Reflexão para o mês de julho de 2025
“Dar-vos-ei um coração novo e porei dentro de vós um espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei um coração de carne.” (do Livro do Profeta Ezequiel)
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

No nosso Musical “Jesus é Vida”, a primeira parte do espetáculo acontecia em contexto de grupo de jovens que, desafiados pela professora de História para apresentarem um trabalho sobre uma figura histórica, decidiram escolher falar sobre Jesus. Uma das personagens de seu nome Susana – interpretada pela… Susana! – começa por manifestar muitas dúvidas relativamente àquela escolha feita pelo seu grupo. Num diálogo com outra personagem de seu nome Ana – interpretada por mim… Ana! -, a Susana vai descobrindo que as dúvidas que sentia não tinham a ver com o trabalho que lhes tinha sido proposto, mas sim com a sua própria perspetiva em relação à vida e principalmente com a dificuldade que ela sentia em viver o que os amigos viviam, em acreditar como eles acreditavam, em assumir a verdade que o grupo assumia. Durante a conversa, a minha personagem ia mostrando à Susana que o que a impossibilitava de viver plena e genuinamente aquilo em que dizia acreditar era o simples facto de não se deixar envolver nas atividades do grupo, de não se entregar à vida, de não se deixar encantar pela beleza.
Ao recordar por estes dias este momento do Musical, veio-me à memória a passagem do profeta Ezequiel sobre o coração novo que Deus nos promete. “Dai-vos-ei um coração novo” é uma promessa que toca no mais profundo da nossa identidade. Estas palavras não são apenas poesia ou consolo. São a promessa concreta de uma modificação interior, de um caminho que nos é oferecido, de uma possibilidade de renovação. E por que razão há urgência nesta transformação?
Vivemos tempos de fragmentação, entre o que se deseja ser e o que de facto se é. Vivemos tempos de cansaço. Não tanto um cansaço físico, mas acima de tudo existencial. Há uma fadiga que persiste e que não se cura com descanso, uma espécie de saturação interior que se vai instalando, silenciosa, mas constante. A pressa com que se vive, a desilusão com que nos confrontamos, o peso das notícias que nos chegam a toda a hora, o ruído permanente da desinformação… tudo isto e tanto mais contribuiu para que o nosso coração, esse centro vivo da nossa identidade, vá perdendo a sua sensibilidade. Vamos endurecendo por dentro, vamos erguendo defesas, vamos fechando o nosso olhar. Ao longo da vida, todos nós corremos o risco de permitir que o nosso coração endureça e nos faça viver à defensiva. Tornamo-nos mais racionais, mais pragmáticos, mas simultaneamente mais frios, menos compassivos, menos atentos aos outros. Dentro de nós hospeda-se um coração de pedra. Este coração de pedra é uma metáfora real da nossa condição: um coração que deixou de bater ao ritmo de Deus e passou a viver em função do medo, do orgulho, do egoísmo.
E é precisamente quando este coração de pedra se instala em nós que Deus intervém, não com acusações, mas sempre com uma promessa, não com imposições, mas sempre com uma proposta. Deus não exige que eu me corrija, que me torne melhor sozinho. Ele próprio se oferece, dizendo: “Dar-vos-ei um coração novo”. Não é um remendo. Não é uma versão moralizada. Não é uma mudança superficial. É um coração novo, uma proposta radical e interior. Um coração de carne é um coração vivo, vibrante, capaz de escutar a voz de Deus, de se deixar encantar pela beleza da vida, pela força do Amor. Um coração com sede de justiça, de verdade, de comunhão.
Deus sabe que, por nós mesmos, não conseguimos regenerar o que em nós se quebrou. Por isso, propõe-se Ele próprio realizar essa obra em nós. E é este o coração da mensagem cristã: não estamos sozinhos. Fomos criados para vivermos em aliança com Deus, numa relação de pertença mútua. Quando permitimos que Ele transforme o nosso coração, assumimo-nos filhos de um Pai que nos ama. E pertencer a Deus é encontrar a nossa identidade mais profunda. É saber que temos um lugar nosso, um propósito a cumprir.
Esta promessa que Deus nos faz toca o grande dilema humano: como amar num mundo ferido pela dor? Como manter a doçura quando tudo nos convida ao endurecimento? Como permanecer sensível sem sofrermos com a indiferença? Deus responde-nos com a oferta de um coração novo. Não um coração perfeito, mas um coração que se abre, que se dispõe a que Deus nele habite e o transforme. O verdadeiro milagre não é um coração perfeito, é um coração capaz de mudar, disponível, aberto. Ao prometer-nos um coração novo, Deus convida-nos a recomeçar de dentro para fora. A confiar que é sempre possível sentir de novo, amar de novo, viver com leveza. É um convite à reconciliação com a nossa própria humanidade. E esta promessa não se esgota no passado. Ela é um apelo para o presente. A dureza dos nossos dias, o individualismo e a indiferença exigem homens e mulheres de coração novo. O caminho mais fácil é sempre o do endurecimento. Mas Deus continua a oferecer-nos, todos os dias, este dom magnífico: um coração capaz de recomeçar, de amar, de perdoar, de se entregar.
P.S. No Musical, a personagem Susana acabou por ser dos elementos mais empenhados do seu grupo na realização do trabalho para a escola. Ela foi-se deixando transformar por este coração que Deus lhe ofereceu. E digo “foi-se deixando” precisamente porque este é um trabalho contínuo, de avanços e recuos, de erros e acertos. A Susana continuou com medos e dúvidas, mas assumiu vivê-los com confiança e com a certeza de que Deus habitava no seu novo coração. E, sobretudo, foi escolhendo cuidar deste seu coração em comunidade…