Reflexão para o mês de novembro
“Eu sou a Ressurreição e a Vida.” (do Evangelho segundo São João 11, 25)
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
“Ele agora é uma estrelinha.”, disseram-me, nos dias seguintes à morte do Jorge. “Vais conseguir senti-lo mais perto de ti agora.”, repetiam-me várias vezes. “Agora ele está mais descansado.”, afirmaram outras tantas pessoas. Num estado de anestesia própria de quem acabou de ser empurrada para um buraco negro, ouvia o que me iam dizendo como se de um eco se tratasse ou como se me falassem numa qualquer outra língua da qual apenas reconhecia os sons e não os significados. E pensava eu: “O Jorge, uma estrelinha?! O que ele gozava com esta expressão…”; “Vou senti-lo mais perto de mim agora?! Como? Eu queria é que ele estivesse sentado comigo na sala a rirmo-nos do que estávamos a ver na televisão ou a comer um prato de massa…”; “O Jorge, mais descansado?! O Jorge?! Ainda tínhamos tanto para realizar, concretizar, acontecer…”. Agradeço o propósito destas frases que é intencionalmente bom. Confrontados com a irracionalidade da morte (e pensando na nossa própria finitude), não sabemos bem como reagir nem o que dizer, portanto estes dizeres ensaiados e do senso comum acabam por ser um refúgio embrulhado em ânimo que oferecemos, quase em piloto automático, a quem está a sofrer. Mas, na prática, a quem está a tentar sobreviver ao tsunami da morte de um ser querido, estas frases feitas nada trazem de animador e podem até trazer uma certa incompreensão e ainda mais tristeza. Nestes momentos, um abraço é o maior consolo que se pode dar e oferecer e a companhia nos dias seguintes é a mão que nos segura firme para não resvalarmos. Curioso, como ainda anteontem, o próprio Papa Francisco alertava para isto mesmo, para o “perigo” deste tipo de frases consoladoras. (Como já eu já tinha este texto escrito antes, tenho agora a certeza que ele não lê o nosso site, mas lê os meus pensamentos ou conseguiu, pelo menos, aceder ao meu computador…)
Então, como é que se vive depois da morte? Como é que se continua a contar o tempo no calendário quando alguém desparece? Como se faz para continuar a cumprir tarefas, a festejar acontecimentos, a sonhar projetos novos? Qual é o manual de instruções para estas situações?
Ao longo destes já quatro anos, fomos encontrando muitas perguntas, dúvidas, vislumbrando muitas certezas e acertos. A saudade é uma doença crónica. Ela existe. Uns dias sentimos mais, outros dias nem nos lembramos que dói. Aprende-se a conviver com ela, a saber que ela existe, mas que não nos domina nem nos impõe um viver escuro, triste, apático. Não há uma fórmula mágica que oculte o sofrimento, mas há um modo de vida que nos impele não só a continuar a caminhada, mas a fazê-la até com mais alegria, com mais gratidão, com mais empenho. A darmos o melhor de nós a cada dia que nos continua a ser dado. A sermos e a fazermos festa com a irmandade que escolhemos. A trabalharmos em nós aqueles dons e capacidades que estavam adormecidos e que agora ganham outro sentido, outro papel, outra função. A sermos gratos pela possibilidade de sermos nós.
Quem fica por cá depois da morte daqueles que amamos tem de seguir viagem. E se nos primeiros dias a apatia que se vive ou o sofrimento que nos anestesia nos ajudam a sobreviver em piloto automático, encontramos depois os desafios próprios dos dias seguintes, das rotinas que têm de ser adaptadas, dos novos hábitos que têm de aparecer para cobrir memórias. E é precisamente aqui que entra a ressurreição! Sim, a ressurreição. E não me refiro à crença na vida eterna que os que já partiram recebem. Refiro-me à nossa própria ressurreição, daqueles que estamos vivos, de todos nós que continuamos a fazer caminho. Não há outra forma de sobreviver a uma morte a não ser escolhermos a nossa própria ressurreição, a dizermos sim ao que continua, a deixarmos que o amor nos domine e nos erga.
Por isso, para mim, a maior gratidão que sinto é poder viver com esta possibilidade que me é dada, não só a que me faz acreditar numa ressurreição futura para toda a eternidade, mas, sobretudo, a que me faz ter a certeza de que sou ressuscitada todos os dias. Sou ressuscitada pela fé na vida que não termina, pela irmandade daqueles que comigo permanecem, pela escolha diária que faço em querer continuar a fazer caminho, este que é o meu caminho. Sou ressuscitada porque optei por valorizar a pessoa que Deus quer que eu seja, a pessoa que ele sonhou em mim. Sou ressuscitada porque quero viver não na morte, mas na vida, mesmo com os sofrimentos, inconstâncias e desafios que ela nos traz.
A ressurreição diária é nossa, daqueles que permanecem, daqueles que continuam a celebrar aniversários e dias felizes, daqueles que vivem os acontecimentos do mundo, daqueles que assistem a novas descobertas e edificações. Esta ressurreição diária é o remédio para nos imunizarmos perante a indiferença, o egoísmo, a apatia. E é sempre uma escolha nossa. Sempre. Ninguém a escolhe por mim ou por ti.
Acredito que há uma vida maior que nos espera. Acredito porque é impossível que o amor com que nos amamos uns aos outros seja inútil, sem sentido e tenha um fim. Esse amor que experimentamos nas nossas relações humanas salva-nos da desumanização e da sentença mortal. Esse amor que é sempre maior que qualquer morte. É fácil sentir esta esperança todos os dias? Não, não é. É fácil acordar como se nada tivesse acontecido depois de um acontecimento trágico? Não, não é. Por isso, por nos sabermos frágeis, precisamos desta exercitação da ressurreição. Precisamos de nos lembrar a cada dia que este amor que nos enche o coração tem de continuar a fazer sentido e esse sentido só é possível na dádiva contínua, na persistência do caminho, no abraço irmanado. Um exercício de ressurreição. Recomendado a todos os que peregrinam nesta terra. Que carregam perguntas, motivações, desafios. Que sofrem, choram e desesperam. Mas que também riem, alegram-se e festejam. Que continuam a contar os dias e a projetar futuros. Um exercício de ressurreição. Praticável e aplicável a comunidades que oram juntas, em grupos que cantam juntos, em irmandades que se edificam juntas. Um exercício de ressurreição. Que previne desesperos, que ameniza as quedas, que nos lembra que não estamos sozinhos, que nos garante que a vida é sempre mais mesmo quando nos surge atada, complicada, destruída. Um exercício de ressurreição. Uma escolha para a vida para que a vida em nós viva para sempre. Precisamos tanto deste lembrete diário: a vida pede-nos que ressuscitemos todos os dias, que façamos daquilo que somos um projeto de ressurreição, que ousemos escolher sempre o que nos faz ser em eternidade. Saibamo-nos ressuscitados, erguidos, levantados, cultivemos esta dádiva. Olhemos com confiança e determinação para as escolhas que fazemos e que nos ressuscitam. Exercitemos esta ressurreição. A nossa, no aqui e no agora de cada dia.
Texto magnífico ⭐️ obrigada por tanto todos os dias