José Tolentino Mendonça, E, Expresso, 8.julho.2017
Que marinheiro se lança à aventura oceânica sem controlar se leva na embarcação, não só a vela e os remos, mas também uma âncora? Ou que caminhante enfrenta a sua jornada sem prever tempos e lugares de pausa, que lhe garantam a possibilidade de refazer-se, sentir o conforto de um abrigo e retemperar forças para poder continuar? A viagem não é só movimento, como a vida não é apenas o contínuo das suas atividades. A arte de parar é uma aprendizagem indispensável à sobrevivência, mesmo se isso vem frequentemente esquecido. Quem não sabe parar, não sabe viver, pois há uma qualificação da existência que provém daí, por muito que isso se tenha tornado difícil de efetivar ou nos obrigue a deliberar em contraciclo, mesmo em relação às idealizações que construímos sobre nós próprios. Precisamos de parar: por carência e necessidade, por chamamento interior e por escolha, por decisão e sabedoria.
Tendencialmente as nossas vidas têm-se tornado uma espécie de cidade que não dorme. O tempo parece-nos sempre escasso face ao programa que nos impomos. Desejaríamos que ele se desdobrasse, como que por magia, e fosse o que não é. Correndo ofegantes, num dia a dia saturado, não deixamos de sentir-nos ainda em falta com alguma coisa que muitas vezes não sabemos bem o que seja, mas que tem a forma de uma culpa que nos mói. A sensação crescente é de que o mundo nos ultrapassa e a perceção da nossa insuficiência deixa-nos devorados por dentro, em terra queimada. Por muito que façamos, as metas mantêm-se longínquas; nada nunca basta; a parte mais íntima de nós sente-se permanentemente irresoluta, em dívida e em perda.
E isto é assim, para nós, há muitos anos. Para o movimento tivemos mestres, a escola organizou-nos, a família tutelou de perto a nossa maturação. A pausa e o recreio foram confiados às regras do acaso, na suposição de que parar, brincar, repousar são uma ciência inata, coisa que — compreendemos dolorosamente depois — não é. Esse défice de competência fica em tantas vidas como um buraco do qual se foge, um vazio colmatado com múltiplas formas de evasão.
Muitas vezes dizemos que não paramos porque não podemos, pois, o mundo à nossa volta, o mundo que depende de nós, se bloquearia nesse instante. Ora, precisamos desconstruir esta ilusão. Os que se creem insubstituíveis padecem, não raro, de uma vertigem prometaica enganadora. É fundamental ganharmos um distanciamento crítico em relação ao nosso contributo, valorizando mais o trabalho de autonomização dos outros do que o tecer uma rede, mais visível ou impercetível, de dependência. Sem nos darmos conta, por trás de uma exagerada doação ou de um ativismo irreprimível, está uma insegurança profunda nos laços que estamos a construir.
Lembro-me que há uns anos, fazendo eu próprio os caminhos de Santiago, encontrei, logo no meu primeiro dia de peregrinação, uns brasileiros sentados na berma a tratar dos pés já meio-desfeitos. Eles devem ter-se apercebido do meu ar apavorado, porque um deles disse-me, com uma tranquilidade que me animou: “É bom gastar tempo a cuidar das próprias feridas.” Eu ainda não tinha compreendido que essa era uma das razões principais porque estava ali a enfrentar aqueles cento e tal quilómetros de estrada. Mas o mesmo se pode dizer do encontro (ou do desencontro) com os outros. Só encontramos verdadeiramente aqueles junto dos quais fundeamos a nossa âncora, empregando o tempo necessário à escuta, à atenção e à surpresa. O não parar é uma forma de fuga ao encontro mais profundo connosco mesmos e com os outros.