“Espera no Senhor. Sê forte e corajoso e espera no Senhor.” (Salmo 27)
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
A história da fotografia que acompanha este texto é muito simples. Colónia, Alemanha. JMJ 2005. Em agosto, num dia particularmente quente com temperaturas invulgares para aquela cidade. Durante mais de cinco horas, estivemos na praça em frente à majestosa catedral de Colónia à espera que o Papa Bento XVI chegasse para saudar os peregrinos. As expectativas eram grandes. As horas iam passando, o calor aumentando, as conversas fluíam, os risos intensificavam-se. Estávamos ativamente à espera. Numa espera comunitária, sem pressas nem ansiedades porque sabíamos que o Papa estava a chegar. Quem já fez a experiência de participar numas JMJ sabe que uma das atividades previstas é mesmo esta… estar à espera do Papa! Percorrem-se lugares, escolhem-se os melhores sítios, combinam-se estratégias. Tudo para, simplesmente, ver o Papa. Para quem está de fora deste tipo de eventos religiosos, isto pode parecer algo “estranho” e uma perda de tempo, mas para nós cristãos esta espera é sempre significativa. Esperamos aquele que para nós é o representante de Jesus no meio de nós.
Ao deparar-me de novo com esta fotografia que representa a nossa espera, veio-me à ideia este conceito de espera cristã, conceito este que marca de forma evidente este período que hoje iniciamos – o Advento. O tempo do Advento é, por excelência, o tempo da espera. É o tempo privilegiado da preparação, do cuidado, da atenção. É o tempo do silêncio que fecunda, do olhar que procura a beleza, da paciência que se torna ação. Nestes dias que antecedem o Natal, a função do cristão é essa mesma – a de adventar.
Adventar. Adventar é esperar o que se anuncia, aguardar, com fé e esperança, o que está para vir e ver. Somos pessoas em advento, em preparação, em caminho. A nossa vida é uma espera contínua, daquilo que há de vir, do que há de acontecer, do que viveremos na Terra que nos está prometida para toda a Eternidade.
Muitas vezes, associamos esta espera a algo que nos é difícil de suportar, um vazio que se instala, uma ausência que corrói. Mas o tempo do Advento que nos é dado viver ressignifica esta noção de espera. É este o papel de Deus nas nossas vidas. Dar um novo significado à nossa história, ao que nos acontece. Dar uma nova possibilidade de caminho às nossas inquietações e incompreensões.
Adventar é esperar. E esperar não é passividade, não é impaciência, não é ansiedade. Esperar em Deus é dispormos do tempo propício para a profundidade, para abandonar a superficialidade, o imediato que tantas vezes nos faz viver de forma incompleta. Há uma dinâmica própria na espera cristã que não se enquadra nas dinâmicas deste mundo. Por isso, o esperar de um cristão é, muitas vezes, mal entendido e aceite. Esta espera cristã só é plenamente compreendida na disponibilidade interior e na confiança. Esta espera enche-se da riqueza maior que é Deus que vem até nós. Aquele que nos ama, ele próprio já nos espera. E sabermo-nos esperados por ele dá-nos a paz de que precisamos. Por isso, esta espera cristã fortalece-nos, torna-nos mais comprometidos com a vida que nos vai acontecendo, estimula a nossa criatividade, promove a nossa empatia, alarga-nos horizontes, liberta-nos do peso do que é concreto.
Neste Advento que hoje iniciamos, desafiemo-nos a aprender a esperar mais e melhor. Esperar implica confiança. No que nos espera. Nos que amamos. No desconhecido. No inesperado. No que não controlamos. Mas saber que há um Deus que nos espera é saber que essa espera vem de Deus. A nossa vida faz-se de esperas. A nossa vida está cheia de “adventos”. Precisamos do exercício da espera, escolhendo boicotar a ideologia da pressa, da inquietação, do utilitarismo.
Adventar não é passividade nem desistência. É ação, procura, entendimento. Esperamos na alegria e na vigilância. Esperamos com abertura e disponibilidade.
Na palavra “esperança” encontramos a palavra “espera”. E isto não é um mero acaso linguístico. Quem espera, tem de esperar com esperança. Porque esperar é sempre desejar o que está para vir. Esperar confirma a nossa esperança. Quem espera, alcança porque se deixa acreditar. Num futuro maior, numa alegria multiplicada, num fruto nascido de uma semente planta. Exercitamos a esperança quando escolhemos esperar e, assim, passamos a olhar o presente e o futuro com outra certeza no meio das incertezas.
Advento. Há uma festa que estamos todos a preparar. Uma festa a ser vivida já na antecipação de um nascimento feliz. Diz a sabedoria popular que o melhor da festa é esperar por ela. Pois é este o caminho que nós cristãos somos convidados a percorrer. Adventar. Saber esperar. Saber preparar aquela festa que nasce em mim com o nascimento d’Aquele que faz ser Luz. Adventar. Que saibamos conjugar este verbo nas ações dos nossos dias. Que nos assumamos como cristãos de advento, comprometidos com o caminho, empáticos com os irmãos, anunciadores de esperança.
Aqueles que esperam no Senhor, caminham sem se cansar (cf. Is 40,31)
Caros jovens!
No ano passado, começamos a percorrer o caminho da esperança rumo ao Grande Jubileu, refletindo sobre a expressão paulina “Alegres na esperança” (Rm 12, 12). Precisamente para nos prepararmos para a peregrinação jubilar de2025, este ano deixamo-nos inspirar pelo profeta Isaías, que diz: “Os que esperam no Senhor […] caminham sem se cansar” (Is 40, 31). Esta expressão é retirada do chamado Livro da Consolação (Is 40-55), que anuncia o fim do exílio de Israel na Babilônia e o início de uma nova fase de esperança e de renascimento para o povo de Deus, que pode regressar à sua pátria graças a um novo “caminho” que, na história, o Senhor abre aos seus filhos (cf. Is 40, 3).
