Arquivo mensal: Fevereiro 2022

Ser católico hoje

O que significa “católico” hoje? Para responder, devemos antes de tudo perguntar-nos: o que entendemos com “hoje”? “Hoje”, isto é, o tempo do cristianismo dividido. A divisão não diz respeito principalmente à separação entre as Igrejas, mas no interior delas. Hoje, ou seja, um tempo em que a credibilidade da Igreja atravessa uma das maiores crises.

Os escândalos dos abusos sexuais, psicológicos e eclesiásticos recentemente descobertos desempenham no nosso tempo um papel semelhante ao das indulgências que provocou a Reforma. Aquilo que inicialmente parecia um fenómeno marginal, mostra hoje – como então – problemas muito mais profundos, isto é, as disfunções do sistema: as relações entre Igreja e poder, clero e leigos e muitos outros. A situação da Igreja católica hoje é muito semelhante à da existente pouco antes da Reforma.

“Hoje”, isto é, um momento em que a Igreja se encontra perante uma grande tarefa: a passagem da forma atual à futura, rumo ao caminho sinodal.

O caminho sinodal não é apenas um caminho para a reforma, mas um caminho de reforma. Também aqui o percurso coincide com a meta. Os cristãos hoje, como ao início da sua história, devem ser “pessoas em caminho”. Jesus disse de si: Eu sou a via. A existência cristã é uma sequela, isto é, um movimento. Ao longo das veredas tortuosas do mundo de hoje procuramos as peugadas de Jesus, na polifonia do nosso tempo a voz de Jesus. Precisamos da arte do discernimento espiritual.

  1. Contra uma ideologização do cristianismo

Todos nós, cristãos, acreditamos numa Igreja una, santa, apostólica e universal. O que significa “católico”? É uma das notas características da Igreja. Uma comunidade de crentes que deixasse de tender para a catolicidade, para a abertura universal, perderia a sua identidade e autenticidade cristã.

Entre unidade, santidade, apostolicidade e catolicidade há uma conexão interna e uma compenetração, uma pericorese. O enfraquecimento de um destes quatro pilares da identidade da Igreja significa o enfraquecimento dos outros.

Unidade: unidade orgânica na diversidade. Santidade: consagração a Deus e pertença a Deus. Apostolicidade: fidelidade à missão e à Tradição apostólica. E catolicidade: universalidade, visão de conjunto, abertura: estas são as características principais da Igreja.

São carismas que a Igreja recebeu do Senhor da história e da Igreja como dom e tarefa para o seu caminho ao longo da história. São carismas, sementes de graça que, para crescer, precisam de um terreno favorável. São – juntamente com os outros carismas importantes – sementes da vida de Deus; nelas e através delas age e cresce a “dynamis” de Deus, o movimento do Espírito vivificante de Deus, que plasma, une, guia, torna a sanar e transforma a comunidade dos crentes.

Este movimento de crescimento e de maturação ocorre na história e finaliza-se no culminar escatológico do processo histórico. Só neste ponto ómega, no “eschaton”, aparecerão em toda a sua plenitude a unidade, a santidade, a apostolicidade e a catolicidade da Igreja.

No seio da história, a Igreja é “Communio viatorum”, um povo a caminho, que ainda não chegou ao destino. O desenvolvimento da Igreja não é uma estrada de sentido único, a teologia cristã da história difere das escatologias intramundanas. A nossa experiência em relação àqueles que prometeram o Paraíso na Terra e fizeram da Terra um inferno obriga-nos a manter uma distância crítica em relação às ideologias e às utopias políticas. É tarefa profética da Igreja relativizar toda a forma de idolatria, de relativizar a absolutização daquilo que é relativo.

