Arquivo mensal: Agosto 2017

Autorretrato

Carlo Strenger, O medo da insignificância

Aceitar passivamente  as próprias limitações faz com que se passe da repugnância por si mesmo à aceitação de si mesmo. Em todo o caso, nunca vi exemplos deste tipo a não ser na meia-idade ou em pessoas mais velhas. A verdadeira mudança exige algo como uma compreensão metafísica sobre o que significa ser livre, como Jaspers salientou repetidamente. A liberdade a que me refiro é revelada de forma impressionante nos autorretratos de Rembrant. Pintou o seu próprio retrato durante toda a vida e os seus mais de noventa autorretratos abrangeram mais de quatro décadas da sua carreira. Como afirmaram os historiadores de arte, os autorretratos de Rembrant funcionaram como marcos de uma parte da sua vida, porém, quando atingiu os cinquenta anos, transformou-se numa espécie de autoanálise. Nessa altura tinha já vivido a ascensão em direção à fama e a queda em desgraça e tinha sido banido dos círculos sociais. Nos seus últimos autorretratos vemo-lo frequentemente muito desmazelado, as marcas da idade são muito visíveis, o seu olhar, de alguma maneira desconfiado, é o olhar de um homem que conhece as agruras da vida e furou o véu da ilusão. Não obstante, os quadros não são desagradáveis nem pessimistas. Pelo contrário, emanam ainda uma luminosidade e uma beleza fascinante. Não são deprimentes, induzindo antes um estado de contemplação e de prazer. Muitas vezes, é fácil esquecer que estes quadros são criações que exigiram uma actividade morosa. Rembrant precisou de se contemplar a si próprio de uma forma distanciada e objetiva, enquanto decidia como elaborar os quadros. Afinal, o objetivo mais importante da pintura no século XVIII seguramente, era a criação de beleza.

Ao entregar-se à tela, Rembrant combinou a lucidez do autoconhecimento e da percepção de si próprio com a obra de arte que iria continuar a ser testada durante séculos. Enquanto se mostrava como era realmente, Rembrant também levou a sua arte ao seu máximo expoente: a grande mestria da luz e da cor e o seu talento para a composição. Ao retratar incansavelmente a sua imagem, ele exprimiu e afirmou a sua identidade como artista magistral.

A aceitação de si mesmo, tal como é expressa nos autorretratos de Rembrant, não é uma sujeição passiva à realidade. É uma expressão ativa da capacidade da mente para ver, compreender e dar forma à sua compreensão numa criação com valor. Sugiro que lhe chamemos aceitação ativa de si mesmo. É ativa por duas razões. Primeiro que tudo, a mente não é um recetáculo passivo ou um espelho da realidade. Tem de construir as representações ativamente. O processo de pintar um autorratrato realça drasticamente esta criação complexa. A segunda razão para a minha sugestão terminológica é o facto de o resultado da aceitação ativa de si mesmo não ser equivalente a aceitar simplesmente aquilo que somos. É aceitar o chamamento existencial para sermos o que podemos ser e, como tal o início da transformação de nós próprios. Requer que se faça o trabalho árduo que Friedrich Nietzsche sintetizou em A Gaia Ciência como dar estilo ao nosso carácter: abranger claramente com o nosso olhar as nossas forças e fraquezas e transformar as nossas vidas numa criação coerente.

Quedará la música…

Pasaréis,
pasarán los tiempos,
se irán los momentos,
ya lo veréis.
Pasarán los imperios, las guerras, los besos y donde miréis
quedarán los versos y los porqués,
recuérdalo, esta canción.
La música no se toca.

Veréis,
pasarán los empeños,
y los mistérios de seis en seis.
Y los siglos, los muertos y los inquietos que alzan la voz,
pasaremos todos y quedará,
recuérdalo, una canción.
La música no se toca.

Y que lo que va en el viento es lo más seguro, no lo dudéis;
que se aferra al tiempo y se queda eterno en el corazón.
Pasaremos todos y quedará,
recuérdalo, una canción.
La música no se toca.