Também nós vivemos hoje tempos marcados por situações dramáticas que geram desespero e nos impedem de olhar para o futuro com espírito sereno: a tragédia da guerra, as injustiças sociais, as desigualdades, a fome, a exploração do ser humano e da criação. Muitas vezes, quem paga o preço mais alto sois vós, jovens, que sentis a incerteza do futuro e não vislumbrais perspetivas seguras para os vossos sonhos, correndo assim o risco de viver sem esperança, prisioneiros do tédio e da melancolia, por vezes arrastados para a ilusão da transgressão e das realidades destrutivas (cf. Bula Spes non confundit, 12). Por isso, queridos amigos, gostaria que, como aconteceu ao povo de Israel na Babilônia, chegasse também a vós o anúncio da esperança: hoje o Senhor abre diante de vós um caminho e convida-vos a percorrê-lo com alegria e esperança.
1. A peregrinação da vida e os seus desafios
Isaías profetiza um “caminhar sem cansaço”. Reflitamos então sobre estes dois aspetos: o caminhar e o cansaço.
A nossa vida é uma peregrinação, uma jornada que nos empurra para além de nós mesmos, um caminho em busca da felicidade; e a vida cristã, em particular, é uma peregrinação em direção a Deus, à nossa salvação e à plenitude de todo o bem. As realizações, as conquistas e os sucessos do caminho, se forem apenas materiais, depois de um primeiro momento de satisfação, deixam-nos ainda com fome, desejosos de um sentido mais profundo; em verdade, não satisfazem completamente a nossa alma, porque fomos criados por Aquele que é infinito e, por isso, em nós habita o desejo de transcendência, a inquietação contínua para a realização de aspirações maiores, para um “algo a mais”. É por isso que, como já vos disse tantas vezes, “olhar a vida da varanda” não é suficiente para vós, jovens.
No entanto, é normal que, apesar de começarmos as nossas jornadas com entusiasmo, mais cedo ou mais tarde comecemos a sentir cansaço. Nalguns casos, o que provoca ansiedade e cansaço interior são as pressões sociais para atingir determinados padrões de sucesso nos estudos, no trabalho e na vida pessoal. Isto produz tristeza, pois vivemos no afã de um ativismo vazio que nos leva a preencher os nossos dias com mil coisas e, apesar disso, a sentir que nunca conseguimos fazer o suficiente e que nunca estamos à altura. Este cansaço é muitas vezes acompanhado pelo tédio. É o estado de apatia e de insatisfação de quem não se põe a caminho, não decide, não escolhe, nunca arrisca e prefere ficar na sua zona de conforto, fechado em si mesmo, vendo e julgando o mundo por detrás de uma tela, sem nunca “sujar as mãos” com os problemas, com os outros, com a vida. Este tipo de cansaço é como um cimento no qual mergulhamos os pés, e que acaba por endurecer, pesar, paralisar e impedir-nos de avançar. Prefiro o cansaço dos que estão a caminho do que o tédio dos que estão parados e não têm vontade de andar!
A solução para o cansaço, paradoxalmente, não é ficar parado para descansar. É, pelo contrário, pôr-se a caminho e tornar-se peregrino da esperança. Este é o convite que vos faço: caminhai na esperança! A esperança vence todo o cansaço, toda a crise e toda a ansiedade, dando-nos uma forte motivação para avançar, porque é um dom que recebemos do próprio Deus: Ele enche o nosso tempo de sentido, ilumina-nos o caminho, indica-nos a direção e a meta da vida. O apóstolo Paulo utilizou a imagem do atleta no estádio, que corre para receber o prémio da vitória (cf. 1 Cor 9, 24). Quem já participou numa competição desportiva – não como espectador, mas como protagonista – conhece bem a força interior que é necessária para chegar à meta. A esperança é precisamente uma força nova, que Deus infunde em nós, que nos permite perseverar na corrida, que nos dá uma “visão de longo alcance”, que ultrapassa as dificuldades do presente e nos orienta para uma meta concreta: a comunhão com Deus e a plenitude da vida eterna. Se há uma bela meta, se a vida não se dirige para o vazio, se nada daquilo que sonho, projeto e realizo se perde, então vale a pena caminhar e suar, suportar os obstáculos e enfrentar o cansaço, porque a recompensa final é maravilhosa!
2. Peregrinos no deserto
Na peregrinação da vida, haverá inevitavelmente desafios a enfrentar. Nos tempos antigos, durante as peregrinações mais longas, era preciso enfrentar as mudanças de estação e de clima; atravessar prados agradáveis e bosques refrescantes, mas também montanhas cobertas de neve e desertos tórridos. Assim, a peregrinação de uma vida e a viagem para um destino longínquo não deixam de ser cansativas também para quem crê, tal como o foi para o povo de Israel a viagem pelo deserto até à Terra Prometida.
Assim é para todos vós. Mesmo para aqueles que receberam o dom da fé, houve momentos felizes em que Deus esteve presente e o sentistes próximo, e outros momentos em que experimentastes o deserto. Pode acontecer que o entusiasmo inicial nos estudos ou no trabalho, ou o impulso para seguir Cristo – tanto no matrimônio, como no sacerdócio ou na vida consagrada – sejam seguidos por momentos de crise, que fazem com que a vida pareça uma difícil caminhada no deserto. Estes momentos de crise, porém, não são tempos perdidos ou inúteis, mas podem revelar-se importantes oportunidades de crescimento. São tempos de purificação da esperança! Com efeito, durante as crises são desfeitas muitas “esperanças” falsas, demasiado pequenas para o nosso coração; são desmascaradas e, assim, ficamos nus diante de nós próprios e das questões fundamentais da vida, para além de qualquer ilusão. E, nesse momento, cada um de nós pode perguntar-se: em que esperanças baseio a minha vida? São esperanças verdadeiras ou são ilusões?