Para nos distanciarmos da escatologia intramundana das ideologias seculares e das promessas do Paraíso na Terra, precisamos de uma certa “escatologia negativa”, análoga à “teologia negativa”. Compreender e descrever plenamente o “futuro absoluto”, a meta escatológica da história supera as nossas capacidades. Por isso, nenhuma situação da sociedade e do Estado, nenhuma forma de Igreja, nenhuma forma do nosso conhecimento teológico pode ser considerada perfeita e definitiva, como sendo o fim da história; em nenhum momento da nossa viagem podemos dizer: alto, é tão belo!

A Igreja tem a obrigação de exercer este serviço profético de “dessacralização” não só em relação às ideologias seculares, como o comunismo ou o nacionalismo, mas também contra as tentativas de ideologizar o cristianismo e desfigurar, assim, a sua vida.

Precisamos de uma “distinção escatológica”: de uma constante distinção entre a “ecclesia militans”, a Igreja aqui sobre a Terra, e a “ecclesia triumphans”, a Igreja glorificada no Céu. Se a “ecclesia militans” terrestre começa a considerar-se como “ecclesia triumphans”, como a forma perfeita da Igreja, comete o pecado do triunfalismo. Se a “ecclesia militans”, a Igreja militante, cessa de lutar contra a tentação do triunfalismo, torna-se um instrumento da religião militante; combate os outros e os não-conformistas presentes nas suas fileiras. Algo de semelhante aconteceu no islão com o conceito de “jihad”.

Uma das manifestações do triunfalismo é o clericalismo: aqueles que estavam destinados ao humilde serviço da comunidade tornam-se uma “classe dirigente”; um governo sacro (hierarquia) que reivindica o monopólio da verdade.

Sobretudo nos nossos dias confrontamo-nos com as consequências do abuso de poder e de autoridade na Igreja. O papa Francisco diagnosticou justamente o clericalismo como uma das principais causas dos atos de abuso, um clima de relações malsãs nas quais coisas do género eram possíveis. A nossa eclesiologia, a autocompreensão da Igreja, precisa do princípio da “kenosis”, do dom de si; o caminho sinodal deve ser um caminho de humildade que cura.

Como já foi dito, o caminho da Igreja na história não é uma estrada de sentido único, mas um drama de luta contínua entre graça e pecado. O drama da Páscoa continua na história da Igreja. Nós partilhamos não só a luz da manhã de Páscoa, mas também as trevas do Getsémani e do Calvário. Na vida da Igreja, nas suas crises e sofrimentos, nas suas feridas, continua também o sofrimento de Cristo, é uma “passio continua”. Não só no caminho espiritual de cada crente, mas também na história da Igreja houve sempre «noites escuras da fé».

Nas noites obscuras coletivas da história do mundo e da Igreja, precisamos da paciência da esperança para vencer a tentação do desespero, esta «doença que conduz à morte».

Muitas coisas – incluindo muitas formas de Igreja e formas imaturas de fé – têm de morrer. A ressurreição não é um regresso àquilo que era antes, mas uma mudança radical. Cristo ressuscitado chega aos seus amigos como um peregrino desconhecido.

Não só os sacramentos e as pregações da Igreja, mas também e sobretudo as expressões quotidianas da fé, esperança e caridade dos fiéis constituem o espaço da ressurreição em que se cumpre a “resurrectio continua”. Da mesma maneira são lugares de teofania: Deus está presente no mundo na fé, na esperança e no amor dos crentes. Também eles exprimem o carácter sacramental da Igreja, também eles fazem parte da liturgia em sentido mais amplo, também eles são o lugar em que Cristo ressuscitado vive e age.

O que significa a catolicidade da Igreja? É a sua abertura à vinda de Cristo ressuscitado, desconhecido, surpreendente. O Cristo ressuscitado é “semper maior”, sempre maior do que o que imaginámos até agora. Entra através das portas fechadas dos nossos medos, das nossas ideias limitadas, das definições dogmáticas, dos conceitos e das categorias.

