condição humana, e, mesmo assim, achamos que podemos fugir dela.

Porquê?!? Porque não queremos estar vulneráveis. Porque, geralmente (e não erradamente), associamos a vulnerabilidade ao medo, a ter dúvidas, a estar em risco, exposto. Mas porque também associamos a vulnerabilidade a fraqueza, a angústia e sofrimento… coisas que não queremos sentir.

Nos seus estudos, Brené Brown foi percebendo que, muitas vezes, face à vulnerabilidade, tendemos a tentar “adormecê-la” em nós. E é aqui que alerta para o facto de não ser possível “adormecermos” selectivamente as emoções, ou seja, não nos é possível escolher não sentir as coisas “más”, sem que estejamos a negligenciar também outras emoções e afectos prazerosos. Ao tentarmos afastar-nos de sentimentos fortes como a vulnerabilidade, a dor, a vergonha, o sofrimento, a desilusão, estamos também a adormecer em nós a possibilidade de sentir alegria, gratidão, felicidade… o que nos leva, invariavelmente, a sentirmo-nos ainda mais infelizes, o que por sua vez nos faz sentir vulneráveis, gerando-se um ciclo vicioso.

Ao analisar as respostas às entrevistas que foi realizando, Brené Brown confirmou que, se por um lado, a vulnerabilidade é o centro da vergonha e do medo, também é (espantem-se alguns) fonte de alegria, da empatia, de amor, do sentimento de pertença. E percebeu que as pessoas que se sentiam merecedoras desse amor e desse sentido de pertença (por oposição àquelas que se questionam constantemente se serão suficientemente boas para o merecer) tinham em comum quatro características: Coragem (de serem imperfeitas), Compaixão (com elas mesmas primeiro, e depois com os outros), Afinidade (estavam dispostas a abdicar de quem achavam que deveriam ser, para serem, de uma forma autêntica, quem realmente eram, o que é indispensável para a afinidade), e Vulnerabilidade.

Estas pessoas falavam da vulnerabilidade como sendo necessária (mas nem por isso mais confortável ou menos dolorosa) e mostravam-se dispostas a fazer algo para o qual não houvesse quaisquer garantias, para dizerem “amo-te” primeiro, para respirar fundo enquanto aguardavam o telefonema do médico depois de um exame delicado, estavam dispostas (e consideravam fundamental) a investir numa relação, que podia ou não resultar. Abraçavam completamente a vulnerabilidade, acreditando que o que as torna vulneráveis as torna também bonitas.

Do bom uso do fracasso

José Tolentino Mendonça, E, Expresso, 29.abril.2017

Como chegamos a ser o que somos? Por um trabalho longo e paciente, que decorre entre muita incerteza. E vem-me à cabeça o exemplo de Cézanne. Oseu pai, um próspero banqueiro de província, opunha-se a que o filho seguisse a vocação de pintor, pois considerava que isso colocaria em causa o seu futuro e o negócio familiar. Diga-se que o próprio Cézanne hesitava também. Perguntava-se a si mesmo se teria o talento necessário. Valeria a pena arriscar tudo o que era naquele caminho? Para satisfazer o pai, conclui o bacharelato e estuda Direito, mas sem abandonar dentro de si o seu sonho. O romancista Émile Zola, um seu amigo de infância, protesta com Cézanne contra tanta indecisão e pressiona-o para que vá viver para Paris. Cézanne acaba por aceder e ir ao seu encontro. Mas ao fim de uns meses é recusado na Escola de Belas Artes. Os académicos parisienses acham-no um colorista exagerado e pouco promissor. A verdade é que não o entendiam. Regressa então à Provença, devastado por aquela reviravolta, e recomeça a trabalhar no banco do pai. Dá que pensar esta história, e a forma contraditória que toma o caminho de um artista que revolucionou a pintura moderna. Por alguma razão é com ele que a pintura deixa de ser histórica para se tornar pessoal e íntima, centrada na batalha solitária do artista com a própria obra.