Nestes momentos, o Senhor não nos abandona; aproxima-se com a sua paternidade e dá-nos sempre o pão que revigora as nossas forças e nos põe de novo a caminho. Recordemos que ao povo no deserto deu o maná (cf. Ex 16) e ao profeta Elias, cansado e desanimado, ofereceu duas vezes um pão achatado e água para que pudesse caminhar “quarenta dias e quarenta noites até chegar ao Horeb, o monte de Deus” (cf. 1 Rs 19, 3-8). Nestas histórias bíblicas, a fé da Igreja viu prefigurações do dom precioso da Eucaristia, verdadeiro maná e verdadeiro viático, que Deus nos dá para nos sustentar no nosso caminho. Como dizia o Beato Carlo Acutis, a Eucaristia é a autoestrada para o céu. Um jovem que fez da Eucaristia o seu compromisso quotidiano mais importante! Assim, intimamente unidos ao Senhor, caminhamos sem nos cansarmos, porque Ele caminha junto a nós (cf. Mt 28,20). Convido-vos a redescobrir o grande dom da Eucaristia!
Nos inevitáveis momentos de cansaço da nossa peregrinação neste mundo, aprendamos então a descansar como Jesus e em Jesus. Ele, que recomenda aos discípulos que repousem depois de regressarem da sua missão (cf. Mc 6, 31), reconhece a vossa necessidade de repouso do corpo, de tempo para o lazer, para gozar a companhia dos amigos, para o desporto e até para o sono. Mas há um repouso mais profundo, o repouso da alma, que muitos procuram e poucos encontram, e que só pode ser encontrado em Cristo. Sabei que todo o cansaço interior pode encontrar alívio no Senhor, que vos diz: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e oprimidos, e eu hei de aliviar-vos” (Mt 11, 28). Quando o cansaço do caminho vos pesar, voltai para Jesus, aprendei a descansar n’Ele e a permanecer n’Ele, pois “aqueles que esperam no Senhor […] caminham sem se cansar” (Is 40,31).
3. De turistas a peregrinos
Queridos jovens, o convite que vos faço é para que vos coloqueis a caminho, para descobrir a vida, nas pegadas do amor, em busca do rosto de Deus. Mas o que vos recomendo é o seguinte: não partam como meros turistas, mas como peregrinos. Isto é, que a vossa caminhada não seja apenas uma passagem pelos lugares da vida de forma superficial, sem captar a beleza do que encontrais, sem descobrir o sentido dos caminhos percorridos, captando só breves momentos, experiências fugazes registradas numa selfie. O turista faz isso. O peregrino, pelo contrário, mergulha de alma e coração nos lugares que encontra, fá-los falar, torna-os parte da sua busca de felicidade. A peregrinação jubilar quer, portanto, tornar-se o sinal do caminho interior que todos somos chamados a fazer para chegar ao destino final.
Com estas atitudes, todos nos preparamos para o Ano Jubilar. Espero que para muitos de vós seja possível vir a Roma em peregrinação para atravessar as Portas Santas. Para todos, em todo o caso, haverá a possibilidade de fazer esta peregrinação também nas Igrejas particulares, para redescobrir os numerosos santuários locais que guardam a fé e a piedade do povo santo e fiel de Deus. E faço votos de que esta peregrinação jubilar se torne para cada um de nós “um momento de encontro vivo e pessoal com o Senhor Jesus, ‘porta’ de salvação” (Bula Spes non confundit, 1). Exorto-vos a vivê-la com três atitudes fundamentais: a ação de graças, para que o vosso coração se abra ao louvor pelos dons recebidos, principalmente o dom da vida; a procura, para que o caminho exprima o desejo constante de procurar o Senhor e de não deixar apagar a sede do coração; e, por fim, o arrependimento, que nos ajuda a olhar para dentro de nós mesmos, a reconhecer os caminhos e as opções erradas que por vezes tomamos e, assim, a poder converter-nos ao Senhor e à luz do seu Evangelho.
4. Peregrinos de esperança para a missão
Deixo-vos mais uma imagem sugestiva para a vossa viagem. Ao chegar à Basílica de São Pedro, em Roma, atravessa-se a praça que está rodeada pela colunata criada pelo grande arquiteto e escultor Gian Lorenzo Bernini. A colunata, no seu conjunto, parece um grande abraço: são os dois braços abertos da Igreja, nossa mãe, que acolhe todos os seus filhos! Neste próximo Ano Santo da Esperança, convido-vos a todos a experimentar o abraço do Deus misericordioso, a experimentar o seu perdão, a remissão de todas as nossas “dívidas interiores”, como era tradição nos jubileus bíblicos. E assim, acolhidos por Deus e renascidos n’Ele, também vós vos tornais braços abertos para tantos dos vossos amigos e colegas que precisam de sentir, através do vosso acolhimento, o amor de Deus Pai. Cada um de vós ofereça “ao menos um sorriso, um gesto de amizade, um olhar fraterno, uma escuta sincera, um serviço gratuito, sabendo que, no Espírito de Jesus, isso pode tornar-se uma semente fecunda de esperança para quem o recebe” (ibid., 18), e assim vos tornareis incansáveis missionários da alegria.
Enquanto caminhamos, levantemos o olhar, com os olhos da fé, para os santos que nos precederam na caminhada, que chegaram à meta e nos dão o seu testemunho encorajador: “Combati o bom combate, terminei a corrida, permaneci fiel. A partir de agora, já me aguarda a merecida coroa, que me entregará, naquele dia, o Senhor, justo juiz, e não somente a mim, mas a todos os que anseiam pela sua vinda” (2Tm 4,7-8). O exemplo dos homens e das mulheres santos atrai-nos e sustenta-nos.