Catolicismo hoje significa universalidade e ecumenismo em sentido mais amplo e profundo. O convite do Concílio Vaticano II ao diálogo ecuménico com as outras Igrejas cristãs, com os crentes de outras religiões e com os fautores do humanismo ateu foi o primeiro passo neste caminho. Contribuiu para libertar a catolicidade da Igreja do beco sem saída do “catolicismo”, do particularismo confessional, da redução a uma das “visões do mundo”.

Para esta deformação da Igreja contribuiu a sua estratégia defensiva e apologética após os dois grandes cismas, a estratégia de defesa contra o protestantismo e depois a defesa contra a cultura moderna, na sequência da cisão entre a teologia neoescolástica e o pensamento científico, filosófico e político do século XIX.

2. A Igreja deve distanciar-se de um catolicismo de guerras culturais

No caminho sinodal rumo a uma catolicidade credível, devemos libertar-nos de “um catolicismo” entendido como convulsa contracultura e instrumentos de guerras culturais. Além disso, a Igreja deve resistir constantemente à tentação do narcisismo coletivo, do egoísmo e da autorreferencialidade. Devemos estender o princípio da sinodalidade, o caminho de busca feito em conjunto às nossas relações com as pessoas de outras religiões e com quem não tem credo religioso. Para o cristianismo, esta autotranscendência não é uma perda de identidade, mas a atuação do mistério central do cristianismo, da mudança pascal.

Em vez de fazer proselitismo, deveremos cultivar uma cultura de acompanhamento e de diálogo, na qual se possa compreender não só a fé dos outros, mas também a nossa de maneira nova. A religião de amanhã deveria ser um “re-legere”, uma “releitura”, uma nova leitura, um novo repensamento, uma nova hermenêutica.

Catolicismo ecuménico hoje significa a coragem da autotranscendência da Igreja, de auto transcendência do cristianismo. Esta autotranscendência – superação das próprias fronteiras institucionais e mentais para com os outros – não é uma perda da identidade do cristianismo, antes uma atuação do mistério central do cristianismo, a mudança pascal.

Na véspera da sua eleição para pontífice, o cardeal Jorge Mario Bergoglio citou as palavras de Jesus: «Estou à porta e bato»; mas acrescentou que hoje Jesus bate de dentro da Igreja e quer sair, em particular para todos os pobres, os marginalizados e os feridos do nosso mundo, e nós devemos segui-lo. Mas devemos também avizinhar-nos de todos aqueles que estão em busca espiritual, não como detentores de toda a verdade, mas como aqueles que desejam caminhar junto a eles no respeito recíproco.

Um passo importante no caminho da catolicidade ecuménica foi a decisão do Concílio Vaticano II de utilizar o conceito de “subsistit in” para indicar a relação entre a Igreja de Cristo na sua plenitude escatológica e a Igreja católica no seu caminho na história. Segundo o cardeal Walter Kasper, isto implica duas importantes garantias.

Primeiro: nesta Igreja católica experimentável, existente aqui e agora, subsiste a Igreja de Cristo, essa misteriosa Esposa de Cristo, cuja plena glória e beleza se revelarão somente no horizonte escatológico na eternidade. Segundo: que esta Igreja católica romana não «ocupa todo o espaço» da Igreja de Cristo, de tal maneira que há um lugar legítimo par as outras Igrejas cristãs e para os carismas que Deus livremente dá para além das fronteiras visíveis da Igreja.

Analogamente, poder-se-ia talvez dizer que a verdade, que é o próprio Deus, existe na doutrina do Magistério, sem todavia esgotar em nenhum momento da história a plenitude do mistério de Deus. A afirmação que a doutrina oficial da Igreja apresenta a revelação de Deus de modo autêntico e em medida suficiente para a salvação, e que não se deve esperar qualquer outra revelação não significa seguramente que a Igreja pronuncie um interdito sobre posteriores ações do Espírito Santo.

