“muito poder e pouco amor”

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“A Cúria é um dos cancros da Igreja”

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Christiana Martins, Expresso 3.agosto.2019

Polémico, desassombrado, Anselmo Borges não se cansa de defender a ideia de uma Igreja mais próxima das origens e aberta a todos. Confrontado com a partida dos monges da Cartuxa de Évora, lamenta o desaparecimento de um espaço de silêncio em Portugal.

Num texto, afirmou que a Igreja tem dupla identidade e foi capaz de gerar Francisco de Assis e Torquemada. Atualmente está mais próxima de Assis ou da Inquisição?

Essa pergunta nem deveria sequer poder ser feita. Se a Igreja quiser ser de Jesus, só pode ser de Assis. A Igreja deve ser o sentido último da existência: Deus enquanto amor. O evangelho é uma notícia boa e a inquisição não é uma boa notícia.

Esta semana foi divulgado que os monges Cartuxos vão sair de Portugal. Saem porque são poucos. É um reflexo da falta de vocações? Com eles parte um espaço de silêncio?

É uma das crises maiores do nosso tempo, marcado pelo ruído, a pressa e por uma razão instrumental. Temos uma profunda crise de valores porque no meio do tsunami de informações vivemos cada vez mais na exterioridade de nós. Corremos o risco da alienação. Já não vamos ao mais íntimo nem apreciamos o silêncio nem o encontro com o mistério a que chamamos Deus, e que está no mais profundo de nós, a voz da consciência. A Cartuxa era um apelo ao silêncio. Com a partida deles fica um vazio, próprio do nosso modo de estar no mundo.

Deixamos de perceber aquela missão de recolhimento?

Não compreendemos mais a utilidade do inútil. O ser humano ascendeu a ser homem, de forma distinta de todos os animais, quando pela primeira vez um rapaz foi à procura de uma flor — que dá perfume sem porquê — para oferecer a quem amava. Para que serve este gesto? Quanto custa? Mas isso é que é o melhor da humanidade: o gratuito. Hoje tudo se vende. É preciso voltar ao Evangelho: não podeis servir a Deus e ao dinheiro, compreendido como um ídolo. E a saída dos monges é sinal desta profunda crise de humanidade.

É também sinal da falta de vocações? Em outubro realiza-se o Sínodo da Amazónia, onde há quem espere uma autorização para a ordenação de homens casados nas regiões mais remotas do planeta. Qual a sua expectativa?

Desde o início do Pontificado de Francisco que tenho anunciado a minha convicção de que vamos assistir, ainda com este Papa, à ordenação de homens casados. E estou convicto de que acontecerá no Sínodo para a Amazónia.

Esta é uma questão que levanta muitas objeções na Igreja e o argumento invocado é que esta exceção poderia ser aceitável em regiões isoladas. O Alentejo, com a falta de vocações, não pode ser considerado uma região remota? Ou é a própria Igreja que se tornou remota dos seus fiéis?

A Igreja está afastada do evangelho. Quando digo Igreja, refiro-me à oficial. Não é preciso reformar a Igreja, mas sim recriá-la, voltar ao projeto inicial. No princípio acreditou-se em Jesus vivente. Foi crucificado porque enfrentou o templo e os sacerdotes da altura. Morreu como um blasfemo e subversivo social e político. Muitos acreditaram na sua mensagem e formaram comunidades de fé e de vida. “Vede como eles se amam”, diziam os pagãos quando olhavam para essas primeiras comunidades. Jesus não deixou sacerdotes; deixou comunidades. Daí a pergunta: porque é que uma mulher cristã não pode presidir à eucaristia, desde que escolhida pela comunidade? Um padre ser casado? E por tempo determinado? O problema da Igreja é esta gigantesca estrutura piramidal com muito poder e pouco amor.

O problema da Igreja é a Cúria?

É um dos cancros da Igreja. É responsável por mais ateus do que Karl Marx, Nietzsche e Freud juntos. A Inquisição, a condenação de Galileu, de Darwin, a misoginia…

Este ano, entre quatro padres ordenados, um era cego. Mas nenhuma mulher. Faz sentido?

Não. Que comunidades temos nós que não são capazes de organizar os seus próprios ministérios? Na Igreja primitiva, os coordenadores não eram impostos de fora, emergiam da própria comunidade. Jesus não queria sacrifícios, mas justiça e misericórdia. Foi sacerdote, mas não no sentido da vítima oferecida a Deus para que este aplaque a sua ira e se reconcilie com a humanidade. Foi sacerdote, como todos os cristãos, no sentido do oferecimento da vida a Deus e uns aos outros. Seja na política, na gestão… Esse é o verdadeiro sacerdócio do Novo Testamento. Deus não precisa de vítimas.

Não receia pelo Sínodo no Brasil atual?

Estou convicto de que vai haver conflitualidade. Há demasiados interesses económicos envolvidos. O Sínodo não vai tocar apenas nos problemas da Igreja, mas também terá uma dimensão ecológica e de preservação dos direitos dos indígenas, temas caros ao Papa Francisco. É mais um ato de coragem do Papa a favor da humanidade.

Portugal deveria ter um papel de destaque neste Sínodo?

Não só Portugal, como também os países de língua oficial portuguesa.