Coragem! Trago-vos a todos no meu coração e confio o caminho de cada um de vós à Virgem Maria, para que, seguindo o seu exemplo, saibais esperar com paciência e confiança aquilo que esperais, permanecendo no vosso caminho como peregrinos da esperança e do amor.
A fotografia é a da nossa primeira sala de oração, na primeira casa partilhada por mim, pelo Jorge e pela Beatriz quando começamos a viver em comunidade, em 2005. Uma sala pensada ao detalhe pelo Jorge, especialista em sensibilidade decorativa e um apaixonado pela beleza litúrgica espacial. Deitaram-se paredes abaixo para espanto do construtor da casa, escolheu-se a cor perfeita, usou-se a madeira mais apropriada. Encontramos também as almofadas adequadas e que ainda hoje usamos (conseguimos esgotar, na altura, o stock dos hipermercados Feira Nova no norte do país!). Trouxemos os ícones de Fátima e de Taizé. E assim criamos, de raiz, o nosso primeiro espaço de oração, na altura disponível também para os grupos de adolescentes e jovens que estavam à nossa responsabilidade. Para além do habitual encontro semanal ao sábado, estes grupos partilhavam uma hora de oração connosco ao final de um dia da semana. E, assim, aos poucos e subtilmente, íamos colocando nas suas rotinas e corações esta prática da oração. Uma espiritualidade meditativa e pensante fez sempre parte da nossa identidade. Um grupo que caminha alimenta-se da oração comunitária. Um grupo que cresce precisa do silêncio contemplativo, das palavras em comunhão, dos cânticos em ação. Ao longo dos anos, fomos exercitando em comunidade esta bênção de nos sintonizarmos espiritualmente.
Celebramos, esta semana, três anos de “Encontro em TI”, o nosso momento de oração na nossa paróquia. Ter um momento de oração aberto a todos foi sempre um sonho nosso. Graças à sensibilidade do nosso pároco e à sua visão comunitária e profética da Igreja, pudemos concretizar esta nossa vontade, logo um ano após a partida do Jorge. Ao longo destes três anos, este espaço mensal tem sido casa de quem vem meditar connosco e assim fazer memória e presença de um Deus próximo. Somos muito gratos a quem vem rezar connosco. Continuaremos juntos a seguir nesta viagem à interioridade fecunda, ao sacramento do silêncio, à beleza das palavras cantadas.
Momento de Oração Comunitária “Encontro em Ti” – na primeira 5.ª feira do mês, das 21h às 22h, na Igreja Matriz da Póvoa de Varzim
“Eu sou a Ressurreição e a Vida.” (do Evangelho segundo São João 11, 25)
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
“Ele agora é uma estrelinha.”, disseram-me, nos dias seguintes à morte do Jorge. “Vais conseguir senti-lo mais perto de ti agora.”, repetiam-me várias vezes. “Agora ele está mais descansado.”, afirmaram outras tantas pessoas. Num estado de anestesia própria de quem acabou de ser empurrada para um buraco negro, ouvia o que me iam dizendo como se de um eco se tratasse ou como se me falassem numa qualquer outra língua da qual apenas reconhecia os sons e não os significados. E pensava eu: “O Jorge, uma estrelinha?! O que ele gozava com esta expressão…”; “Vou senti-lo mais perto de mim agora?! Como? Eu queria é que ele estivesse sentado comigo na sala a rirmo-nos do que estávamos a ver na televisão ou a comer um prato de massa…”; “O Jorge, mais descansado?! O Jorge?! Ainda tínhamos tanto para realizar, concretizar, acontecer…”. Agradeço o propósito destas frases que é intencionalmente bom. Confrontados com a irracionalidade da morte (e pensando na nossa própria finitude), não sabemos bem como reagir nem o que dizer, portanto estes dizeres ensaiados e do senso comum acabam por ser um refúgio embrulhado em ânimo que oferecemos, quase em piloto automático, a quem está a sofrer. Mas, na prática, a quem está a tentar sobreviver ao tsunami da morte de um ser querido, estas frases feitas nada trazem de animador e podem até trazer uma certa incompreensão e ainda mais tristeza. Nestes momentos, um abraço é o maior consolo que se pode dar e oferecer e a companhia nos dias seguintes é a mão que nos segura firme para não resvalarmos. Curioso, como ainda anteontem, o próprio Papa Francisco alertava para isto mesmo, para o “perigo” deste tipo de frases consoladoras. (Como já eu já tinha este texto escrito antes, tenho agora a certeza que ele não lê o nosso site, mas lê os meus pensamentos ou conseguiu, pelo menos, aceder ao meu computador…)
Então, como é que se vive depois da morte? Como é que se continua a contar o tempo no calendário quando alguém desparece? Como se faz para continuar a cumprir tarefas, a festejar acontecimentos, a sonhar projetos novos? Qual é o manual de instruções para estas situações?
Ao longo destes já quatro anos, fomos encontrando muitas perguntas, dúvidas, vislumbrando muitas certezas e acertos. A saudade é uma doença crónica. Ela existe. Uns dias sentimos mais, outros dias nem nos lembramos que dói. Aprende-se a conviver com ela, a saber que ela existe, mas que não nos domina nem nos impõe um viver escuro, triste, apático. Não há uma fórmula mágica que oculte o sofrimento, mas há um modo de vida que nos impele não só a continuar a caminhada, mas a fazê-la até com mais alegria, com mais gratidão, com mais empenho. A darmos o melhor de nós a cada dia que nos continua a ser dado. A sermos e a fazermos festa com a irmandade que escolhemos. A trabalharmos em nós aqueles dons e capacidades que estavam adormecidos e que agora ganham outro sentido, outro papel, outra função. A sermos gratos pela possibilidade de sermos nós.