Há ainda espaço para a livre efusão do Espírito que guia gradualmente os discípulos de Cristo à plenitude da verdade até ao fim da história. O ponto, no entanto, é que a abertura a novos dons do Espírito não significa perder de modo lastimoso e frívolo o respeito pela importância e irrevocabilidade do tesouro dos dons precedentes do mesmo Espírito; Jesus elogiou a sabedoria do dono de casa que extrai para fora do seu tesouro coisas novas e coisas velhas.

Também na fé da singular pessoa do cristão ou na de um determinado grupo de cristãos (por exemplo, uma escola teológica) vive a fé de toda a Igreja, a plenitude do ensinamento cristão; mas a fé e o conhecimento de um singular cristão ou de um determinado grupo cristão tem sempre os seus limites humanos (históricos, culturais, linguísticos e psicológicos) que o tornam incapaz de colher toda a fé da Igreja na sua plenitude. Por isso, também os crentes singulares e as singulares escolas de fé e espiritualidade precisam da Igreja no seu conjunto e, naturalmente, do seu Magistério, para se completarem e, eventualmente, corrigirem.

O crente singular participa na fé da Igreja na medida em que as suas capacidades pessoais permitem encarnar o tesouro da fé na sua compreensão, no seu pensamento e na sua ação. Já S. Tomás de Aquino ensinava, a propósito da fé implícita, que nenhum crente pode colher tudo o que a Igreja crê, mas que apenas uma parte dela é “explicitamente” compreendida e acolhida.

Aquele que acredita possui uma “participação implícita” naquilo que está para além da sua compreensão e conhecimento através do ato de confiança em Deus e na sua revelação, e , naturalmente, também na Igreja que apresenta essa revelação. Este conhecimento deveria conduzir à humildade e a reconhecer a necessidade da comunicação e do diálogo na Igreja.

Além disso, a fé cristã nunca preenche totalmente (provavelmente nem sequer nos santos e nos místicos) todo o espaço ada alma humana, a parte consciente e inconsciente da psique. Neste sentido, compreendo a afirmação do Card. Jean Daniélou segundo a qual «um cristão é sempre parcialmente um pagão batizado».

Certamente, o Batismo tem o carácter de sinal indelével (“signum indelebile”) e de participação real no corpo místico de Cristo, mas a graça do Batismo pera dinamicamente no ser humano e confere-lhe um crescimento e uma maturação na fé, enquanto o ser humano abre a ela o espaço da sua liberdade a todos os níveis da sua existência.

Se a fé da Igreja subsiste (“subsistit in”) na vida espiritual do crente, a ciência religiosa recebida não preenche todavia todo o espaço da sua vida espiritual, e então permanece no seu espírito e no seu coração um lugar legítimo de indagação sobre interrogações críticas e dúvidas sinceras. É salutar para ele perguntar-se humildemente se o seu caminho de fé é autêntico, se é fiel à tradição, mas também sobre como Deus o guia na sua consciência. Por isso, o destinatário final das suas interrogações não pode ser só a autoridade eclesiástica, mas o próprio Deus, presente no santuário da sua consciência, Deus que lhe fala não só nos ensinamentos da Igreja, mas também nos sinais dos tempos e nos acontecimentos da sua própria vida.

O dom da fé, que lhe é transmitido através da educação ou do influxo do ambiente, ou obtido como fruto de uma busca pessoal, é sempre um dom incomensuravelmente precioso da graça de Deus, mas igualmente preciosa é essa «inquietação do coração humano» de que fala Santo Agostinho. Esta inquietação não permite acomodar-se a uma certa forma de fé acolhida ou alcançada, mas é sempre busca e desejo de ir além. Também as interrogações críticas, as dúvidas e as crises de fé podem imprimir impulsos preciosos neste caminho.