Há aquela misteriosa frase de T. S. Eliot: “Por vezes, ser um homem fracassado é em si mesmo uma vocação”. Pensamos pouco nisto: que papel na vocação de cada um de nós está reservado ao fracasso? Um dos livros mais extraordinários do cânone ocidental é consensualmente “Moby Dick”, de Herman Melville. O escritor escreveu-o aos trinta anos e foi um fracasso de tal ordem que ele se viu obrigado a pôr fim às suas expectativas literárias. “Moby Dick” foi declarado ilegível. Tinha uma arquitetura narrativa estranhíssima: tanto era uma aventura marítima, como um relato científico sobre baleias ou um tratado metafísico transbordante de pormenores e erudição. Mesmo para os leitores ingleses parecia uma floresta impenetrável, pois descrevia com um vocabulário rigoroso, assumidamente técnico, cada uma das partes de um barco e de toda a vida náutica. Não admira que os leitores, exasperados, se afastassem. E, contudo, nessa imensa catedral de palavras que é o romance “Moby Dick”, Melville reconfigurava a própria existência da linguagem e construía uma radical demanda interior. Aconteceu com ele o que frequentemente acontece connosco: a sua obra-prima começou por ser o seu maior fracasso.

“Estás a ouvir? — perguntou o principezinho. — Acordámos o poço e ele pôs-se a cantar…”. Não se espera que existam poços num deserto. O pequeno herói de Saint-Exupéry garante, porém, que “o que torna belo um deserto é que ele esconde um poço em algum lugar”. Resmungamos com a vida. Falta-lhe alguma coisa, nunca nada é perfeito, nada está acabado ou resolvido. É como se estivéssemos a jogar um jogo insolúvel: se temos o poço, falta-nos a corda; se temos a corda, falta-nos o balde; se temos a corda, o balde e o poço, falta-nos a força de ir até ao fundo da nascente buscar a água que nos dessedente. “O Principezinho” declara que não nos falta nada. Cada um de nós tem tudo o que precisa para experimentar a alegria. Não é um problema de conhecimento, é uma questão de olhar. Olharmos para o que somos e para o que nos rodeia com um coração simples, capaz de perceber o dom que nos habita. Pois, se encostarmos o ouvido até mesmo junto das nossas maiores derrotas compreenderemos que a nossa vida canta!

“Fátima”

Daniel Oliveira, Expresso Diário, 4.maio.2017

Um dia que os historiadores queiram compreender os vários países de que somos feitos deverão, entre muitas coisas, ver os filmes de João Canijo. Depois de “Sangue do meu Sangue”, “Fátima” consegue continuar a viajar pelas periferias do Web Summit e das startups com que nos enganamos para nos integrarmos numa ilusão de modernidade sem povo nem cultura. Em “Fátima”, como em quase tudo o que Canijo faz, não há nem o romantismo do intelectual urbano enfadado, nem o desrespeito anedótico do “kitsch”. Apenas e só a esmagadora honestidade de mergulhar na vida das pessoas sem outra vontade que não seja a de a ver e compreender. Na realidade, o filme oferece-nos, como ficção, uma aproximação muito mais rigorosa à realidade do que qualquer reportagem que alguma vez tenha lido sobre as peregrinações a Fátima. E isto resulta da forma como Canijo e os atores com que trabalha preparam os filmes. E, claro, do talento esmagador de Rita Blanco, Anabela Moreira e aquelas 11 mulheres.

Não sei se “Fátima” é um filme sobre mulheres ou sobre o arreigado catolicismo nacional. Talvez seja sobre as duas coisas, porque as duas se confundem totalmente, como a relevância primeira do culto mariano comprova – para a fé popular da maioria dos católicos Nossa Senhora é quase mais importante do que Jesus. O filme é seguramente sobre Portugal.