Quem fica por cá depois da morte daqueles que amamos tem de seguir viagem. E se nos primeiros dias a apatia que se vive ou o sofrimento que nos anestesia nos ajudam a sobreviver em piloto automático, encontramos depois os desafios próprios dos dias seguintes, das rotinas que têm de ser adaptadas, dos novos hábitos que têm de aparecer para cobrir memórias. E é precisamente aqui que entra a ressurreição! Sim, a ressurreição. E não me refiro à crença na vida eterna que os que já partiram recebem. Refiro-me à nossa própria ressurreição, daqueles que estamos vivos, de todos nós que continuamos a fazer caminho. Não há outra forma de sobreviver a uma morte a não ser escolhermos a nossa própria ressurreição, a dizermos sim ao que continua, a deixarmos que o amor nos domine e nos erga.
Por isso, para mim, a maior gratidão que sinto é poder viver com esta possibilidade que me é dada, não só a que me faz acreditar numa ressurreição futura para toda a eternidade, mas, sobretudo, a que me faz ter a certeza de que sou ressuscitada todos os dias. Sou ressuscitada pela fé na vida que não termina, pela irmandade daqueles que comigo permanecem, pela escolha diária que faço em querer continuar a fazer caminho, este que é o meu caminho. Sou ressuscitada porque optei por valorizar a pessoa que Deus quer que eu seja, a pessoa que ele sonhou em mim. Sou ressuscitada porque quero viver não na morte, mas na vida, mesmo com os sofrimentos, inconstâncias e desafios que ela nos traz.
A ressurreição diária é nossa, daqueles que permanecem, daqueles que continuam a celebrar aniversários e dias felizes, daqueles que vivem os acontecimentos do mundo, daqueles que assistem a novas descobertas e edificações. Esta ressurreição diária é o remédio para nos imunizarmos perante a indiferença, o egoísmo, a apatia. E é sempre uma escolha nossa. Sempre. Ninguém a escolhe por mim ou por ti.
Acredito que há uma vida maior que nos espera. Acredito porque é impossível que o amor com que nos amamos uns aos outros seja inútil, sem sentido e tenha um fim. Esse amor que experimentamos nas nossas relações humanas salva-nos da desumanização e da sentença mortal. Esse amor que é sempre maior que qualquer morte. É fácil sentir esta esperança todos os dias? Não, não é. É fácil acordar como se nada tivesse acontecido depois de um acontecimento trágico? Não, não é. Por isso, por nos sabermos frágeis, precisamos desta exercitação da ressurreição. Precisamos de nos lembrar a cada dia que este amor que nos enche o coração tem de continuar a fazer sentido e esse sentido só é possível na dádiva contínua, na persistência do caminho, no abraço irmanado. Um exercício de ressurreição. Recomendado a todos os que peregrinam nesta terra. Que carregam perguntas, motivações, desafios. Que sofrem, choram e desesperam. Mas que também riem, alegram-se e festejam. Que continuam a contar os dias e a projetar futuros. Um exercício de ressurreição. Praticável e aplicável a comunidades que oram juntas, em grupos que cantam juntos, em irmandades que se edificam juntas. Um exercício de ressurreição. Que previne desesperos, que ameniza as quedas, que nos lembra que não estamos sozinhos, que nos garante que a vida é sempre mais mesmo quando nos surge atada, complicada, destruída. Um exercício de ressurreição. Uma escolha para a vida para que a vida em nós viva para sempre. Precisamos tanto deste lembrete diário: a vida pede-nos que ressuscitemos todos os dias, que façamos daquilo que somos um projeto de ressurreição, que ousemos escolher sempre o que nos faz ser em eternidade. Saibamo-nos ressuscitados, erguidos, levantados, cultivemos esta dádiva. Olhemos com confiança e determinação para as escolhas que fazemos e que nos ressuscitam. Exercitemos esta ressurreição. A nossa, no aqui e no agora de cada dia.
“Mas é isto o amor: ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo esse que mal corria quando por ele passámos, subindo a margem em que descobri o sentido de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo que o tempo nos rouba.”
(Nuno Júdice in “Pedro lembrando Inês”)
✨Quatro anos da partida do Jorge
Quatro anos que, por vezes, mais parecem quarenta anos e outras tantas vezes parecem quarenta minutos. É a dualidade desta vida inteira que nos oferece simultaneamente uma alegria contagiante e uma dor aguda, que nos dá e nos tira, que nos faz caminhar e parar.
Quatro anos da viagem do Jorge.
Vivemos a sua morte, mas escolhemos, todos os dias, afincadamente, não ficarmos no que esta morte significa. Celebramos sempre a sua vida com a certeza de que o que ele nos deixou tornou-nos herdeiros de um futuro maior, sempre mais livre, sempre mais comprometido com o bem comum.
Quatro anos da passagem do Jorge.
Continuamos com perguntas, mas vivemos com a certeza de que tudo é feito também em sua memória. Continuamos com a sua ausência marcada em nós, mas o nosso presente é feito da sua presença perpétua. Continuamos de braço dado com a saudade nossa companheira de vida, mas abraçamos também os nossos dons em consolação, os nossos risos em salvação, as nossas palavras em convicção.
Há quatro anos que celebramos este dia. Num exercício de ressureição. Num exercício de levantamento. Para trás vão ficando as lembranças mais cruas que dão lugar às memórias felizes. Para trás vão ficando os dias negros que se transformam em apaziguamento, fruto de uma vida trabalhada em unidade. Para a frente vão surgindo aqueles prados verdejantes onde escutamos sempre aquela voz cheia de vida e riso e que sempre nos guia. Para a frente vamos caminhando juntos nesta Estrada Clara. Sigamos!
