Saber amar

Reflexão para o mês de outubro de 2025

“Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.” (do Evangelho segundo São João)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Há frases de Jesus que soam como uma chave de leitura para toda a vida cristã. Esta é uma delas. Este versículo surge num contexto muito particular do Evangelho de João. Jesus está reunido com os seus discípulos, a poucas horas da sua Paixão. O ambiente é denso, íntimo, carregado de despedida e, ao mesmo tempo, de revelação. É neste momento que Ele deixa aos seus discípulos o que chamamos de “testamento espiritual”: o mandamento novo do saber amar. Ser discípulo de Jesus é ser reconhecido pelo amor com que se vive. Jesus escolhe o amor como sinal de pertença, não o conhecimento, não o poder, não a prática exterior. O amor é a marca deixada em quem permanece n’Ele.

Ao declarar que a marca distintiva dos seus discípulos seria o amor, Jesus desloca a questão do ser para a questão do relacionar-se. Não sou discípulo por aquilo que possuo ou sei, mas pela qualidade das minhas relações. É no espaço entre mim e o outro que se joga a autenticidade da fé. Jesus não diz que o amor é apenas um caminho interior, fechado em cada um. Ele afirma que é algo visível, reconhecível: “todos conhecerão”. O amor é o critério público, aquilo que pode ser visto e tocado. Não há como esconder ou disfarçar. Amar é tornar-se testemunha. O amor é o sinal pelo qual nos damos a conhecer como cristãos. E é importante perceber que não se trata de um amor sentimental, reduzido a afeto ou simpatia. É antes um amor que compromete, que se faz serviço, que desce às feridas do outro. É um amor que lava os pés, que perdoa o parece ser imperdoável, que carrega a cruz que nos pesa. É um amor que é tantas vezes acontecido no silêncio e vivido na confiança. É um amor que implica aceitação e perdão do que se foi para se construir o novo que há-de vir.

O Evangelho ganha carne nos gestos simples e quotidianos, onde se faz a diferença. Às vezes, julgamos que amar como Jesus está reservado apenas aos santos, aos gestos grandiosos e heroicos, que não está ao nosso alcance. Mas a verdade é que esse amor se constrói no dia-a-dia. É amor quando, depois de um dia cansativo, resisto à tentação de me fechar em mim e vou ao encontro de quem está sozinho. É amor quando, no meio do trânsito, escolho a paciência em vez da buzina. É amor quando, no trabalho, evito a palavra que podia ferir e escolho a palavra que constrói. É amor quando acolho a diferença sem medo e abro espaço para a compreensão.

Amar assim é sempre exigente. É fácil falar de amor em abstrato, difícil é praticá-lo quando a vida se torna áspera: quando alguém nos fere, quando somos incompreendidos, quando o outro não corresponde. É precisamente aí que o Evangelho ganha força — porque não se trata de amar “quando dá jeito”, mas de amar “como Eu vos amei” (Jo 13,34). Um amor sem cálculo, sem condições, sem reservas.

Quando Jesus fala de “todos”, aponta para algo que vai além da comunidade cristã. Muitas vezes, a Igreja e as suas comunidades são vistas mais pelas divisões internas, pela rigidez ou pela indiferença do que pela capacidade de amar. Este versículo do evangelho de João soa, então, como um apelo urgente à conversão e é profundamente desconcertante porque nos coloca perante o essencial: ou somos discípulos de Jesus no amor ou corremos o risco de sermos apenas seus admiradores. O mundo só acreditará que o Evangelho é vida se a vida dos cristãos for esse mesmo Evangelho vivo. O mundo só nos conhecerá se os nossos gestos refletirem um estilo de vida verdadeiramente cristão. E esta identidade constrói-se, escolhe-se, molda-se no dia-a-dia, nas escolhas que fazemos, na autenticidade que vamos privilegiando. É o amor que evangeliza, que anuncia sem palavras. É o amor que provoca espanto, que cria vontade de permanecer onde ele está. Por isso, ser discípulo de Jesus não é uma identidade abstrata, é deixar que o amor nos aconteça e nos molde. E este amor, quando é assumido e vivido em permanente ressurreição, torna-se luz para o mundo, chama que aquece os nossos corações, sinal vivo da presença em nós de um Deus presente. E talvez seja este o maior desafio dos cristãos: deixarmo-nos reconhecer como discípulos não porque somos cristãos, mas porque o amor, traduzido em atenção, em escuta, em perdão e em serviço, transparece. É um caminho exigente, mas profundamente libertador. O amor vivido em comunidade torna-se farol – não para mostrarmos que somos melhores, mas para revelar a presença de Deus que se faz próxima através de nós.

Amar desta forma não é possível apenas pelas nossas forças. O amor humano é limitado, facilmente cansa e se fecha em si e impõe condições e trocas. Por isso, só permanecendo em Deus, só deixando que seja Ele a amar em nós, podemos ser capazes de viver o seu modo de amar. Deus não nos pede nunca um esforço sobre-humano; pede-nos apenas que nos deixemos transformar por Ele. Que nos permitamos acolher o seu amor primeiro, porque só quem se sabe amado até ao fim consegue amar assim. E será sempre este o nosso maior testemunho: quando, no meio das nossas fragilidades e incoerências, deixamos transparecer algo de um amor que não é só nosso. Quando alguém olha para nós e percebe que não caminhamos sozinhos, mas com Ele e por Ele.

No século II, Tertuliano, um autor das primeiras fases do Cristianismo, testemunhou que os primeiros cristãos levavam as palavras de Jesus tão a sério que os pagãos, admirados, exclamavam: “Vede como eles se amam!” Este testemunho atravessa os séculos e chega-nos como uma pergunta viva: será que ainda hoje podem dizer o mesmo de nós? O mundo continua sedento de um amor verdadeiro — não de amores descartáveis, utilitários, superficiais — mas de um amor que permanece, que cuida, que se doa, que abraça até às feridas. Quando os cristãos se tornam imagem viva deste amor, quando cada comunidade é lugar de acolhimento, de perdão e de serviço, a luz do Evangelho permanece acesa e não pode ser escondida. A medida deste amor que desejamos é o próprio Jesus. É este amor que somos chamados a aprender, a encarnar, a oferecer ao mundo. Por isso, peçamos-lhe, hoje, esta graça: que cada um de nós possa ser reconhecido pelo amor que vive — um amor que mostra ao mundo o rosto de Cristo, que nunca deixa de amar.

One thought on “Saber amar

  1. … é tão isto! Fácil, simples, amar, só amar…quem está ao teu lado, quem passa ao teu lado, quem fica ao teu lado. Já seria tanta gente… ❤️

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