Também eles podem ser considerados como um dom de Deus, como uma “graça adjuvante”. O Espírito de Deus não só ilumina a razão do ser humano, mas age também como “intuição” no profundo do seu inconsciente, e esta consciência é preciosa para refletir sobre a “fé dos não-crentes”; também as pessoas que não foram alcançadas pelo anúncio da Igreja, ou não o receberam de uma forma tal que o possam aceitar honestamente, podem ter uma certa intuição da fé. O diálogo de fé da Igreja com esta “fé intuitiva” de pessoas longínquas da Igreja pode ser útil para ambas as partes.

3. Não se deter nas formas habituais

«Deus é maior que os nossos corações», afirma S. Paulo. Mas o “nosso coração” é maior do que aquilo que a nossa razão, as nossas “convicções religiosas”, os nossos atos de fé conscientes e reflexos, as nossas “profissões de fé” sabem de Deus. Na tradição agostiniana, Blaise Pascal, em particular, conhecia aquela “razão do coração” (“raison”), de que a razão (“ragion pura”) não sabe nada. Mas devemos estar atentos para não limitar o conceito bíblico, agostininano e pascaliano do coração à única “emotividade”.

C.G. Jung sustentava que a componente consciente e racional da nossa psique é como uma minúscula parte de um icebergue que emerge do mar; a parte maior e mais importante está no inconsciente, não só pessoal mas também no “inconsciente coletivo”. É aí que nascem as ideias, as inspirações, as razões ocultas do nosso agir. Talvez se possa dizer que a psicologia do profundo descreve com outras palavras ou numa outra perspetiva a experiência dos místicos, segundo a qual «a alma não tem fundo»: a profundidade do ser humano é compenetrada pela profundidade que chamamos Deus, como lemos nas palavras do salmo «o abismo chama o abismo» (42, 8).

Quando Deus, que é «maior que o nosso coração», entra na nossa vida, alarga ao infinito a profundidade e a abertura do nosso ser, que nós simbolicamente chamamos coração. Em nós acontece algo de mais significativo e maior de quanto podemos “compreender” e “esgotar” com as nossas práticas religiosas normais.

Por isso, é importante não permanecer no ponto em que estamos, não ficarmos satisfeitos com a forma habitual, mas continuar a procurar, mesmo quando a busca é acompanhada de crises e emergem interrogações difíceis que vão para além das respostas características oferecidas pela tradição.

À medida que a nossa fé amadurece na nossa história pessoal e na história da Igreja, cresce e desenvolve-se também a catolicidade da Igreja. «Somos desde já filhos de Deus. Mas o que seremos ainda não foi revelado» (1 João 3, 2).

Tomáš Halík
In Settimana News
Trad.: Rui Jorge Martins

Ser e dar afeto(s)

O neuropsicólogo espanhol Álvaro Bilbao, a propósito da reedição em Portugal do seu livro “O Cérebro da Criança explicado aos Pais” fala, nesta entrevista ao site sapo.pt de temas fulcrais tais como o amor, os limites, a atenção, os afetos, as escolhas, os abraços, o futuro. Das crianças e do mundo, isto é, de todos nós, pais, educadores, família, professores, amigos. Todos somos educadores, todos somos responsáveis uns pelos outros, grandes e pequenos. Na introdução do seu livro, o autor defende que “educar uma criança é uma grande responsabilidade e, provavelmente, o ato mais importante da vida de muitas pessoas”. Todos somos responsáveis uns pelos outros, pelo bem-estar uns dos outros, pelo crescimento não só físico, mas também espiritual das nossas crianças tendo em vista o seu desenvolvimento integral. Lutemos contra a indiferença que tantas vezes teima em dominar o nosso dia-a-dia e nos impede de fazermos do nosso presente um lugar de afetos. Quando deixamos de cuidar do(s) outro(s), estamos a condicionar o futuro de quem cresce connosco. Mas quando assumimos esse cuidado, somos todos responsáveis pela(s) vida(s) que crescem connosco.

Entrevista a Álvaro Bilbao

  • A pandemia trouxe ao contexto familiar, não excluindo as crianças, ansiedade e medo. Essas manifestações são transitórias ou deixarão marcas no futuro?