Deixamos aqui os registos do décimo-quarto encontro “Falar para CRER”, organizado pela paróquia da Matriz em colaboração com a Comunidade Estrada Clara. Este encontro aconteceu no dia 10 de julho e, antecipando o período de férias, o texto proposto para partilha teve como título “As férias ensinam a olhar, perguntar, pensar”. A partir deste texto de Enzo Bianchi, pudemos refletir acerca da importância das férias e dos momentos de pausa para praticarmos a contemplação, para vivermos a vida devagar e para refletirmos também acerca do futuro. Cada vez mais a sociedade da qual fazemos parte impele-nos a sermos produtivos, comerciais e utilitários, relegando para um plano meramente secundário a valorização da reflexão, da escuta, da interioridade. Este texto interpelou-nos a cuidar destes momentos de paragem que são propícios a este conhecimento interior, a esta profundidade tão necessária para encontrar uma vida com sentido. Partindo das palavras de Enzo Bianchi, em pequenos grupos, tivemos a oportunidade de refletir acerca das seguintes questões: sou capaz de encontrar, no meu dia-a-dia, momentos para parar, olhar em volta, agradecer, avaliar, questionar; em que medida as férias são importantes para o meu equilíbrio físico, mental, emocional e espiritual. Depois, em grande grupo, partilhamos as ideias de cada grupo e pusemos em comum experiências pessoais de momentos de reflexão e de paragem. No final deste encontro, em clima de preparação para férias e também como forma de agradecimento por todos os encontros que fomos tendo ao longo deste ano pastoral, terminamos com um pequeno convívio entre todos.
Recordamos que estes encontros “Falar para CRER” estão sempre abertos a todos os agentes da Pastoral (Catequistas, Jovens, Conselho Paroquial, Leitores, Grupos Corais, etc.) das comunidades paroquiais. Não é necessária inscrição, basta aparecer. Em cada mês é proposto um tema diferente e independente dos temas anteriores. Juntem-se a nós! O que de diferente têm estes encontros “Falar para CRER” é a criação de um espaço comunitário onde cada pessoa presente pode fazer partilha do que significa para si ser cristão nos dias de hoje e, sobretudo, ser cristão com os outros.
Próximo Encontro “Falar para CRER – 9 de outubro (4.ª feira), das 21h30 às 23h, na Casa Padre Fonte (Póvoa de Varzim)
“Tocámos flauta para vós e não dançastes, entoamos lamentações e não chorastes.” (do Evangelho segundo São Mateus 11, 17)
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
Na última edição dos Globos de Ouro, a cantautora Ana Lua Caiano, ao ser galardoada com o dito prémio para melhor música do ano, agradeceu a atribuição que lhe foi dada com um discurso simultaneamente simples e factual. Lembrou ela, no tal discurso, a importância que a música assume na vida de todos os dias, em todos os momentos e circunstâncias, ao ponto de ter tido e continuar a ter o poder de destruir ditaduras e provocar revoluções. Uma das frases por ela dita tocou-me particularmente: “A música acompanha-nos quando estamos de luto ou quando nasce alguém.” É das tais verdades mais que evidentes que todos sabemos que existem, mas que precisam de ser ditas por alguém e por nós ouvidas para termos a possibilidade de nelas nos demorarmos a pensar. De facto, a música tem este poder, tem este acompanhamento, tem esta relação connosco, esta ausência de indiferença.
A música serve aqui como um exemplo da necessidade que temos de estarmos disponíveis para o que a vida nos quer oferecer. Na estrada que é a nossa vida, vamos acumulando vivências e experiências que nos vão edificando. A grandiosidade da vida reside precisamente na nossa abertura à realidade e, também ao que vai para além dessa mesma realidade e que só é visível com um olhar amplo, atento, amoroso. O tal olhar de Jesus. A tal forma de perspetivar as circunstâncias vividas. A tal postura perante o que vai acontecendo e que faz toda a diferença.
As palavras que Jesus usa, retiradas do Evangelho segundo são Mateus e que servem de mote a esta reflexão, são dirigidas à sociedade do seu tempo, uma sociedade fechada no seu casulo, importada tão somente com o seu ego, defendendo acerrimamente os seus individualismos. Uma sociedade onde as pessoas só pensavam nos seus interesses e onde não sobrava espaço para o ideal comunitário. Uma sociedade onde o bem, a confiança, a justiça, a fraternidade, a comunhão e o respeito não faziam parte dos gestos diários. Uma sociedade não muito diferente da atual…
Na busca desenfreada pela perfeição, pela excelência individualista, pelo ganhar, o egocentrismo domina e impede-nos de olharmos os outros com compaixão, com atenção, com amor. Tornamo-nos insensíveis, frios, distantes, incapazes de dançar com quem está alegre ou até acompanhar a tristeza de quem precisa de ser cuidado. O coração torna-se impermeável a tudo o que implique relação e ação que nos impele de ir ao encontro da irmandade a que se pertence. Tornamo-nos como máquinas que reproduzem horários, rotinas, compromissos, fugimos dos desafios, dos imprevistos, das relações. Profissionalizamo-nos em regras e desconhecemos a sensação de falar em silêncio com quem está perto de nós. Evitamos o abstrato, ignoramos a poesia salvadora, fechamo-nos à simplicidade. Esquecemo-nos de rir até nos doer a barriga porque isso não é sinal de adultez e não temos tempo para abraçar um amigo que precisa porque há um relatório urgente para entregar. E assim vamos vivendo, despojando-nos da essencialidade que o amor nos traz e enchendo-nos do que menos importa. E assim a vida dá-nos aquilo que nela investimos que ou é muito ou muito pouco.
