Arquivo mensal: Junho 2022

Nasces hoje mais uma vez!

Nascemos e jamais morreremos!

O meu mantra diário, especialmente nos dias, digamos, mais desafiadores. Nos dias em que as lembranças se tornam mais fortes, em que as memórias aparecem abruptamente, em que a dor de ti diz presente. Desafiadora tem sido a vida! O fazer de cada dia uma escolha de gratidão. Jorge, o que tua vida nos pede é isto, viver! Aproveitar cada partilha, fazer diferente, pensar no infinito. Cuidar de quem está à nossa volta. Escolher fazer um caminho que não é sinónimo de facilidade. E nós fomos privilegiados por caminharmos contigo. E continuamos a sê-lo por seguirmos juntos neste mesmo caminho, neste projeto de vida, nesta nossa Estrada Clara. E assim tu continuas a nascer nas músicas, nos livros, nos nossos gestos, nos olhares, nos silêncios. Nessa dimensão eterna onde tu estás, continuas a olhar por cada um de nós. Tanto de belo nos tem acontecido, só pode ser por influência tua. Tantas experiências bonitas temos vivido, tantas palavras edificadoras têm vindo ao nosso encontro, tantos abraços fortes nos têm oferecido. Só podes ser tu. Tantas novidades luminosas, tantos encontros a surgirem, tanta energia boa a multiplicar-se. És tu! Aqui! É por isso que quando em mim há a luta entre a tristeza de não te ter em casa à minha espera (“Luísa, Luisinha, você já veio?”) e a alegria de ter construído contigo a minha vida, procuro sempre que só a esperança prevaleça. A esperança de fazer de cada dia um reflexo do tanto que aprendi contigo. A esperança de que esta Comunidade Estrada Clara faça a diferença e seja um projeto de vida maior do que nós próprios. A esperança de que, num dia (muito distante, ainda há muito para fazer e aprender aqui!) quando nos encontrarmos, não haverá mais esta dor. Só paz. Muita, muita luz. E o tempo eterno. Risos de aleluia intermináveis. Abraços demorados. O silêncio. As pulseiras nos braços e os anéis. E o azul, sempre o azul. O arrozinho joia! As conversas longas sobre a essência da vida ou máquinas de lavar. Muita música em tonalidades altíssimas. As tuas plantinhas. Um banco em madeira. Os passeios de fim de tarde. Um campo para cultivar. E o teu bolo de “cinoira”. Parabéns a ti, Jorge! Nasces hoje mais uma vez!

O Deus de Nick Cave

Georgiana Houghton – The Love of God

O músico Nick Cave, mundialmente reconhecido pelo seu estatuto de estrela musical, é muito mais que isso. Nos últimos anos, a escrita toma-lhe parte da vida diária e, desde setembro de 2018, no blogue em que mantém correspondência com os seus fãs (The Red Hand Files – https://www.theredhandfiles.com/), o músico responde a uma série de questões que lhe vão colocando acerca de variados temas que vão desde a música até ao gosto pelos animais, ou sobre a pandemia, religião e assuntos políticos. Das mais bizarras ou desconcertantes, íntimas e poéticas, às mais banais e previsíveis, todas as perguntas que lhe são colocadas têm uma resposta que nos é próxima. Num tom eloquente e sensível, o artista responde através da vida, num diálogo direto com as próprias vidas de quem o escuta/lê. São textos de uma beleza pura, real, quotidiana que nos tocam onde precisamos sentir. São cartas que são para todos e para cada um de nós individualmente. São um foco de espiritualidade e de alguém que nos diz que “assumi, por razões de sobrevivência, um compromisso com a natureza incerta do mundo. É aqui que o meu coração está.” Podem subscrever a newsletter deste blogue de Nick Cave e assim receber estas cartas de vida. Aqui, transcrevemos uma dessas cartas, na qual o músico responde à eterna, mas sempre nova questão: “O que é Deus?”.

Na sua opinião, o que é Deus?

Cara Sue,

Deus é amor, e é por isso que tenho dificuldade em me relacionar com a posição ateísta. Cada um de nós, mesmo os mais resistentes espiritualmente, anseia pelo amor, quer o realizemos ou não. E este anseio chama-nos para sempre em direção ao seu objetivo – que devemos amar cada amor. Temos de nos amar uns aos outros. E sobretudo penso que o fazemos – ou vivemos muito perto da ideia, porque quase não há distância entre um sentimento de neutralidade em relação ao mundo e um amor crucial por ele, quase não há distância alguma. Tudo o que é necessário para passar da indiferença ao amor é ter os nossos corações partidos. O coração despedaça-se e o mundo explode à nossa frente como uma revelação.