A ansiedade e o receio que terão experimentado algumas crianças, cujos pais viveram especialmente o medo e com precauções excessivas, poderão trazer problemas psicológicos no futuro, tais como uma maior vulnerabilidade à ansiedade. Um dos fatores que melhor prevê se uma pessoa em idade adulta voltará a sofrer de ansiedade, é se viveu anteriormente outros episódios de ansiedade. Esta é uma porta que, uma vez aberta, não volta a fechar-se. No entanto, estou bastante otimista, as crianças são resistentes e resilientes. Um bom trabalho dos pais, o regresso à normalidade, antevê que as crianças terão uma vida adulta tranquila. É verdade que nalguns casos estarão mais vulneráveis ao medo. Daí, penso que poderão aumentar ligeiramente os casos de transtornos que se manifestam entre os 12 e os 14 anos de idade, associados ao controlo e ao medo, como as perturbações obsessivo-compulsiva, as fobias e anorexia. Mas, julgo, serão poucos casos e que, na sua grande maioria estarão controlados.

  • Os confinamentos também trouxeram aspetos positivos na relação entre pais e filhos?

Creio que sim. Muitos pais contaram-me que o confinamento foi uma época dura mas bonita, porque passaram mais tempo com os seus filhos. Tomavam o pequeno-almoço juntos, cozinhavam juntos, faziam os trabalhos de casa com os filhos, divertiam-se com jogos de tabuleiro. Claro que não foi assim para todas as famílias. Sabemos que há casos terríveis, com maus-tratos sobre mulheres e crianças. Podemos imaginar o dia a dia de uma criança, ‘presa’ em casa, que sofre abusos sexuais de um progenitor.

  • O Álvaro Bilbao é pai. Que recordações tira dos confinamentos em família com os seus filhos?

Estou no grupo das pessoas para quem os confinamentos e a pandemia foram uma oportunidade de aproximação familiar. Antes, passava muitas horas no hospital, em consultas, assim como na escrita dos meus livros. O confinamento permitiu-me estar na companhia dos meus filhos, sem deixar de acompanhar os meus pacientes. Reduzi as horas de trabalho, fizemos jogos e vídeos em família e muitas conversas online com os avós.

  • Lemos no seu livro a frase: “a infância é o jardim em que vamos brincar quando formos adultos”. Existem manifestações do nosso cérebro infantil no nosso cérebro adulto?

Não consegue imaginar todas as coisas que fazemos em adultos que ficaram gravadas no nosso cérebro infantil. Por exemplo, nas consultas, acompanho adultos que apresentam preocupações associadas à falta de poder aquisitivo, como o medo de ficarem na pobreza, e que estão ligadas a questões das suas infâncias, por terem vivido em famílias com dificuldades económicas. O medo de subir num elevador pode vir de algo que vimos acontecer aos nossos pais nesse contexto. Os filhos de pacientes que, por exemplo, têm esquizofrenia, crescem com medo de padecer de doença mental. Há conflitos que surgem entre o ‘papá’ e a ‘mamã’ por quererem fazer as coisas tal como eram feitas nas casas da sua infância. Também encontramos aspetos positivos. Por exemplo se os nossos pais gostavam de fazer exercício, ou passar o fim de semana em família, também poderemos gostar.

  • Escreve que o nosso cérebro reúne até aos seis anos um potencial que nunca mais voltará a ter. Que potencial é este?