Como é que eu vivo a minha humanidade com quem me rodeia? Como é que eu me vejo atento aos que se cruzam comigo? De que forma me faço próximo quando a vida me chama para perto de quem precisa? Onde me posiciono perante as circunstâncias do meu próximo? Tenho espaço na minha vida para praticar a alegria comunitária? Estou disponível para consolar quem de mim precisa? Estas são apenas algumas das questões que me inquietam e, ao mesmo tempo, me fazem crescer em caminho, sempre simultaneamente pessoal e comunitário.
Quando olhamos para os nossos dias e para o que nos acontece, admiramo-nos muito com acontecimentos de bondade, pois estes aparecem marcados pela raridade. A maldade está de tal forma banalizada que a bondade surge como a exceção que confirma a regra. Nas conversas que ouvimos por aí, escritas ou faladas, o assunto tende sempre mais para o negativo, para o mal, para o negro. Fala-se muito de empatia, mas somos capazes de a praticar? Com origem no termo em grego empatheia, que significava “paixão”, a empatia pressupõe uma comunicação afetiva com outra pessoa e é um dos fundamentos da identificação e compreensão psicológica dos outros indivíduos. A empatia é a capacidade de sentir o que sentiria outra pessoa, caso estivesse na mesma situação vivenciada por ela. É tentar compreender sentimentos e emoções, procurando experimentar o que é vivido pelo outro.
A vida é esta dança entre risos e lágrimas, encontros e separações. É um fluir entre avanços e recuos, entre coragem e medo. Por isso é tão importante um sentido de flexibilidade quotidiano que nos permita viver estas emoções de forma equilibrada. Sermos capazes de ouvir a flauta que é tocada para nós e entrar na dança. Escutarmos o choro de quem sofre e, sem hesitações, sermos colo e abrigo.
O que nos salva é simplesmente este saber viver, este saber estar atento ao que nos rodeia, ter a capacidade de sermos gratos e de procurarmos o que nos preenche e é a nossa verdade. E só acedemos a este estado de verdade e coerência quando nos deixamos guiar por um coração cheio, empático, presente, próximo. Um coração como o de Jesus. Um saber amar como o de tantos homens e mulheres que o seguiram. Aquilo que nós vemos no mundo é resultado daquilo que trazemos dentro de nós. Por isso, é tão importante cuidarmos no nosso interior, preservarmos a alegria de viver e atentar nos momentos de tristeza que nos acompanham. Viver é saber escutar aquela música que chama por nós. Que nos chama a ser mais pessoas, mais cristãos, mais completos nas nossas fragilidades vividas em confiança. Escutemos esta música. Dancemos juntos ao som dos instrumentos. Abracemo-nos em consolo de fortaleza. E assim a vida será uma só. Eterna!
“Encontro em Ti” é o nosso momento de oração mensal, na igreja Matriz e alargado a toda a comunidade paroquial. Uma experiência de partilha com quem vem meditar connosco e assim fazer memória e presença de um Deus que vem sempre ao nosso encontro. A oração é a base primordial na identidade da Comunidade Estrada Clara. Desde sempre que, como qualquer grupo cristão, privilegiamos estes momentos de meditação e de silêncio, num encontro com Ele e connosco próprios.
A oração na Comunidade Estrada Clara surge como compromisso comunitário. O esquema da nossa oração baseia-se na Liturgia das Horas, a oração pública e comunitária oficial da Igreja. A esta liturgia juntamos os cânticos, as nossas reflexões e o silêncio. Sempre o silêncio. Tão importante numa sociedade em que parece que o mais valioso é sempre o barulho, o ruído, o que fala mais alto. Há muito que descobrimos que é no silêncio e na serenidade que vamos sendo mais pessoas, que vamos conhecendo mais a nossa luz, que nos vamos tornando embaixadores do divino que vive em nós e assim construindo uma comunidade pensante e orante.
“Encontro em TI” – na 1.ª quinta-feira de cada mês, na Igreja Matriz da Póvoa de Varzim, das 21h às 22h
O canto na liturgia e na oração tem um significado profundo para os elementos da nossa Comunidade e esta animação litúrgica está associada ao nosso modo de viver a Igreja na Igreja. Não somos só um grupo coral, mas sim uma Comunidade que se junta para rezar e viver a liturgia através do canto e da música. Alguns dos elementos da Comunidade Estrada Clara têm formação musical em canto e em instrumentos (piano, guitarra clássica, saxofone, entre outros). Muitos de nós já cantamos juntos desde muito novos, há já quase trinta anos. Muitos dos cânticos que cantamos nas Eucaristias são da nossa autoria, precisamente porque são o fruto do nosso modo de rezar, de louvar, de anunciar, através das palavras e da música, este Deus que nos ressuscita todos os dias. A nossa música, os nossos cânticos, os nossos silêncios musicais são parte da nossa identidade como comunidade. Hoje em dia, gerindo disponibilidades e agendas, famílias, responsabilidades profissionais, idas e vindas, ensaios e outras combinações, vamos mantendo este compromisso mensal de nos juntarmos, na nossa comunidade paroquial, para cantar este Deus que nos une e que fez e faz de nós uma irmandade com tempo e espaço para descobrirmos em nós a alegria de vivermos juntos!
A Comunidade Estrada Clara é responsável pela animação do canto na Eucaristia do 1.º domingo de cada mês, às 19h, na paróquia de Nossa Senhora da Conceição (Matriz), Póvoa de Varzim.
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
“Mas Jesus costumava retirar-se para o deserto para rezar.” (do Evangelho segundo São Lucas 5, 16)
Numa altura em que a sociedade se prepara para novos inícios, novos horários, recomeços e atividades, lembro algo que parece ser o oposto do que se anda a viver – a necessidade de silêncio e de paragem. Sim, é importante recordar que, apesar das férias terminarem por estes dias, precisamos cada vez mais de reservar, ao longo dos nossos dias, momentos de paragem que nos libertam dos estímulos em excesso, das distrações fúteis, da carga de superficialidade que inegavelmente faz parte da condição humana.
