Confio-Te, Senhor, o próximo ano. Dá-nos sabedoria para apascentar os dias, paciência suficiente para suportar o que deve ser suportado, e um coração puro para acreditar. Concede que saibamos colocar-nos em humilde relação com as grandes coisas de que a vida é feita. Que nos sintamos como aprendizes e discípulos da revelação do teu amor que acontece no tempo. Não nos deixes acomodar: que o conforto da estalagem nunca nos seduza mais do que a beleza da viagem; que o conhecimento acumulado de ontem não nos dissuada de sairmos para contemplar o novo orvalho que brilha, hoje, nos prados; que o nosso olhar não esteja fixo no dedo que aponta, mas naquela flor silenciosa que é a lua. Em cada estação ensina-nos a tomar, a decifrar a noite inteira, não a escuridão mas uma estrela. Ensina-nos a considerar que não é o mal, mas um traço de bondade, que melhor reflete um coração. Ensina-nos a prestar atenção ao rebanho de nuvens para compreender que sempre, acima de nós que pisamos o chão, os céus ficam extasiados. Ensina-nos a não querer ser senhores de nada nem de ninguém, mas sim peregrinos conscientes de que a história a que atracam é uma terra sagrada. Para quem o quer ouvir, o vento do teu Espírito passa como um assobio primaveril anunciando o degelo. A nossa existência nunca é tão bela como quando nos olhas, Senhor!
Quando ontem se anunciou a morte de Desmond Tutu, a nossa comunidade sentiu humanamente essa partida. Há muito que conhecemos este querido arcebispo. E podemos dizer que conhecemos porque partilhamos as mesmas palavras, as mesmas convicções, os mesmos sonhos. E o mesmo sentido de humor! Em 2005, num dos nossos retiros anuais na Casa da Torre (Soutelo) tivemos o privilégio de refletir acerca do seu extraordinário livro “Deus tem um sonho – uma visão de esperança para o nosso tempo”. Durante esse fim de semana, lemos, individualmente e em grupo, passagens deste mesmo livro e partilhamos ideias, conceitos, projetos, sonhos! Saímos desse retiro com a certeza de que cada um de nós era um elemento fundamental neste sonho de Deus para o mundo e que Deus também tinha um sonho para cada um de nós. Esta obra é um pequeno resumo dos vários textos que Desmond Tutu escreveu e com os quais pretende transmitir uma mensagem de esperança, de confiança, de fé e de alegria, mensagem esta pautada pelo seu conhecido humor. Desmond Tutu parte da sua experiência de provação para nos mostrar que todo esse sofrimento pode ser transformado e redimido e dar lugar à esperança e alegria. Este livro está há muito tempo indisponível nas nossas livrarias nacionais, o que é de lamentar, uma vez que é uma obra sempre atual, profética e deveria ser de leitura obrigatória. Pode ser que, com a sua morte, o voltem a publicar. Desmond Tuto está agora a viver o sonho de Deus numa outra dimensão, eterna e gloriosa, depois de ter vivido o sonho de Deus neste mundo terreno e depois de nos ter mostrado que é possível fazermos parte deste sonho. “Como partilhamos o amor de Deus com os nossos irmãos e irmãs, os outros filhos de Deus, não há tirano que nos possa resistir, nenhuma opressão que não possa ser saciada, nenhuma ferida que não possa ser curada, nenhum ódio que não possa ser convertido em amor, nenhum sonho que não se possa realizar.” (Desmond Tutu)
Eis um pequeno excerto do livro “Deus tem um sonho – Uma visão de esperança para o nosso mundo.
Segundo a fé cristã, quando caímos nas garras do diabo e estávamos escravizados pelo pecado, Deus escolheu Maria, uma jovem de uma pequena aldeia, para ser a mãe do Seu filho. Ele enviou um arcanjo para a visitar. Na minha visão isto aconteceu assim:
Truz, truz.
“Entre.”
“…Maria?”
“Sim.”
“Maria, Deus gostaria que tu fosses a mãe do Seu filho.”
“O quê? Eu? Nesta aldeia nem sequer nos podemos coçar sem que toda agente saiba! Tu queres que eu seja uma mãe solteira? Eu sou uma rapariga decente, sabias? Lamento, tenta na porta ao lado.”
Se ela tivesse dito isto, estaríamos numa situação muito complicada. Misericordiosa e maravilhosamente, Maria disse: “Eis a serva do Senhor; que se faça tudo segundo a Sua Palavra.”. E o universo soltou um suspiro cósmico de alívio porque ela tornou possível que o nosso Salvador nascesse.
Maria era uma pobre adolescente na Galileia e lembra-nos que a transfiguração do nosso mundo provém mesmo dos mais improváveis lugares e pessoas. Tu és o indispensável agente da mudança. Não te deves intimidar pela magnitude da tarefa que tens à tua frente. A tua contribuição pode inspirar os outros, encorajar outros que são tímidos a erguer-se no meio do tumulto de distorção, propaganda e engano. A erguer-se pelos direitos humanos onde estes estão a ser violados impunemente. A erguer-se pela justiça, liberdade e amor, onde estes são pisados pela injustiça, opressão, ódio e crueldade; erguer-se pela dignidade humana e pela decência em alturas em que estes nos fazem desesperadamente falta.
Deus chama-nos para sermos seus parceiros, trabalhando para um novo tipo de sociedade em que as pessoas contem, onde as pessoas contem mais do que as coisas, mais do que os bens; onde a vida humana é, não apenas respeitada, mas efetivamente reverenciada; onde as pessoas estejam em segurança e não sofram o medo da fome, a ignorância, a doença; onde haja mais suavidade, mais atenção, mais partilha, mais compaixão, mais riso; onde haja paz e não guerra. A nossa parceria com Deus provém do facto de termos sido feitos à imagem de Deus. Cada ser humano é criado a partir dessa mesma imagem divina. E isto é incrível, uma espantosa asserção sobre os seres humanos.
