A fé como risco

Luciano Manicardi, Viver uma fé adulta, Edições Paulinas

A fé é a grata rendição a Cristo, a resposta humana à humanidade divina de Jesus, o sim à vida vivida por Cristo, que também se torna forma da nossa vida; portanto, é um concreto criar espaço para Cristo na nossa existência, um fazer reinar o Espírito de Cristo nas relações e situações quotidianas. Tudo isto na convicção de que a existência de Cristo narra quem é Deus; que a vida de Cristo, vivida na obediência filial a Deus e na doação total aos irmãos até ao paradoxo do amor pelo inimigo, é o sentido último, humano e divino, do viver; e também convencidos de que a fé de Jesus, a que Ele próprio viveu em relação ao Pai, confiando-se a Ele como Abbá, mesmo nos momentos da cruz, quando continuou a confiar-se àquele que o abandonava, é a referência normativa do nosso crer, o seu paradigma.

Aqui percebemos uma aspecto importante da fé cristã: ela consiste num momento de progressiva (e sempre parcial) assimilação do sujeito crente ao sujeito crido (Jesus Cristo): a fé tem em si uma dinâmica pascal, é um ato de morte e ressurreição. A fé atualiza em nós a morte e a ressurreição e de Cristo. Deste ponto de vista, a fé é risco mortal e possibilidade impensada de vida. Risco mortal porque eu ponho a subsistência do meu ser e do meu viver (“Se não acreditardes, não subsistireis”: Is 7, 9) em que não vejo e de quem os outros deram testemunho (a fé revela aqui a sua dimensão eclesial-comunitária intrínseca); é risco porque este movimento exige a minha saída de mim mesmo e a perda de relevância do meu eu e das suas pretensões para viver no espaço do amor gratuito e preveniente de Deus. E talvez o grande risco da fé seja crer no amor. “Nós conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele” (1Jo 4, 16), amor que Deus manifestou na vida, morte e ressurreição de Cristo.

Na sua raíz, a fé cristã é sempre crer no amor de Deus por nós. Portanto, o amor de Deus narrado por Cristo (Rm 5, 6-10), fundamento da nossa confiança e da nossa fidelidade, é , também e simultaneamente, fonte e objeto da nossa fé. É verdade que crer no amor de Deus é um risco, porque aqui o crente tem de enfrentar o enigma, a não evidência desse amor e, às vezes, também da confiança ou da fiabilidade daquele em quem põe a sua fé; mas, aqui, é também o germe da fé como possibilidade não pensada e não crível de vida, de renovação da vida. Nos momentos em que tudo vacila, a fé simplificada, a fé nua, a fé que crê contra toda a evidência, a fé que habita os infernos, torna-se o lugar da esperança.

Na sociedade atual que multiplica os sistemas de segurança e de previdência, que elabora métodos de precisão e de proteção para esconjurar as incertezas e os riscos do futuro, a fé comporta a dimensão do risco. Não é que a fé não conheça a dimensão da certeza, mas a certeza da fé é de uma ordem diferente da certeza do tipo racional. Pascal escreve: “Se não se devesse fazer nada, excepto por aquilo que está certo, não se deveria fazer nada pela religião, porque ela não é certa” (isto é , não está no mesmo comprimento de onda da certeza comum). O saber próprio da fé é o saber da confiança. Se o risco próprio da fé é inerente a este saber e a esta linguagem de confiança, então também parece inerente à fé e, por assim dizer, à sua própria prova. Assim, crer torna-se também um desafio que, hoje, o homem vive quotidianamente, num contexto que requer demonstrações e evidências e, como dizíamos, procura seguranças e quer evitar a incerteza.

Viver uma fé adulta, itinerário para um cristianismo credível, Edições Paulinas,

Luciano Manicardi é prior da comunidade monástica de Bose