Y no hay ley,
poderosa emoción, que ni el tiempo la vence, no hay ley.
Lo que améis en el tiempo siempre quedará,
quedará cuando no estemos, quedará cuando no estéis.

Quedará la música…
es siempre la música, verás.
Larga vida a la música Su Majestad…
Que Dios guarde a la música en su inmensidad.
Quedará la música cuando no haya a quien amar,
quedará la música como un despertar.
Nos quedará la música, es nuestra verdad,
quedará la música, es el titular.

Pasarán los inventos y el ir con los tiempos, no lo veréis
y el si no me conecto las bandas más anchas y los que cobréis.
Pasarán las marcas y los “ipeis”,
recuerda que esta canción
es música y siempre flota.

Quedará la música…
es siempre la música, verás.
Larga vida a la música Su Majestad…
Que Dios guarde a la música en su inmensidad.
Quedará la música cuando no haya a quien amar,
quedará la música como un despertar.
Nos quedará la música, es nuestra verdad,
La música no se toca, es el titular.

Um coach chamado Inácio

Laurinda Alves, Observador 1.agosto.2017

William James, médico e filósofo norte americano, professor de fisiologia, anatomia e filosofia em Harvard, e um dos fundadores da psicologia moderna disse que poucas pessoas utilizam mais de 10% de todo o seu potencial ao longo da vida. William James, ligado ao pragmatismo e considerado o ‘pai da psicologia americana’, morreu em 1910 depois de ter sido muito confrontado e desafiado em vida, mas continua a ser citado e dado como referência. É interessante voltar a esta sua teoria pois ela aplica-se a um potencial de largo espectro: competências intelectuais, físicas, artísticas e até religiosas, pois toda a experiência humana tem uma dimensão espiritual.

Da maneira como nos relacionamos connosco próprios e uns com os outros, à forma como integramos e sistematizamos os conhecimentos de todas as naturezas e áreas do saber, aparentemente continuamos a funcionar muito aquém das nossas capacidades. Teoricamente temos dons e talentos que podem permanecer ocultos, por desvendar, ao longo de toda a nossa existência. De acordo com William James, isso também se deve a uma ‘psico-patologia da média’, uma espécie de doença da ‘normalidade’ que nos leva a ficarmos facilmente satisfeitos com a mediania, ou com tudo aquilo que nos soe a padrão ou estatística. Na sua óptica aceitamos mais naturalmente o que nos parece ‘normal’ do que aquilo que exige outros recursos que habitualmente não usamos e nem sempre identificamos em nós.

Claro que tudo isto é discutível palavra por palavra e linha por linha, mas é interessante como ponto de partida para focar no grande salto para fora da normalidade que todas as pessoas de génio e com rasgo deram, dão e continuarão a dar ao longo dos séculos. Há 500 anos ninguém falava em escuta activa e, muito menos, em exercícios espirituais ou no discernimento do dia a dia, para dar três grandes exemplos existenciais-espirituais. A normalidade ditava caminhos mais previsíveis e porventura mais condicionados, mas graças a pessoas que escaparam aos cânones, esta terminologia vingou. Mais importante do que ter vingado, é terem existido pessoas capazes de cunhar novas linguagens que nos continuam a interpelar muitos séculos depois.

Inácio de Loyola foi uma destas pessoas. Muito antes de ter sido considerado santo, o basco vaidoso e galante, o cavaleiro sedutor e conquistador, revelou uma capacidade invulgar de ser e fazer diferente. Tão vaidoso era, que ao ver-se defeituoso de uma perna após um ferimento grave no campo da Batalha de Pamplona, em 1521, exigiu que lhe voltassem a partir o osso a sangue-frio para que ele pudesse colar sem defeito. Nessa altura, a sua personalidade já se destacava claramente por ser diferente da mediania, mas ainda se construia a partir de um código de valores cavalheirescos. Só mais tarde, depois da sua conversão no quarto onde convalescia dessa dolorosa operação, e ao longo de toda a sua peregrinação pela vida, é que Inácio haveria de revelar a sua capacidade de usar e estimular muitos outros a usarem muito mais do que 10% do seu potencial, por assim dizer.

