Arquivo mensal: Maio 2022

Uma Força que nos leva

Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

O jornalista Luís Osório publicou, no seu mural de Facebook, um texto sobre o acidente que vitimou, no sábado passado, alguns dos ocupantes de um autocarro que seguia na A1 a caminho de Fátima. Não é um texto sobre as circunstâncias ou os porquês do acidente. Não é um texto sobre a finitude da vida humana ou sobre a efemeridade da nossa passagem terrena. Não é um texto sobre morte. É antes uma reflexão sobre como no meio da morte a vida continua a fluir, sobre como é possível viver a Força quando tudo à nossa volta parece ruir. É ainda um texto sobre a Páscoa, sobre passagem de testemunho. É um hino de ação de graças. É um quadro para o qual devemos olhar sempre que o nosso egoísmo nos vence, sempre que a indiferença nos ataca, sempre que nos esquecemos dos outros. É um apelo a não nos deixarmos derrotar pelo pessimismo, pela ingratidão, pela rabugice que estão sempre à espreita para nos fazer cair na tentação de sermos menos humanos. Por isso, este texto do jornalista Luís Osório é sobre a vida que vence sempre a morte, sobre fortaleza que nos preenche quando a fraqueza nos quer dominar nos momentos sombrios.

Quando a Lara partilhou este texto no nosso grupo, entendi-o tão claramente como se já o conhecesse. Emocionei-me. Pela visão que revela. Pelos sentimentos partilhados. Pelas memórias que me trouxe. Quem já viveu as partidas de quem se ama, entenderá certamente esta Força que, naqueles momentos mais dolorosos, nos acolhe e nos faz caminhar e ser consolo e abrigo para quem está perto de nós. E foi exatamente esta Força que eu experimentei no momento em que o Jorge morreu e que se estendeu nos dias seguintes com tantas manifestações de amor e de vida. Senti-me invadida por uma força tão intensa, tão visceral, tão profunda que me impelia a cuidar de quem estava à minha volta e a levar Vida, sempre a Vida a quem precisava. Há quem chame a esta força um instinto de sobrevivência, uma fuga à realidade. Mas para quem acredita, esta Força sentida e vivida tem um nome – Deus. Uma Força que ainda hoje me arrepia sempre que a sinto e que me leva a querer ser sempre Luz. Uma Força que me(nos) leva a continuar a caminhar nesta Estrada Clara. Não podemos evitar a dor da morte e o sofrimento naturalmente inerente a estas tragédias. Mas podemos confiar. Acreditar. O Amor não morre. Vive em cada um de nós que o aceitamos. Vive quando escolhemos ser Luz! E assim brilhamos, brilham as nossas obras, brilha o nosso Deus! Como Luís Osório afirma no seu texto: “em cada lugar improvável pode existir um farol para nos iluminar. Um farol que nos obrigue a ser todos os dias um bocadinho melhores.” Possamos nós ser esse farol. Sempre. Não deixemos que a nossa Luz se apague. Escolhamos o Bem. A vida. Em cada dia. Hoje.

POSTAL DO DIA, um texto do jornalista Luís Osório, retirado do seu Facebook

A caminho de Fátima, e a meio de um terço, o herói não estava na camioneta

1.

A camioneta ia a caminho de Fátima. Na manhã do último sábado o tempo ameaçava felicidade e as pessoas estavam, também por isso, descontraídas e de farnel posto. Comidas e bebidas para que o dia não fosse apenas de fé e orações, mas também de “mesa” farta. Todos acordaram de madrugada. De terras pequenas do concelho de Guimarães acomodaram-se no autocarro do senhor António. Com casa posta no Airão de Santa Maria fazia questão de ser ele a conduzir a vizinhança. Às 9 e meia da manhã já estavam na Mealhada. Cantaram canções da Igreja. E seguiram as preces da Dona Emília Castro. Todos a adoravam. Todos a ouviam. Todos sentiam que ela, de alguma maneira, era o passaporte para melhor serem ouvidos por Deus. Emília era uma excelente pessoa. Preocupada, ativa. Ajudava na paróquia, ajudava os vizinhos, liderava o coro de Figueiredo, era catequista e o seu marido António, bombeiro há mais de 30 anos.

2.