Do nosso ponto de vista cristão, o nosso Deus é aquele que assumiu a nossa natureza humana. O nosso Deus disse: “Quando fizerdes isto a um dos mais pequenos, meus irmãos, estareis a fazê-lo a mim.” Não temos de andar por aí à procura de Deus. Não temos de perguntar, “Onde está Deus?” Cada um à tua volta – esse é Deus.
Deus continua hoje a falar-nos como falou no presépio. Continua a dizer aos Homens que só no silêncio O podemos encontrar e nele o sentido da nossa vida. Quem não faz silêncio, não encontra nada. Apenas encontra aquilo que o barulho da sociedade dá: o dinheiro, as correrias, o poder, as influências, as grandezas materiais que quanto mais crescem mais esvaziam o Homem.
Deus do silêncio.
Deus do Presépio, faz que o teu silêncio domine a nossa vida. Que eu possa sempre encontrar o teu silêncio. O silêncio da Eternidade. O imortal silêncio. O silêncio onde Tu me falas. O silêncio da noite calma, da noite em que Tu te fazes Homem e vens habitar entre nós. Do teu presépio chega-nos esta mensagem: o silêncio da simplicidade. Esta manjedoura é onde deve nascer todo o Homem. E encontrar-se no silêncio de Deus.
Texto de Frederico Lourenço, publicado a 18 de dezembro de 2021 no seu Facebook
Natal 2021
Chega aquela época do ano em que, de novo, dou por mim a pensar no romance “Brideshead Revisited” de Evelyn Waugh e na conversa entre Charles e Sebastian sobre a fé.
Charles afirma-se não-crente e exprime a sua estranheza perante o facto de o amigo acreditar na lenda do Natal (com Reis Magos e burrinho junto da manjedoura). Diz Charles: “but my dear Sebastian, you can’t seriously believe it all… I mean about Christmas and the star and the three kings and the ox and the ass”. Ao que Sebastian responde: “oh yes, I believe that. It’s a lovely idea”.
Hoje terminámos mais um semestre de aulas na Universidade de Coimbra; e aproximamo-nos do fim de mais um ano de pandemia. Dou-me conta de que a “lovely idea” do Natal é mais precisa do que nunca: porque é capaz de consolar pessoas religiosas e pessoas sem nenhuma religião.
Na verdade, não preciso de acreditar que o menino deitado na manjedoura é filho de Deus para reconhecer a espantosa beleza da IDEIA de que o filho de Deus pudesse estar deitado num estábulo de animais, calmamente observado por um burro e por um boi.
No romance de Evelyn Waugh, Charles indigna-se (carinhosamente, claro) com Sebastian, retorquindo que não se pode justificar a fé religiosa com base na “beleza” da ideia do Natal. “But you can’t believe things because they’re a lovely idea”, remata.
Sebastian, impávido, responde: “but I do. That’s how I believe”.
A lenda do Natal na mitologia cristã tem o seu reverso, que – longe de ser “lovely” – é tragicamente ilustrativo da condição humana. Se o facto de o filho de Deus não ter vindo ao mundo num esplendoroso palácio da terra (mas sim na palha de um estábulo) sugere a mais requintada das verdades poéticas, já o massacre dos inocentes ordenado por Herodes faz soar uma nota amargamente realista, visto que genocídios e massacres pautam desde sempre a história da humanidade.
Deus decidiu vir ao mundo? Então o mundo é isto: é um lugar assolado por guerras e pandemias, onde um bebé recém nascido não só não tem abrigo condigno como está imediatamente na iminência de ser morto à nascença. Mais tarde, nesse mesmo menino já crescido, cuspir-lhe-ão em cima. Troçarão dele, arrancar-lhe-ão a roupa, fustigá-lo-ão de forma cruel, crucificá-lo-ão. Este “Deus” não veio ao mundo para ser recebido como Deus, mas como um marginal, um criminoso, um “pobre de Cristo”.
Sinceramente, continuo a não saber se acredito em Deus – embora me pareça cada vez mais que a mensagem de Jesus (tenha ele sido quem possa ter sido) é o maior presente que a humanidade até hoje recebeu.
E se há “lovely idea” alguma vez imaginada por alguém – esqueçamos a maldade inextirpável do ser humano, o cadastro horrendo da história da humanidade e este mundo (criado por Deus?) de pestes negras, de gripes espanholas e de coronavírus – essa ideia linda tem de ser o Natal.
No fundo, Sebastian tinha razão. A capacidade humana para ver e criar beleza é a grande redenção. E nesta ideia, sim, é possível acreditar.
Ensaísta, tradutor, ficcionista e poeta, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é atualmente professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Foi docente, entre 1989 e 2009, da Universidade de Lisboa, onde se licenciou em Línguas e Literaturas Clássicas (1988) e se doutorou em Literatura Grega (1999) com uma tese sobre Eurípides. Além da Ilíada, traduziu também a Odisseia de Homero, tragédias de Sófocles e de Eurípides, e peças de Goethe, Schiller e Arthur Schnitzler. Em 2016 iniciou na Quetzal a publicação dos seis volumes da sua tradução da Bíblia — que lhe valeu o Prémio Pessoa —, em 2019 publicou uma Nova Gramática do Latim e, em 2020, Poesia Grega de Hesíodo a Teócrito — edição bilingue em grego e português.