Continuando tão ateu como sempre fui, há poucas coisas no meu olhar sobre o mundo e sobre Portugal que tenham mudado tanto, desde a minha juventude até hoje, como a minha relação com a religião. O que, curiosamente, contraria o meu percurso político da esquerda comunista – que, graças à sua implantação popular sempre abordou com muita cautela o fenómeno religioso – para uma esquerda mais libertária. Da irritação racionalista contra as superstições e a alienação passei para uma tolerância quase solidária com a resiliência da fé comunitária à selvajaria individualista e aculturada dos nossos tempos. Poderá dizer-se que fiquei mais conservador, mas prefiro pensar que fui ganhando uma maior compreensão da natureza humana – os conservadores dirão, claro está, que é a mesma coisa. A evolução não é apenas ou especialmente ideológica, é existencial. Uma coisa que, infelizmente, nunca se pode passar para as próximas gerações. O fascínio pelo novo é sempre mais forte para quem quer, com toda a legitimidade, mudar o mundo dos pés à cabeça. Atirando fora o bebé com a água do banho, como também é inevitável. E o bebé é bem visível em “Fátima”: o sentimento de comunidade, com todo o seu asfixiante controlo social (também lá está), mas a sua comovente e empolgante experiência de elevação.

“Fátima” também é sobre sacrifício. Sobre o sacrifício das vidas normais e como é em mais sacrifício que encontram a sua libertação. Como se a liberdade de vidas sacrificadas por condições impostas por outros só se pudesse conquistar no sacrifício que nos impomos a nós próprios. E como se esse sacrifício, que facilita a experiência mística e libertadora, fosse condições para nos compreendermos como seres humanos. Estando seguramente entre o minúsculo grupo de portugueses que passou a sua infância e juventude ao lado de qualquer vivência religiosa, encontrei este elogio do sacrifício de forma muito evidente na ética comunista. Sem nunca ter experimentado nenhuma, o sentido das peregrinações a
Fátima não me é estranho.

Também sou dos que acreditam que o sacrifício autoimposto nos liberta do sofrimento que nos impõem. E que esse sacrifício, com um objetivo final – o Santuário de Fátima, uma sociedade melhor ou qualquer utopia –, só ajuda a construir qualquer coisa de real se for feito em grupo. Essa coisa real é o sentido de pertença que hoje merece escárnio da cultura do individualismo egomaníaco. E é por isso mesmo que sou incapaz de olhar para as novas igrejas de “autoajuda”, evangélicas, que prometem a solução para os problemas individuais como quem vende champô, como olho para as grandes religiões, construídas por camadas de tempo e de símbolos. Encontramos um sentido pragmático da fé tanto na IURD como nas promessas que levam muitos peregrinos a Fátima. Mas o que uma resolve em troca de sacrifício a outras resolvem pedindo apenas dinheiro, o que numa se dirige a uma tradição comunitária, muito presente no mundo rural, outras dirigem-se à solidão suburbana. E é por isso mesmo que a coerência católica condena o capitalismo enquanto essas novas seitas o representam na perfeição.

Muitos dos católicos que conheço não reconhecem nos supostos milagres de Fátima um elemento relevante na sua fé. Tenho, como muitos, convicções sobre a origem do fenómeno de Fátima, que começou por ser popular antes de ser institucional e que acabou por ter, depois da revolução Russa e do anticlericalismo da 1ª República, funções políticas muitíssimo claras. Mas estes fenómenos, como todas as tradições culturais que perduram, são apropriados de formas menos literais. E é por isso que é possível, como em “Fátima”, que os peregrinos cantem, no meio de músicas sobre a terra sem igual que é Vinhais e a roupa de Jesus lavada do Rio Jordão, a “Grândola Vila Morena”, também ela transformada em tradição popular sem referente claro. Porque um povo é muitas coisas e não se divide de forma simples entre crentes e não crentes, conservadores e progressistas, provincianos e cosmopolitas. E é difícil compreender este nosso povo sem compreender o culto mariano, a função libertadora do sacrifício e a experiência coletiva da fé. É difícil compreender este povo sem compreender o que é uma peregrinação a Fátima, retratada com a comovente e habitual honestidade de João Canijo.

Felicidade

Fabrice Hadjadj, Avvenire

Êxtase ou interioridade? Relâmpago ou panela ao lume? Quando falamos de felicidade, a ideia que dela temos associa-se a dois tipos de imagem que correspondem a dois modos opostos de nos relacionarmos com o tempo.