Vivemos, muitas vezes, tão descontroladamente como se fossemos capazes de controlar tudo e todos. Andamos, inúmeras vezes, apressadamente a realizar todas as tarefas para ontem como se soubéssemos que o dia de amanhã é sempre todo nosso. Corremos, tantas e tantas vezes, em direção a uma meta que, outras tantas vezes, nem sabemos bem onde ela está. Hoje, somos cada vez mais impelidos a ocupar todos os espaços que deveriam ser habitados pelo silêncio. Preenchemos esse espaço com música, televisão ou telemóvel. Sobrecarregamo-nos de ruídos que nos impedem de ouvir o silêncio que está dentro de nós. Temos medo que o silêncio se sobreponha e que fiquemos despidos da realidade que nos traz segurança e o conforto conhecido. Mas é precisamente neste espaço em que estamos em silêncio que a vida nos é dita, que as ideias fluem até nós, que a serenidade nos vem habitar.
São imensamente conhecidos os vários estudos sobre o benefício do silêncio: o silêncio ajuda a controlar a pressão arterial, reduz o risco de problemas cardiovasculares, melhora o sono, é um aliado seguro contra a ansiedade e a depressão. Algumas pesquisas comprovam também que ficar em silêncio pode ainda levar ao crescimento de novas células cerebrais no hipocampo, região do cérebro relacionada com a aprendizagem, à memória e às emoções. O silêncio é, por excelência, um instrumento de autoconhecimento. O silêncio é o tempo que nos é dado para pensar. Com o silêncio abrimos espaço à nossa vida interior. É também no silêncio que aprendemos a escutar quem somos e a trabalhar a empatia pelos outros. Por isso, saber estar em silêncio não é sinónimo de estar triste ou amuado. Saber parar também não significa desistir. Parar para estar em silêncio connosco próprios permite-nos receber novas forças, limpar pensamentos, procurar novas ideias.
Como seres humanos que somos, temos de cuidar da nossa interioridade e do nosso crescimento interior. E parte deste nosso desenvolvimento pessoal só é possível quando damos espaço ao silêncio. Nas palavras do Cardeal Tolentino, “o silêncio é indispensável. É uma condição da nossa existência. Sem o silêncio, as realidades sobrepõem-se – palavra acima de palavra –, e não damos espaço a uma audição efetiva da realidade, seja a externa, seja a nossa interior.”
O silêncio é difícil, pede-nos disponibilidade interior e faz-nos encarar, de frente, quem nós somos, as perguntas que nos fazemos e as respostas que nos damos. Mas é este mesmo silêncio que nos salva, que alarga a nossa profundidade, que nos faz descobrir quem nós vamos sendo. O silêncio é uma ferramenta de autoconstrução. Para a religião, o silêncio é uma dimensão importantíssima porque nos estrutura e através dele, tantas e tantas vezes, somos capazes de escutar a voz silenciosa de Deus. Jesus também sabia desta importância fulcral do silêncio e, nos momentos mais decisivos da sua história de vida, soube retirar-se para refletir e fazer do silêncio a sua fonte de serenidade. Há mais de dois mil anos, o Cristianismo vem fazendo anúncio desta necessidade de escuta interior, de paragem, de silêncio. O que hoje vemos nas redes sociais acerca de retiros detox ou outros similares já a Igreja vem oferecendo aos seus crentes, com a vantagem de ter sempre em perspetiva a ideia de comunidade e de crescimento pessoal em irmandade que somos e não um objetivo meramente individualista.
Por isso, desde sempre, temos muito presente na nossa comunidade a importância do silêncio e das paragens em momentos importantes das nossas rotinas. Na nossa oração comunitária, temos sempre alguns minutos em que estamos simplesmente a ouvir o nosso silêncio interior. Este exercício de estar em silêncio é isso mesmo, um exercício e, por isso mesmo, requer prática, disponibilidade, insistência até que se vai tornando natural. Também promovemos, entre nós, os nossos momentos de retiro, em que nos comprometemos, durante alguns dias, em estar uns com os outros e com o Outro de forma mais íntima, mais profunda, aproveitando esses momentos não para fugir da realidade, mas para olhar para a realidade com outros olhos e novas perspetivas. São momentos importantes, em que nos sentimos a crescer, em que nos voltamos para nós, em que percebemos a falta que nos faz dar espaço ao silêncio e ao estarmos connosco próprios. Em Taizé, essa grande casa do silêncio, é também o espaço privilegiado para, no meio da natureza, da música e da meditação, encontrarmos Deus e, consequentemente, escutarmos o nosso interior. Nesta necessidade de nos retirarmos, descobrimos também, há algum tempo, a prática dos Exercícios Espirituais, que são retiros, segundo o método de Inácio de Loyola. São uma experiência pessoal, através da qual nos dispomos a estar com Deus num ambiente de silêncio, durante alguns dias, acompanhados por um orientador espiritual. Quando, pela primeira vez, fizemos os Exercícios Espirituais, apercebemo-nos da falta imensa que nos fazia uma atividade destas. Ter tempo para nos escutarmos e para escutar o que Deus nos quer dizer.
Num dos seus poemas, Miguel Torga fala-nos do “sacramento do silêncio”, uma expressão belíssima para divinizar tudo aquilo que podemos viver quando experimentamos genuinamente o silêncio. As palavras ganham outra força, os sentidos surgem alinhados, a vida vai sendo vivida com outra consciência e foco. Que este novo tempo de recomeços e projetos que agora iniciamos seja ele entrelaçado sempre com momentos de silêncio e de paragens interiores para irmos construindo quem somos na arte do encontro, da comunhão, da história de um amor sempre maior.