Autorretrato

Carlo Strenger, O medo da insignificância

Aceitar passivamente  as próprias limitações faz com que se passe da repugnância por si mesmo à aceitação de si mesmo. Em todo o caso, nunca vi exemplos deste tipo a não ser na meia-idade ou em pessoas mais velhas. A verdadeira mudança exige algo como uma compreensão metafísica sobre o que significa ser livre, como Jaspers salientou repetidamente. A liberdade a que me refiro é revelada de forma impressionante nos autorretratos de Rembrant. Pintou o seu próprio retrato durante toda a vida e os seus mais de noventa autorretratos abrangeram mais de quatro décadas da sua carreira. Como afirmaram os historiadores de arte, os autorretratos de Rembrant funcionaram como marcos de uma parte da sua vida, porém, quando atingiu os cinquenta anos, transformou-se numa espécie de autoanálise. Nessa altura tinha já vivido a ascensão em direção à fama e a queda em desgraça e tinha sido banido dos círculos sociais. Nos seus últimos autorretratos vemo-lo frequentemente muito desmazelado, as marcas da idade são muito visíveis, o seu olhar, de alguma maneira desconfiado, é o olhar de um homem que conhece as agruras da vida e furou o véu da ilusão. Não obstante, os quadros não são desagradáveis nem pessimistas. Pelo contrário, emanam ainda uma luminosidade e uma beleza fascinante. Não são deprimentes, induzindo antes um estado de contemplação e de prazer. Muitas vezes, é fácil esquecer que estes quadros são criações que exigiram uma actividade morosa. Rembrant precisou de se contemplar a si próprio de uma forma distanciada e objetiva, enquanto decidia como elaborar os quadros. Afinal, o objetivo mais importante da pintura no século XVIII seguramente, era a criação de beleza.

Ao entregar-se à tela, Rembrant combinou a lucidez do autoconhecimento e da percepção de si próprio com a obra de arte que iria continuar a ser testada durante séculos. Enquanto se mostrava como era realmente, Rembrant também levou a sua arte ao seu máximo expoente: a grande mestria da luz e da cor e o seu talento para a composição. Ao retratar incansavelmente a sua imagem, ele exprimiu e afirmou a sua identidade como artista magistral.

A aceitação de si mesmo, tal como é expressa nos autorretratos de Rembrant, não é uma sujeição passiva à realidade. É uma expressão ativa da capacidade da mente para ver, compreender e dar forma à sua compreensão numa criação com valor. Sugiro que lhe chamemos aceitação ativa de si mesmo. É ativa por duas razões. Primeiro que tudo, a mente não é um recetáculo passivo ou um espelho da realidade. Tem de construir as representações ativamente. O processo de pintar um autorratrato realça drasticamente esta criação complexa. A segunda razão para a minha sugestão terminológica é o facto de o resultado da aceitação ativa de si mesmo não ser equivalente a aceitar simplesmente aquilo que somos. É aceitar o chamamento existencial para sermos o que podemos ser e, como tal o início da transformação de nós próprios. Requer que se faça o trabalho árduo que Friedrich Nietzsche sintetizou em A Gaia Ciência como dar estilo ao nosso carácter: abranger claramente com o nosso olhar as nossas forças e fraquezas e transformar as nossas vidas numa criação coerente.