O primeiro tipo é o da vida intensa: inesperadamente, eis-nos surpreendidos, deslumbrados, de boca aberta. O segundo é o da vida serena: estamos abrigados, na calma, num banho de doçura. Naquele é a fratura; neste a maturação. Naquele, o instante; neste, a duração.

Esta separação das nossas visões felizes entre o relâmpago e o céu azul, o acontecimento e a harmonia, o sublime e o agradável, divide também a nossa aproximação à beleza.

Uns experimentam-na como uma fratura: a aparição de uma transeunte de corpo esplêndido que passeia no nosso coração. Outros percecionam-na como uma ascensão lenta mas irresistível: a superfície do mar na Grécia, calma e cintilante, mas cuja imensidão luminosa e tremeluzente vence pouco a pouco a nossa alma.

Assim acontece para a verdade: é visão ou caminho, véu que de uma vez se levanta ou diálogo que se prolonga? Para o trabalho: é sucesso rápido ou trabalho atento, eficácia imediata ou paciente recomeçar? Para a conversão: é Paulo ou Pedro, queda abrupta do cavalo ou continuar durante anos sempre a tropeçar?

Certo é que o nosso tempo está mais do lado da fulguração. Ela confunde facilmente o veloz e o vivaz, talvez por causa da aceleração tecnológica, da banda larga e da ligação quase instantânea que desencadeia o deslocamento vertical no ecrã que um instante antes era cinzento. Requerida pelo comboio de alta velocidade mas que impede a contemplação da paisagem.

É por isso que temos tanta dificuldade em agarrar o pensamento dos Antigos que cantavam a paz. Aos nossos olhos encadeados, a paz parece um sono; a sua harmonia uma inércia; a sua duração uma insipidez. Quando Santo Agostinho a define como a «tranquilidade da ordem», pensamos quase na morte, não decerto na felicidade.

O problema com a busca do intenso é que arruína a sensibilidade. As sensações nunca são suficientemente fortes. Começa-se com o parapente para passar ao salto com o elástico, a queda livre com paraquedas, o voo em “wingsuit” e por fim a queda livre sem paraquedas. O suicídio será sempre de intensidade extrema e sem retorno.

Não dou exemplos de tipo carnal, mas, evidentemente, seria necessário neste caso lembrar a violação e o homicídio. Infelizmente, também o assassínio em série acaba por se aborrecer: cortar uma mulher em pedaços, obstinadamente, excita-o tanto quanto descascar uma batata. Dá-se conta de que alguma coisa está errada. Que poderia ter ficado pela batata, se tivesse sido mais sensível, mais capaz de espanto.

É por isso que o gosto pela intensidade faz facilmente cair a sua lógica para jogar melhor nos contrastes. Coloca-se ao ritmo do caracol para ficar desconcertado pela velocidade da tartaruga. Permanece-se dias fechados na obscuridade para abrir repentinamente as portas e perceber um dia cinzento como uma formidável fulguração. Jejua-se três dias e, logo a seguir, nada é mais intenso, mais saboroso, nada dá mais prazer do que um bocado de pão duro. O ascetismo é o único método para viver um hedonismo que não se torna aceite.

Mantendo por muito tempo uma intensidade de vida muito baixa, na solidão, até o meio sorriso de uma senhora idosa pode parecer-nos como uma experiência de um poder extraordinário.

Compreende-se porque é que a questão da intensidade não é a única. A fé seria apenas um golpe de varinha mágica se tudo se decidisse assim, numa queda do cavalo. O amor seria somente ilusão e desilusão se se reduzisse ao orgasmo. A sua vocação e a sua prova estão precisamente em passar do êxtase ao interior, do relâmpago à panela ao lume.

Os românticos volúveis não deixarão de considerar esta passagem como um aburguesamento. É por isso que não conseguem entrar na profunda poesia do quotidiano.

Título original do artigo: «Essa procura de sensações que nos tira o quotidiano».

Tradução de: SNPC, publicado em 01.05.2017