José Tolentino Mendonça, E, Expresso 29.setembro.2018
A palavra pessoa (persona), significa, na origem, máscara. E é através da máscara – isto é , da representação social, – que o indivíduo, pelo menos na construção ocidental que é a nossa, adquire um papel e uma identidade. Na Roma antiga, por exemplo, cada indivíduo era, tal como hoje, identificado por um nome que o ligava à sua gens, à sua génese, à sua estirpe. E esta estirpe, por sua vez, era representada plasticamente por uma máscara de cera do rosto do antepassado, que vinha fixada no átrio da casa das famílias patrícias. O que dava o nome, o que instituía o conjunto de membros de uma determinada família, era, assim aquela máscara. Ora, do termo persona ao termo personalidade, que refere o modo como cada indivíduo atua no intrincado do teatro social, com os seus ritos e práticas, vai um passo. A ideia de persona/máscara acabou rapidamente por englobar a capacidade jurídica e a dignidade politica do homem livre. Não de todos os homens, porque nem todos os homens eram considerados pessoa no mundo romano, mas apenas do homem livre. Considerava-se que o escravo, por exemplo, não possuía antepassados, a dita máscara, e por isso não era considerado pessoa. Dizia o direito romano: servus non habet personam. Na cultura contemporânea, o sentido de persona expandiu-se ainda para campos ulteriores referindo-se à dimensão moral, psicológica e estética. Tudo isto para recordar que, quando pensamos em nós, não pensamos imediatamente em nós e como seja preciso um longo caminho para chegar a si, para tocar a vida na sua nudez. Há aquela passagem do poema “Tabacaria”, da Álvaro de Campos, que funcionou como um grande retrato da experiência humana, e que diz a dado passo:
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdia-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
O jogo que os versos organizam traduz a realidade do sujeito, estrangeiro de si mesmo, perdido no labirinto fraturante das representações, incapaz de encarar ou de reencontrar a unidade do seu rosto. “Conheceram-me logo por quem eu não era e não desmenti, e perdi-me”… Por isso, precisamos tanto do auxílio da sabedoria, que deve ser buscada como um agricultor busca ferramentas para trabalhar a terra. A vida, no seu sentido profundo, também precisa de ser cultivada. E essa deve ser considerada a atividade primeira da nossa existência. O evangelho de Tomé, que possivelmente será o texto apócrifo mais próximo dos Evangelhos canónicos, conserva a memória seguinte. “Os discípulos perguntaram a Jesus: ‘Senhor, quando é que te manifestarás a nós a quando é que te veremos?’ Jesus responde, ‘quando estiverdes nus e não tiverdes vergonha disso’ (logíon 37). E penso também naquela história de Lanza del Vasto, ocorrida na sua primeira viagem à Índia. Ele conta que sentia, com um incómodo forte, que toda a gente pretendia alguma coisa dele. Cansado dessa perseguição, vai para um sítio distante e encontra uma lagoa. Finalmente pode estar em paz. Despe-se e mergulha naquelas águas. Quando sai, apercebe-se, com terror, que lha haviam roubado tudo, inclusive a roupa. Mas ele assegura no seu relato: “Foi quando me viram sem nada que a minha história na Índia começou, a minha história de hospitalidade e relação.” Não raro, só quando se consente na vulnerabilidade se começa verdadeiramente.