Arquivo mensal: Maio 2019

Ciberpsicologia

Ciberpsicologia: quando a vida online se sobrepõe à vida real

Mauro Paulino, Expresso 21.maio.2019

No passado dia 17 celebrou-se o Dia Mundial da Internet, também conhecido como Dia Mundial das Telecomunicações e da Sociedade de Informação. A data foi estabelecida pela Organização das Nações Unidas, em janeiro de 2006, com vista a promover a inclusão digital e a reflexão sobre as potencialidades e desafios das novas tecnologias na vida dos cidadãos. A Psicologia, enquanto ciência que estuda o comportamento e os processos mentais dos indivíduos, não poderia ficar indiferente a esta realidade, que implica alterações significativas na vida das pessoas. Não só na forma como comunicam e acedem à informação, como também nas suas interações com os outros, os seus comportamentos, valores e atitudes e até mesmo nos seus estilos de vida.

Está então criada a necessidade para uma área emergente e inovadora, designadamente a Ciberpsicologia, a qual se foca no interesse e investigação da interação entre o indivíduo, a sociedade e a tecnologia, tendo em conta as vantagens e as desvantagens para o desenvolvimento humano, ao nível individual, relacional, ocupacional, grupal e organizacional.

Neste âmbito surgem também questões relacionadas com protocolos de investigação, intervenções psicológicas online, uso de jogos na prática terapêutica, eHealt, mHealth e intervenção em diversas áreas, como a oncologia, a reabilitação, a obesidade, o luto, entre outras. Esta área ganha ainda mais relevância numa fase em que se discute e trabalha interdisciplinarmente no domínio da inteligência artificial.

É, por isso, importante partilhar com o leitor resultados de investigações que nos devem fazer ponderar, em termos pessoais, mas também educacionais, a relação que temos com os computadores, com a World Wide Web, com os telemóveis e outros pequenos dispositivos multifunções. Ainda em abril deste ano, a Organização Mundial de Saúde desaconselhou a exposição das crianças com menos de dois anos a ecrãs e entre os dois e os quatro anos que fosse limitada até uma hora diária, sabendo nós que, muitas vezes, esses ecrãs estão ligados a plataformas digitais para vídeos ou jogos.

Neste sentido, as potencialidades da utilização da internet, ainda que inquestionáveis, podem dar lugar a efeitos negativos na vida das pessoas, sobretudo quando existe uma sobreposição da vida online com a vida real. Tendemos a não dar a importância suficiente ao facto de que o uso da Internet e do smartphone têm características comuns às adições de substâncias, como sintomas de privação, usar o smartphone para lidar com sintomas de ansiedade, depressão e stresse sem enfrentar os problemas reais, falta de sono, interferência na realização de tarefas, perturbações nas relações face a face, perda da noção do tempo e, por vezes, mesmo dores nos pulsos e na nuca, constituindo um fator de risco para uma perturbação musculoesquelética a longo prazo.

As interações nas redes sociais através da partilha de vídeos, realização de diretos, troca de comentários, publicações de textos e/ou imagens podem provocar nos seus utilizadores a perceção ilusória da realidade dentro da interação virtual. E quanto maior é o grau em que se embarca nesta ilusão, maior é a tendência para o comportamento problemático e aditivo. Uma série de estudos tem demonstrado que há um risco de a comunicação online causar sentimentos de solidão, mesmo em quem não terá razões objetivas para se sentir só, assim como em pessoas com relacionamento amoroso, com ambiente familiar positivo e até com tempo para socializar face a face.

É importante que se perceba que a comunicação online carece da riqueza sensorial e do feedback corporal de que o cérebro humano necessita para gerar as reações fisiológicas que nos permitem sentirmo-nos em verdadeira conexão social. Por outras palavras, a comunicação online é sempre superficial e não substitui a interação face a face. Assim, ao não se beneficiar da riqueza das interações presenciais, a comunicação online contribui significativamente para gerar sentimentos de solidão. A tentativa de ultrapassar essa solidão com recurso às redes sociais conduz ao risco de se instalar um círculo vicioso de adição. Como se não bastasse, a utilização persistente do smartphone demonstrou ter um impacto negativo na qualidade das relações amorosas, com presumíveis efeitos negativos na sexualidade.

Merece igualmente reflexão o facto de que a constante necessidade de publicação e de interação virtual estar também diretamente associada a uma procura de validação social em likes e em outras expressões afirmativas online. Para além de essas manifestações não anularem os sentimentos de solidão, contribuem para o surgimento de inveja, um sentimento facilmente desencadeado pelas redes sociais, como mostram vários estudos.

As selfies, uma das tendências mais populares entre os utilizadores das tecnologias e das redes sociais, aparecem associadas ao liking relacional na rede. Uma investigação demonstrou que as pessoas retratadas nas selfies foram julgadas como menos atrativas socialmente, menos dignas de confiança e mais narcisistas do que as retratadas em fotografias tiradas por outrem.