Há 500 anos existiam mestres e professores, mas o conceito de coach era absolutamente desconhecido. Curiosamente, Inácio de Loyola foi ao mesmo tempo um grande mestre, um extraordinário professor e um fabuloso coach. Ensinou a ouvir, ouvir, ouvir sem a tentação de dar conselhos, pistas infalíveis, ou fórmulas definitivas. O seu método sempre foi o de ajudar a descobrir caminhos e a desocultar dons e talentos para que cada um pudesse encontrar em si mesmo a capacidade de escutar. De se ouvir a si, de escutar os outros e de sentir a acção do espírito.

Inácio de Loyola apontou para caminhos de liberdade que começavam sempre pela liberdade interior que permite sermos quem somos, independentemente da mediania, sem tentações estatísticas e sem medo de não corresponder às expectativas dos outros. Mais, sem outras pressões para além daquelas que são ditadas pela consciência. Uma consciência formada para aspirar ao maior bem, ao lendário ‘mais e melhor’ que acabou por se converter no seu lema de vida. O “magis” que ainda hoje inspira legiões de homens e mulheres apostados em fazer bem o Bem.

Inácio foi um buscador incansável que ajudou e continua a ajudar os mais racionais e, porventura mais cépticos, a encontrarem caminhos de evolução pessoal e elevação espiritual. Como? Dando critérios de discernimento e ensinando uma atenção especial às ‘moções interiores’, atribuindo nomes e conferindo sentido ao que sentimos. Desolação e consolação são conceitos inacianos, de certa forma inaugurados por ele, na medida em que nos ensinou a perceber o que nos desola e nos consola, independentemente de serem alegrias ou tristezas. Inácio de Loyola compreendeu muito cedo a complexidade psicológica de cada ser humano e soube sempre respeitar a identidade de cada um, dando ferramentas de conhecimento próprio e de Deus.

Tal como os melhores coaches da actualidade, Inácio ajudou-nos a separar águas e a perceber que a consolação e a desolação não são ditadas por circunstâncias externas e, muito menos, dependem de bens absolutos como a riqueza ou a saúde, o reconhecimento dos outros, o prestígio ou o poder. Muito pelo contrário, podemos estar a atravessar grandes desertos ou a sobreviver em meio de tempestades mantendo o espírito consolado pela simples razão de sabermos dar sentido àquilo que nos acontece, por termos a certeza de não estarmos sozinhos e por sabermos que há sempre luz depois da escuridão.

Os budistas falam da impermanência, mas Inácio falava de Deus e traduzia por palavras simples e concretas os ensinamentos de Jesus. De tal maneira foi real e concreto que contagiou primeiro um pequeno grupo de amigos, depois um círculo alargado de companheiros que, mais tarde, se transformaram na Companhia de Jesus, hoje em dia a ordem religiosa masculina mais numerosa na Igreja Católica.

Quinhentos anos depois, num tempo em que Deus continua a ser uma palavra difícil e muitos crentes são perseguidos e aniquilados, Inácio de Loyola continua muito à frente do tempo inspirando leigos e religiosos num caminho de descoberta de si mesmos em relação com os outros, com o mundo à sua volta e com tudo aquilo que os transcende.

Milhares e milhares de crentes atestam a vitalidade do pensamento e acção do fundador da Companhia de Jesus ao celebrarem o dia de Santo Inácio, enchendo igrejas por todo o mundo. Esta segunda-feira a igreja de São Roque em Lisboa – a primeira Igreja de jesuítas em Portugal e uma das primeiras no mundo – estava a transbordar de gente apostada em tentar fazer mais e melhor, precisando certamente de usar mais do que os lendários 10% do seu potencial espiritual e relacional.