Não há um problema do mal. Há apenas um problema do bem. Porque é que um mundo que é tão frequentemente cruel, insiste em ser belo, em ser bom? Por que é necessária uma devastação para que o mundo revele a sua verdadeira natureza espiritual? Não sei a resposta a isto, mas sei que existe uma espécie de potencialidade logo após um trauma. Suspeito que o trauma é o fogo purificador através do qual encontramos verdadeiramente o bem no mundo.

Todos os dias rezo para o silêncio. Rezo a todos eles. A todos eles que não estão aqui. Neste vazio, derramo todo o meu desejo e necessidade, e com o tempo esta ausência torna-se potente e viva e ativada com uma promessa. Esta promessa que se senta dentro do silêncio é suficientemente bela. Esta promessa, neste momento, é suficientemente espantosa. Esta promessa, neste preciso momento, é Deus suficiente. Esta promessa, neste preciso momento, é o máximo que podemos suportar.

Com amor,

Nick

No primeiro dia…

Reflexão para o mês de Junho de 2022

Guardar o que é bom

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

“Examinai tudo. Guardai o que é bom. Afastai-vos de toda a espécie de mal.” (da 1.ª Carta de São Paulo aos Tessalonicenses 5, 21-22)

A primeira carta que São Paulo escreve aos Tessalonicenses é um hino à comunidade cristã. É um texto belíssimo no qual são apresentados os fundamentos para uma vida plena: a alegria, a gratidão e a vida em comum. Desta carta de São Paulo, considerada um dos mais antigos documentos do Novo Testamento, escolhi, para a reflexão deste mês, estas três simples frases: “Examinai tudo. Guardai o que é bom. Afastai-vos de toda a espécie de mal.”

“Examinai tudo.” Um cristão é, por excelência, um observador, aquele que olha a vida, que contempla, como tão sabiamente definiu Ricardo Reis, este espetáculo do mundo do qual faz parte desde o primeiro dia, desde que foi sonhado e amado por Deus criador. Um cristão não se encerra no seu “eu”, não se fecha no seu condomínio privado, não se abstrai da vida. Um cristão vive no mundo, encara as suas maravilhas, mas também enfrenta os seus desastres. Daí a importância de examinar tudo, como nos exorta São Paulo. Ver tudo, conhecer, observar. Contemplar. Querer ver. Recusar-se a viver de forma indiferente, desinteressada ou abstraída. O ser humano é um ser social. Somos pessoas porque o somos com os outros e com o Outro. Quando São Paulo evidencia a importância de examinar tudo, está também a enfatizar a nossa autoanálise, o nosso conhecimento interior, a nossa descoberta pessoal. Por isso, que nunca percamos esta vontade de descobrir, esta ânsia de procurar e, sobretudo, este desejo luminoso de nos maravilharmos com e pela vida.

“Guardai o que é bom.” Gravar em nós a serenidade dos momentos simples. Guardar tudo em Deus significa, para nós crentes, entregar-lhe o que somos, o que experimentamos, o que vivemos. O que sentimos e também tudo o que não compreendemos. E não deixar a vida à mercê do medo, da angústia, do desânimo. Deixar que Deus habite em nós e nos preencha com o dom da gratidão, da simplicidade, da harmonia. Nos textos bíblicos, esta atitude de “guardar o que é bom” surge referenciada em diversas ocasiões significativas. Também Maria foi guardando no seu coração tudo o que observava em relação ao crescimento do seu filho (Lc 2,19). Pratiquemos, pois, este princípio, o de conservar o que é bom, o que edifica, o que nos eleva. Deixemo-nos levar pela bondade, pela beleza que existe. E há tanta! Tanta! Que os nossos olhos se abram a essa mesma beleza. Não nos fechemos ao belo. Cuidemos do nosso coração que é o nosso tesouro. Com o coração amamos, perdoamos, vivemos. Um coração cheio de dureza não é sensível à beleza, não se apercebe daqueles que estão à sua volta. É um coração vazio. É um coração que não partilha e que, assim, não se pode multiplicar. Devemos cultivar os bons sentimentos, aqueles que nos edificam. Procurar experiências significativas. Os pais devem dar aos filhos tempo, abraços e risos. Contemplar a natureza, ouvir uma música, escutar o silêncio do fim do dia, ler um livro, conversar, partilhar vida. Tudo isto contribuiu para enchermos o nosso coração de bondade. Para sermos bondade.