A falta de atenção é também um efeito observável em quem digita no seu smartphone, mas as consequências vão mais além. A investigação apontou que a mera presença visível do smartphone, ligado no silêncio e sem ser manuseado, prejudica a capacidade de execução de tarefas e de resolução de problemas. Tal parece acontecer devido ao esforço subconsciente para inibir o desejo de utilização do aparelho, o que consome recursos atencionais. Por sua vez, quando o smartphone foi colocado noutra divisão, o desempenho cognitivo melhorou consideravelmente. Quando foi colocado no bolso, o desempenho melhorou um pouco, porém não tanto como quando foi colocado noutra sala. Curiosamente, os participantes nas investigações afirmaram que não estavam a pensar no smartphone, o que demonstra que a interferência não é consciente. Já pensou como o seu filho estuda? Ou o que sucede durante as aulas?

A Internet, apesar de poder ser um lugar fascinante e atrativo, pode também constituir-se como um desconhecido repleto de perigos relativamente invisíveis. Razão pela qual é preciso estar-se sensibilizado para a subversão da utilização dos meios cibernéticos para finalidades criminais, como sucede no cyberbullying, na difusão de pornografia infantil ou aliciamento de menores para condutas sexualizadas, como recorrentemente é noticiado.

Somam-se ainda os desafios virais perigosos partilhados, essencialmente, entre a população mais jovem, ou mesmo infantil. Numa coleção em que assumo funções de diretor, publicámos, neste mês de maio, um livro dedicado à Intervenção em Ciberpsicologia, coordenado por Ivone Patrão e Isabel Leal, o qual resume mais de 20 desafios perigosos online que podem provocar lesões graves ou mesmo a morte.

Exige-se claramente uma psicoeducação digital, quer em crianças e adolescentes, quer em população adulta, dado o importante repto que representa para as escolas, professores, alunos, familiares e, de forma mais abrangente, todos aqueles com responsabilidades políticas, sociais ou educativas. Neste mundo tecnológico em transformação constante, é inegável o papel e o contributo da ciência psicológica, em particular da ciberpsicologia.

A profissão de viver

José Tolentino Mendonça, E, Expresso 4.maio.2019

Claro que falar do viver como sendo uma profissão tem o seu quê de insólito. A vida não é um ofício, é uma condição. Mas referir-se a ela desse modo talvez nos ajude na compensação de quanto a vida nos pede de aprendizagem, iniciação e sucessivos recomeços. Era Erich Fromm quem dizia que as pessoas felizes são aquelas que encaram todo o curso da sua vida como um processo de nascimento, rompendo com a gramatica mais comum que considera que cada um de nós só nasce uma vez, só tem uma grande oportunidade, só percorre um caminho antes de se precipitar no fim. Erich Fromm defendia que tal modo de pensar gera este efeito devastador: vermos tanta gente a morrer sem sequer ter chegado a nascer. De facto, o verdadeiro e exigentíssimo desafio que se coloca ao ser humano é levar a cumprimento o seu nascimento. Nisto, nós humanos diferenciamo-nos das outras criaturas, que em pouco tempo já são completamente aquilo que são. Nós, ao contrário, somos inacabados; recebemos a vida como dom, mas também como tarefa; vivemos no decurso do tempo o processo do nosso próprio parto; precisamos de muitos anos (e de muito trabalho interno) para chegar a exprimir o que há em nós de original. Os mestres estoicos, na Antiguidade, motivavam os discípulos a construir a sua própria estátua. Quer dizer, exortavam-nos ao labor de si para edificar a sua própria humanidade, esse labor face ao qual todos os outros que desenvolvemos são simplesmente preparatórios.

As nossas sociedades concentram demasiado a sua aposta de formação em saberes técnicos e científicos, ou então assumidamente parcelares e especializados, apontando como horizonte o resultado sobretudo económico e, como consequência, damos por nós analfabetos, vulneráveis e desprovidos nas dimensões fundamentais do viver. Uma das patologias contemporâneas é este défice de sabedoria, esta falta de uma arte da existência. Por isso, não só um a um e em doloroso contraciclo, como na melhor das hipótese acontece, mas como comunidades no seu conjunto teremos de confrontar-nos com aquelas perguntas que T. S. Eliot coloca num dos seus poemas: “Onde está a vida que perdemos vivendo? Onde está a sabedoria que perdemos com o conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos com a informação?”. Eliot tem razão: a vida não só se ganha, também se perde quando nos tornamos prisioneiros do imediato, do desagregado e do fragmentário, sem espaço para reelaborar o vivido a partir de razões mais profundas.

Por sua vocação, o ser humano não se realiza apenas na luta pela sobrevivência. a par dessa, ele precisa de conhecer-se a si mesmo, viver na exterioridade e na interioridade, precisa de avizinhar-se com vagar da “espantosa realidade das coisas”, escutar o visível até ao fim e para lá do visível, porque a vida é surpresa e mistério. Precisa de acreditar e duvidar, recolher e lançar o mesmo propósito muitas vezes, precisa de dizer e calar, abraçando assim esse movimento que é afinal imobilidade e essa imobilidade que é afinal movimento. Atirámos as experiências de vida contemplativa para uma periferia e olhámos para essas expressões (religiosas, culturais, humanas) com indiferença, como se não tivessem nada a ensinar-nos. Dispersámos assim um património espiritual de que as nossas sociedades carecem absolutamente. Friedrich Nietzsche escreveu: “Por ausência de quietude a nossa civilização está a desaguar numa nova barbárie. Nunca como hoje o ativismo dos irrequietos gozou de tamanha consideração. Por isso, uma das correções a introduzir no modo de vivermos a nossa humanidade seria reforçar largamente o elemento contemplativo”.