Uns minutos antes do pneu dianteiro rebentar, Emília levantara-se, pegara no microfone e começara a rezar o terço. Estavam a rezar as palavras mágicas quando tudo aconteceu. Emília foi cuspida com o embate. António, condutor da camioneta, também morreu. Assim como um vizinho de Emília, o senhor Alberto Soares, que ia à frente por causa dos enjoos. Com quase 80 anos já não tinha cabedal para aguentar sem o mínimo de conforto.

3.

Um dia pensarei convosco sobre os que morrem a caminho de algum lugar onde julgam que tudo se iluminará. Num minuto a cabeça enevoada com o “Bem” e no outro minuto a morte a chegar trágica e fúnebre.

Mas hoje quero falar-vos do que me impressionou.  Se tiverem mais trinta segundos, eu conto-vos. Pouco tempo após o acidente os bombeiros das Taipas foram avisados do desastre. O bombeiro António Silva, marido de Emília, meteu-se ao caminho com os seus companheiros – e a meio do percurso, a poucos quilómetros da Bairrada, recebeu a informação de que a sua mulher, mãe dos seus três filhos, tinha morrido. António seguiu caminho e naqueles curtos minutos chorou uma parte da vida que perdera. Não sabemos se telefonou a alguém, não sabemos também por quem foi abraçado, se gritou ou não, não sabemos e pouco ou nada importa.

4.

O que sabemos, o que nos dizem os relatos, é que António ao chegar ao lugar da tragédia foi ajudar quem precisava. A sua mulher estava morta com um lençol por cima, mas ele cumpriu a sua missão com os feridos, com os que estavam em choque, com quem precisava.

Sabem…

Eu costumo muitas e muitas vezes falar do grande mistério que é o “Bem”. Nós nunca desconfiamos do “Mal”, mas do “Bem” a primeira coisa que fazemos é desconfiar.

Mas há pessoas maravilhosas. Há pessoas de uma coragem e verticalidade a toda a prova. Há pessoas que são heróis, mas que ninguém conhece. Talvez no nosso prédio. Talvez na aldeia mais recôndita. Talvez no lugar mais escarpado. E no lugar de Figueiredo, concelho de Guimarães, terra com pouco mais de 400 habitantes, há também um herói. Chama-se António, é bombeiro há 30 anos e tem três filhos, um deles menor. Era casado com Emília, a mulher que rezava o terço e liderava o coro. O homem que hoje abraçamos merece que dele não nos esqueçamos. Eu não me esquecerei que em cada lugar improvável pode existir um farol para nos iluminar. Um farol que nos obrigue a ser todos os dias um bocadinho melhores.

No primeiro dia…

Reflexão para o mês de Maio de 2022

Ver com o coração

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

“Entrou também o outro discípulo que chegara primeiro ao sepulcro: ele viu e acreditou.” (Jo 20, 8)

Vivemos ainda por estes dias um tempo de festa, o tempo pascal, o tempo que nos diz que a vida não tem fim, que o futuro espera-nos, que a esperança vem até nós para fazer caminho connosco. No domingo de Páscoa, a liturgia do dia recordou-nos a narrativa dessa manhã maior, a manhã inaugural da nossa fé, a manhã da também sempre nossa Ressurreição. Sim, a Ressurreição é de cada um de nós, porque é sempre o momento em que eu decido deixar para trás tudo aquilo que me limita e inicio um novo caminho. Sim, a Ressurreição faz de mim uma nova criatura, faz-me nascer de novo, faz-me passar da morte para a vida.

A Ressurreição de Jesus é o maior acontecimento da vida cristã. O que distingue a Ressurreição de outros eventos históricos é o facto de este mesmo acontecimento só poder ser visto e vivido com os olhos da fé. Ninguém põe em causa o nascimento de Jesus nem a existência história desta figura maior. O seu “modus operandi” marcado por mensagens de amor, solidariedade e igualdade fez história não só no seu tempo, mas sobretudo nos tempos seguintes. A sua morte foi comprovada e semelhante à de outros daquela época. Mas, quando se refere a sua Ressurreição, as dúvidas aparecem e não se encontram factos concretos que possam comprovar plenamente este acontecimento. E isto é assim porque a Ressurreição só pode ser lida numa dimensão de mistério, só pode ser vivida na medida do Amor. Esta é a grande exigência cristã. Acreditar no que não é certo, acreditar no que parece ser estranho, acreditar no que não está lá.