Este conselho de São Paulo para guardarmos só o que é bom parece ser fácil de seguir. No entanto, enquanto espécie humana (ainda não somos só seres divinos!) tendemos para guardarmos, quase a ferro e fogo, as recordações mais tristes e dolorosas. A psicologia explica este fenómeno pelo facto de que uma experiência traumática é muito mais importante para a nossa sobrevivência enquanto espécie do que a memória de algo agradável. Em conversas que surgem, aqui e acolá, acontece muitas vezes ouvirmos mais histórias de tristezas do que de alegrias. É precisamente contra isto que devemos lutar, dizer não, fazer um esforço para nos focarmos naquilo que é positivo e bom. Todos nós já passamos pela experiência do mal, do sofrimento, da dor. Há um verso de Miguel Torga que o Jorge lembrava algumas vezes para nos chamar a atenção para uma tentação perigosa. “Aos poucos, a vida vai-nos tirando a vontade de cantar.” Isto sempre provocou em mim um arrepio de medo quase paralisante. Sempre me questionei como seria possível alguém perder a vontade de cantar. E cantar, neste contexto, significa o maravilhar-se com a vida, o continuar a caminhar, o fazer sonhar. E hoje compreendo que este verso é um alerta para todos nós, os viventes. À medida que a vida vai avançando e com ela trazendo alegrias e tristezas, há uma tendência generalizada para se privilegiar o negativo, o lado sombrio. Recordamos, muitas mais vezes os problemas que vivemos do que as soluções que encontramos. Vamos acumulando deceções e amarguras e os dias ficam por viver na sua plenitude. Sem nos apercebermos, deixamos de cantar, de procurar e de sentir a alegria de estarmos vivos, presentes, juntos. Deixamos de ler um livro porque achamos que já não temos tempo, deixamos de rir com vontade porque somos as ditas pessoas sérias, deixamos até de ir à missa porque isso agora já não se encaixa no meu perfil de jovem-adulto-promissor-com-uma-carreira-brilhante-e-ligeiramente-ateu-só-porque-sim, deixamos de nos deitar na relva a olhar o céu porque isso agora é uma perda de tempo, deixamos de… E, assim, a vida vai-nos embrutecendo sem nos darmos conta. As experiências de dor existem e, é certo, não podemos fingir que elas não aconteceram. No entanto, é imperativo, para podermos seguir viagem, para avançarmos, colocarmos à nossa frente aquilo que temos guardado de bom. Seguir vivendo sem esses pesos que nos atrapalham o andar. É um processo fácil? Não, não é. Mas é a atitude necessária para continuar a viver. E, sobretudo, para sermos Luz para os outros. Para sermos caminho. Não deixemos que a morte nos aconteça antes do tempo. Cuidemos do nosso coração. Guardemos o que é bom, puro, simples, doce.

“Afastai-vos de toda a espécie de mal.” O mal chama sempre a atenção, é poderoso, gere emoções e provoca reações bem mais visíveis. Ninguém está ou é imune ao mal. E o mal já não é aquele ser diabólico, de risinho maquiavélico, causador de medos e de gritos estridentes. Esta caricatura já não representa os nossos dias. Pelo contrário, o mal apresenta-se hoje com uma bela figura, sedutora, repleta de promessas felizes e de imediata concretização. São Paulo pede-nos que não tenhamos medo de dizer não ao que nos faz mal, a tudo aquilo que obscurece o nosso entendimento. Rejeitemos imagens, ideias, percursos, opções que não nos fazem bem, que nos fazem ser menos do que a plenitude que cada um de nós, enquanto filho de Deus, deve assumir. Procuremos o bem. Procuremos as estrelas que há milhares de anos continuam a ser um presente para nós. Procuremos um abraço amigo naqueles que caminham ao nosso lado. Procuremos aquela canção que temos guardada no nosso coração. Procuremos este Deus que nos espera sempre de braços abertos. Guardemos tudo o que é bom. E assim seremos Luz. E assim seremos Páscoa. E assim seremos caminho. Aleluia!