Durante os primeiros seis anos de vida, o nosso cérebro desenvolve infindáveis conexões que, podemos dizer, são como os pilares de uma casa. São fortes, mas também devemos permitir-lhes alguma flexibilidade. Mais tarde, criará no adulto umas fundações fortes. O cérebro das crianças, nestes primeiros anos, sedimenta estes pilares que lhe trarão maior ou menor confiança na vida futura, desenvolvimento da linguagem e bases para resolver problemas e tomar decisões. Há que dar à criança muito afeto – todo, será sempre pouco -, mas também há que começar a construir com a criança limites e normas. Depois do afeto e dos limites, o terceiro aspeto mais importante é dar atenção, tempo e responder às necessidades da criança de uma forma consistente. Se a criança tem fome, damos-lhe de comer; se tem sono pomo-la a dormir; se está preocupada, há que escutá-la; se tem medo, vamos protegê-la. No fundo, sentir-se segura a todo o momento e saber educar sem gritos ou ameaças.

  • Escutamos pouco os nossos filhos?

Como pais, muitas vezes não escutamos os nossos filhos. As crianças vão crescer com a ideia de que aquilo que dizem não é importante e, consequentemente, não se sentem importantes. A conversação é muito importante para as crianças entenderem as suas emoções e sentimentos, mas também para desenvolverem a memória, a concentração, a atenção e o vocabulário.

  • No seu livro utiliza a metáfora de que temos três cérebros em um para nos explicar as diferentes etapas de desenvolvimento e estruturas deste órgão. Que ‘cérebros’ são estes e como podem os pais com eles comunicar?

O cérebro humano desenvolveu-se ao longo de milhões de anos. Os diferentes passos dessa evolução ficaram refletidos na configuração do cérebro, com estruturas mais antigas e outras mais modernas.  Na metáfora que utilizo, o primeiro cérebro é o primitivo, o que herdamos dos nossos antepassados mais remotos, as criaturas que saíram dos oceanos e começaram a colonizar a Terra. Este cérebro primitivo satisfaz cinco necessidade básicas: o sono, a alimentação, a temperatura corporal, a proteção contra os perigos e, finalmente, a reprodução. Nas crianças mais pequenas esta última necessidade não está presente, embora haja manifestações como a sensação de enamoramento das crianças com a ‘mamã’. Mas não tem a ver com órgãos reprodutores, antes a nível emocional, pois é a mãe a pessoa que vemos como auxílio. As restantes quatro necessidades são importantes.  A criança tem de sentir que não terá fome ou frio, que pode descansar sempre que necessitar e que os pais a protegem de perigos como, por exemplo, de um cão que o quer morder; de um irmão que lhe quer pegar. Comunicamos com este cérebro através de ações, quando dizemos à criança que tem de ir para a cama dormir.

  • Qual é o segundo cérebro desta sua metáfora?

O emocional. A sua função básica é recordar aquelas coisas que nos fazem sentir bem e provir a nossa sobrevivência, ou o inverso, as coisas que nos fazem sentir mal, pondo em perigo essa sobrevivência. Comunicamos com este cérebro através da empatia, dizendo à criança palavras e frases que a façam sentir-se compreendida. No fundo, sentir que entendemos o que lhe está a acontecer. Em primeiro lugar, a criança sentirá que as suas emoções existem; em segundo, que são adequadas e, em terceiro, compreender-se-á a si mesma e que é alguém valioso. Desta forma, vai saber quais os amigos com quem se sente bem, as coisas de que mais gosta ou menos gosta. Muitos adultos não se compreendem a sim mesmos porque não tiveram, durante a sua infância, este aspeto emocional. Em vez de gritar com uma criança, há que perceber porque está zangada. Sempre que pomos palavras nas emoções, estamos a comunicar com o cérebro emocional. Por último, o terceiro cérebro, o racional ou superior, é aquele que contém a lógica, a memória, a razão e a consciência de nós mesmos. Todas essas funções racionais, estão acessíveis para comunicação através da palavra. Mas, há que entender que, quase sempre, quando uma criança expressa uma ideia, corre atrás de necessidades básicas. Se quer subir a uma árvore e pede uma cadeira, está a expressar a sua necessidade de ser mais forte e de que o pai ou a mãe a vejam.

  • Refere que educar é simplesmente apoiar a criança no desenvolvimento de seu cérebro. A fórmula é assim tão simples ou há muita complexidade escondida nessa ação?

