texto de Cristina Margato, E, Expresso
Até ao Papa Gregório I (590 a 604 d.C.) os pecados mortais eram dez. Ele conseguiu reduzi-los a sete. Foi dessa lista que hoje conhecemos que o neurobiólogo britânico Jack Lewis partiu para estudar a ciência que existe por detrás do pecado e escrever um livro. Apesar de ter crescido sem acreditar em Deus e até se considerar ateu, o neurobiólogo deu-se conta de que agia como um bom cristão: “Toda a vida resisti ativamente à influência do Cristianismo, mas um dia percebi que a minha moral, o sentido daquilo que considerava estar certo ou errado havia sido diretamente retirado do modelo cristão. Sem acreditar em Deus comportava-me como um bom cristão.”
Sabendo que a ciência não tem respostas para todas as questões, Jack Lewis começou a interessar-se pela forma como o cristianismo “estuda” há milénios o comportamento humano: “A ciência é muito mais recente nesta área. O comportamento humano só é estudado há décadas. Há na religião uma velha sabedoria, um conhecimento que resulta de uma coleção de observações feitas por diferentes pessoas, século após século, sobre o que podem ser as regras para uma boa ou uma má vida. Porquê então rejeitar esse conhecimento? Porquê deitar fora o bebé com a água do banho?”
Foi nesta linha de pensamento que Jack Lewis olhou para os sete pecados mortais, definidos por São Gregório, e descobriu neles sete tipos de comportamento. O orgulho, a gula, a luxúria, a preguiça, a avareza, a inveja e a ira “constituem um bom sistema de categorias”, explica Lewis, num tom assertivo. Na opinião dele, os sete pecados mortais são mais do que regras para evitar o Inferno e ir para o Paraíso: “São regras para a vida.” Regras que evitam sofrimento, garantem cooperação, colaboração e boa convivência dentro de um grupo, mas também a saúde do indivíduo: “A ciência já conseguiu provar que uma pessoa isolada tem uma maior incidência de doenças cardiovasculares, cancro, doenças mentais, como depressão, ansiedade e outras desordens borderline, e logo é provável que vá morrer mais cedo.”
Em “A Ciência do Pecado” (Desassossego, 2019), o livro no qual Jack Lewis defende a clarividência dos sete pecados mortais e a sua importância para a boa saúde de quem os respeita, o neurobiólogo escrutina a literatura existente na área da neurociência, os estudos que registam a atividade cerebral sempre que está em causa um dos comportamentos associados a um dos sete pecados. Acaba por concluir que em quatro, destes sete pecados, é ativada sempre a mesma área do cérebro, aquela que está diretamente relacionada com a dor física e psicológica.
Em cada um dos pecados existem, contudo, componentes benignos e malignos: “Se tivessem sido completamente abolidos, é bastante possível que a nossa espécie nunca tivesse sobrevivido.” E dá exemplos: “O orgulho pode ter consequências saudáveis ou nocivas dependendo de como se manifesta em cada um dos indivíduos. Ser demasiado centrado em si mesmo irrita as outras pessoas, mas não ter orgulho naquilo que fazemos também pode causar problemas. Uma pitada de luxúria é claramente vital para a perpetuação da espécie, mas quando permitimos que a libido domine todas as nossas decisões pode causar grande sofrimento. A gula permitiu aos nossos antepassados caçadores-recoletores sobreviverem durante a escassez de alimentos, mas atualmente mata um número impressionante de pessoas…”
Jack Lewis acredita que o orgulho não foi colocado à cabeça por São Gregório por acaso. O orgulho “alimenta a chama” de outros pecados mortais, e pode levar à luxúria, à gula, à avareza, à ira e à inveja, reduzindo a possibilidade de “forjar relações íntimas, duradouras e cooperantes, com sucesso. (…) O problema é que o excesso de orgulho é já uma realidade, e corresponde a uma pandemia dos nossos dias, a do narcisismo: “O mundo está a tornar-se não apenas mais tolerante para com o exibicionismo obcecado, como parece mais sedento dele.” De acordo com Lewis, o número de pessoas com Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN), e logo com menos capacidade de sentir empatia, ou seja sentir o que os outros sentem, “tem vindo a aumentar firmemente nos Estados Unidos”. O que não é estranho, tendo em conta que há uma “normalização do narcisismo”, reiterada pelas redes sociais e pelos meios de comunicação social. “Não me parece que, em breve, possamos melhorar na área do narcisismo. O comportamento é altamente incentivado em todos os media, seja na televisão ou nas redes sociais, lugares onde os narcisistas obtêm mais sucesso, e onde são incentivados a comportarem-se como idiotas.” É provável que daqui a 20 anos a nossa tolerância para com o narcisismo seja total, alerta o neurobiólogo.