A Ressurreição de Jesus não é explicável, não é factual. A Ressurreição de Jesus só se torna visível quando decidimos que queremos ver, que desejamos acreditar, que ousamos contemplar o que o terreno não nos oferece. Este acontecimento maior daquela manhã de Páscoa é o abraço que eu dou ao mistério do indescritível, é o meu desafio, enquanto cristã, que me impele a escolher viver esta dimensão maior e tão contrária a um mundo que só exige certezas e provas irrefutáveis.

Na narrativa do Evangelho de João, há dois verbos que compõem o acontecimento da Ressurreição: ver e acreditar. João refere que o discípulo amigo de Jesus, aquele que chega primeiro ao sepulcro, vê o espaço vazio e acredita. O discípulo vê o vazio, vê o nada, vê o que não lá está. E isso é tudo! O discípulo não viu nada, ou melhor, viu o nada que, afinal, é o Tudo. Viu um sepulcro vazio, mas cheio de uma morte vencida. Viu o invisível, mas o que se pode sentir. Viu o que não se pode contabilizar, porque viu o Amor e o Amor não tem medida. E, então, pode acreditar. Acreditou. Compreendeu. Ele quis ver para além das aparências, daquilo que era óbvio. Escolheu ver com os olhos da fé e, assim, foi capaz de ver mais, perceber mais, viver mais, experimentar mais.

A postura do discípulo no Evangelho de João mostra-nos que uma atitude de disponibilidade é essencial para a nossa caminhada na construção da nossa fé. A fé capacita-nos a entender o que está para além da nossa compreensão humana e, por isso mesmo, limitada. Precisamos de ver com os olhos do coração aquilo que a razão não alcança. Precisamos de ver com o coração para além das aparências, para além do material. De nada nos serve dizer que acreditamos se apenas nos deixamos levar pelo que é apenas concreto. A doce obra “O Principezinho” recorda-nos sempre que “o essencial é invisível aos olhos, só se vê bem com o coração”. Sim, só quando nos dispomos a querer ver com os olhos do coração é que o Amor se torna visível, é que a Vida se torna eterna. E assim acreditamos.

Naquele domingo maior, os discípulos e as mulheres viram muito mais que um sepulcro vazio. Os seus olhos encheram-se de uma sabedoria eterna e perceberam que Ele não está, estando. Eles viram os seus sinais porque assim se permitiram a deixar ver. Eles deixaram de lado os seus preconceitos, as suas reservas, os seus medos. Confiaram. Abriram os seus olhos e os seus corações ao que lhes estava a acontecer. Mesmo sem terem respostas dadas pela racionalidade, fizeram uma escolha: quiseram ver! E assim acreditaram. E assim lhes foi dado um mundo novo! Também nós somos, todos os dias, chamados a fazer esta escolha: a de querer ver com o coração. A Ressurreição de Jesus só se torna acontecimento visível para nós quando escolhemos acreditar que Ele continua vivo hoje. Nós podemos ser essa Ressurreição quando nos comprometemos, nos nossos contextos de vida, a sermos as suas testemunhas. Quando fazemos de cada gesto nosso um gesto de Ressurreição, de proclamação de vida nova, de triunfo de um Amor que nos salva.  

A experiência da Páscoa anuncia-nos que é possível acreditar quando eu escolho ver, quando eu me permito contemplar a vida com o coração, quando eu não deixo que a indiferença ou a dureza da vida me dominem. Aquele cego em Jericó pediu a Jesus, “Senhor, que eu veja”. Que seja também este o nosso pedido. Senhor, que eu veja a tua luz nos meus caminhos. Que eu acredite sem reservas. Que eu abra espaço para o indizível. Que eu seja Páscoa em cada um dos meus dias. Que eu te queira ver sempre. Que eu procure permanentemente a beleza e a harmonia, a serenidade e o infinito. Que os meus olhos digam que tu ressuscitaste por mim, para mim. Que eu dance ao sabor da minha fé, tantas vezes frágil, mas que é sempre caminho que me leva a ti. Aleluia! Eu vejo. Eu acredito.