Enquanto pais queremos ajudar os nossos filhos a que cresçam felizes, que tenham sucesso na vida, que se relacionem com o próximo. O segredo para tudo isto está em ajudá-los a ter um bom cérebro, ou seja, que os três cérebros que referi, o primitivo, o emocional e o racional cooperem. Isto é complexo, até para quem há muito pratica a neuropsicologia como eu. Todos os dias aprendo com os pais. No livro, procuro traduzir todos os conhecimentos de neurociência, de psicologia infantil de uma forma clara e simples.

  • Os seres humanos sempre usaram ferramentas. No seu livro apresenta-nos ferramentas úteis na educação da criança. Muitos pais quererão saber quais são essas ferramentas. Pode dar-nos dois ou três exemplos?

Sim. Uma das ferramentas é a empatia, ou seja, a ligação com a criança e o entendimento. É importante, pois muitos dos conflitos emocionais que há na família resolvem-se com a prática da empatia. Os pais que dominam a empatia e compreendem como esta é importante, estão a educar um futuro adulto que se ligará aos seus filhos de uma forma magnífica. Também é importante saber estabelecer limites, pois as crianças precisam deles. Sou adepto da educação pela positiva, mas também sou um defensor dos limites, mas sem extremismos. Há pessoas que são muito extremistas e que não gostam que se destaque o afeto, porque defendem uma educação rígida; outras que consideram que só deve haver amor. Algo que está provado cientificamente é que o cérebro precisa de muito amor e limites. As crianças devem ter o reconhecimento dos pais, aquilo a que chamo reforços. Não se pode confundir reforço com prémio, pois este é negativo. Por sua vez, com o reforço, em momentos-chave, a criança ganhará confiança. Por exemplo, no meu trabalho satisfaz-me quando um paciente me agradece. É reforço, não um prémio. Por último, temos tudo o que se relaciona com as alternativas aos castigos. Os castigos não são positivos no desenvolvimento da criança e há ferramentas alternativas, como a reparação de ações que magoaram outras pessoas ou danificaram objetos.

  • Atualmente, vemos muitas crianças diagnosticadas com défice de atenção. O Álvaro Bilbao é crítico em relação à prevalência deste diagnóstico. Porquê?

Porque temos de ser mais pacientes, entendermos melhor as necessidades da criança. Temos de entender que as crianças precisam de brincar, de se mexer. O défice de atenção só se transforma num problema se não permitir à criança ter uma vida normal. Se tivermos pais e professores pouco pacientes, a criança não pode fazer uma vida normal e terá transtorno. Se formos mais pacientes, se dermos à criança mais tempo para se comportar bem, o índice de diagnósticos de défice de atenção será menor. Os pais têm de saber como propiciar tranquilidade às crianças seja a impor-lhes limites, como já referi, e a saber acalmá-los. Nesse sentido, é também importante que as crianças não usem tantos ecrãs, que lhes subtraem a atenção e aumentam a sua impulsividade.

  • As crianças precisam de mais atenção e menos medicamentos psicotrópicos?

Sem qualquer dúvida. Muitos estudos dizem-nos, por exemplo, que o índice de melhoria [índice de eficácia] da depressão com medicação do tipo de inibidores seletivos da recaptação da serotonina, como o Prozac, é de 75%. Também sabemos que uma intervenção psicológica adequada reduz igualmente a depressão em 75%. Porque não praticamos mais a psicologia e menos a medicação? Porque esta é mais barata, mais cómoda e mais rápida para os sistemas de saúde, mas é menos positiva a longo prazo. Os pacientes que fazem psicoterapia correm menos risco de depressões a longo prazo. Fenómeno semelhante passa-se com as crianças. As que têm uma boa intervenção psicológica, por exemplo no défice de atenção e na ansiedade, correm um menor risco de terem problemas no futuro.