Também é interessante a relação que estabelece entre o consumo de sites pornográficos nos rapazes e a libido sexual: “Começam por provocar uma resposta de excitação sexual gradualmente menor; a seguir, esta diminuição desenvolve-se numa redução generalizada da libido e pode mesmo resultar na incapacidade de obter uma ereção.” A exposição a muita pornografia acaba por treinar os cérebros para produzirem apenas “respostas sexuais a estímulos supernormais, ou seja, mais intenso, mais chocante do que aquele que encontramos na vida normal”. Cria um efeito a que se começou a chamar “pornificação”, a uma cultura de “aceitação de domínio estereotipado do homem, assim como das práticas sexuais agressivas”. O que não é surpreendente, tendo em conta a natureza neuroplástica do cérebro: “Os ambientes em que passamos o nosso tempo moldam os cérebros e os cérebros desenvolvem capacidades de dar novas formas aos ambientes, que nos moldam ainda mais os cérebros, e assim sucessivamente.” Razão pela qual, Jack Lewis é um grande defensor da meditação, como instrumento para alterar processos mentais doentios que causam muito sofrimento ou do tratamento com drogas psicadélicas em ambientes clínicos.
Num estudo, citado por Lewis, quanto mais inveja uma pessoa sentia, “maior a atividade gerada na parte dorsal ou superior do córtex cingulado anterior dorsal (dACC)”, ou seja, a mesma área ativada por um narcisista sempre que experimenta a rejeição social”. E quanto mais invejosa era uma pessoa, menor era a sua inteligência emocional, menor também uma determinada área cerebral: “O estudo encontrou uma diferença significativa no tamanho de uma região do córtex pré-frontal dorsolateral (dlPFC) que fica mesmo junto à linha de cabelo da maior parte das pessoas, sobre a testa do lado direito. Quanto mais inveja a pessoa experimentava diariamente, consoante os resultados da pontuação da inveja tendencial, mais pequena era esta zona do dlPFC.” Lewis não se limita a analisar os pecados do ponto de vista da sua área científica. Está preocupado com a forma com estes pecados são utilizados todos os dias para produzirem lucro, na nossa sociedade, e bastante sofrimento em muitos indivíduos, além de uma economia que está a gerar escassez de recursos, e alterações climáticas que colocam a nossa sobrevivência em causa.
No final do livro, avança conclusões curiosas, perante as quais até o próprio Lewis se surpreendeu. À cabeça está o caso de o paracetamol ser tão eficaz a combater a dor psicológica quanto a dor física: “Nem queria acreditar quando li”, confessou ao Expresso. Mas também há uma outra conclusão relativa ao Botox: “As pessoas que colocam Botox na cara apresentam comportamentos menos agressivos, porque os músculos paralisam e deixam de conseguir imitar as caras zangadas dos outros. As injeções reduzem as ativações da amígdala quando são apresentadas a estas pessoas imagens com rostos zangados.”
Para Lewis, não há dúvida de que há alguma ciência nestas regras religiosas, no sentido em que elas encerram em si sabedoria acumulada, e que uma vida que se relacione com os sete pecados mortais com moderação pode ser mais saudável não só para o indivíduo como para o grupo: “É importante recordar que o que importa é a qualidade das relações pessoais, não a quantidade.” E é por isso que o neurobiólogo não hesita: “Mesmo que não acreditemos em Deus, é melhor que tenhamos em mente estas sete regras, na medida em que isso irá aumentar a qualidade da nossa vida e a nossa possibilidade de sobrevivência. É preciso ir além da tentação. Olhar para nós periodicamente e tentar analisar o nosso comportamento para perceber qual destes tipos de comportamento pode estar desequilibrado.”