A fotografia é a da nossa primeira sala de oração, na primeira casa partilhada por mim, pelo Jorge e pela Beatriz quando começamos a viver em comunidade, em 2005. Uma sala pensada ao detalhe pelo Jorge, especialista em sensibilidade decorativa e um apaixonado pela beleza litúrgica espacial. Deitaram-se paredes abaixo para espanto do construtor da casa, escolheu-se a cor perfeita, usou-se a madeira mais apropriada. Encontramos também as almofadas adequadas e que ainda hoje usamos (conseguimos esgotar, na altura, o stock dos hipermercados Feira Nova no norte do país!). Trouxemos os ícones de Fátima e de Taizé. E assim criamos, de raiz, o nosso primeiro espaço de oração, na altura disponível também para os grupos de adolescentes e jovens que estavam à nossa responsabilidade. Para além do habitual encontro semanal ao sábado, estes grupos partilhavam uma hora de oração connosco ao final de um dia da semana. E, assim, aos poucos e subtilmente, íamos colocando nas suas rotinas e corações esta prática da oração. Uma espiritualidade meditativa e pensante fez sempre parte da nossa identidade. Um grupo que caminha alimenta-se da oração comunitária. Um grupo que cresce precisa do silêncio contemplativo, das palavras em comunhão, dos cânticos em ação. Ao longo dos anos, fomos exercitando em comunidade esta bênção de nos sintonizarmos espiritualmente.
Celebramos, esta semana, três anos de “Encontro em TI”, o nosso momento de oração na nossa paróquia. Ter um momento de oração aberto a todos foi sempre um sonho nosso. Graças à sensibilidade do nosso pároco e à sua visão comunitária e profética da Igreja, pudemos concretizar esta nossa vontade, logo um ano após a partida do Jorge. Ao longo destes três anos, este espaço mensal tem sido casa de quem vem meditar connosco e assim fazer memória e presença de um Deus próximo. Somos muito gratos a quem vem rezar connosco. Continuaremos juntos a seguir nesta viagem à interioridade fecunda, ao sacramento do silêncio, à beleza das palavras cantadas.
Momento de Oração Comunitária “Encontro em Ti” – na primeira 5.ª feira do mês, das 21h às 22h, na Igreja Matriz da Póvoa de Varzim
“Mas é isto o amor: ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo esse que mal corria quando por ele passámos, subindo a margem em que descobri o sentido de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo que o tempo nos rouba.”
(Nuno Júdice in “Pedro lembrando Inês”)
✨Quatro anos da partida do Jorge
Quatro anos que, por vezes, mais parecem quarenta anos e outras tantas vezes parecem quarenta minutos. É a dualidade desta vida inteira que nos oferece simultaneamente uma alegria contagiante e uma dor aguda, que nos dá e nos tira, que nos faz caminhar e parar.
Quatro anos da viagem do Jorge.
Vivemos a sua morte, mas escolhemos, todos os dias, afincadamente, não ficarmos no que esta morte significa. Celebramos sempre a sua vida com a certeza de que o que ele nos deixou tornou-nos herdeiros de um futuro maior, sempre mais livre, sempre mais comprometido com o bem comum.
Quatro anos da passagem do Jorge.
Continuamos com perguntas, mas vivemos com a certeza de que tudo é feito também em sua memória. Continuamos com a sua ausência marcada em nós, mas o nosso presente é feito da sua presença perpétua. Continuamos de braço dado com a saudade nossa companheira de vida, mas abraçamos também os nossos dons em consolação, os nossos risos em salvação, as nossas palavras em convicção.
Há quatro anos que celebramos este dia. Num exercício de ressureição. Num exercício de levantamento. Para trás vão ficando as lembranças mais cruas que dão lugar às memórias felizes. Para trás vão ficando os dias negros que se transformam em apaziguamento, fruto de uma vida trabalhada em unidade. Para a frente vão surgindo aqueles prados verdejantes onde escutamos sempre aquela voz cheia de vida e riso e que sempre nos guia. Para a frente vamos caminhando juntos nesta Estrada Clara. Sigamos!
Em 2002, foi este o nome com o qual batizamos o primeiro fim de semana dedicado aos jovens e por nós organizado na nossa paróquia. Um dia de partilha, de música, de grupos, de conversas, de canções, de movimento, de musicais. Dia dos jovens, da juventude, de Jesus! Foi a primeira de muitas atividades totalmente pensadas pelo Jorge para oferecer aos jovens da altura. Com a sua exigência tão característica, com a sua vontade de fazer bem o bem, com o seu desejo de a todos acolher e anunciar aquele Jesus que foi sempre toda a sua vida.
Volto hoje a esse primeiro Dia J porque é preciso voltar a rebatizar esse dia e assumir memória do que continua a ser. E hoje volta a ser o Dia J. Porque é o dia do aniversário do Jorge. O dia todo da sua vida connosco. O dia que Deus escolheu para que ele viesse habitar no meio de nós.
Dia J. Dia do Jorge. Dia de agradecer a sua vida toda que foi toda ela serviço, canções, palavras e ação.
Dia J. Dia do Jorge. Dia de lembrar as suas palavras que ecoam nos nossos corações e nos impelem a sermos sempre mais pessoas em comunidade.
Dia J. Dia do Jorge. Dia de assumir as suas inquietações que agora trazemos em nós e que nos lembram que a vida em amor é sempre um salto de confiança.
Dia J. Dia do Jorge. Dia de azul, de livros falados, de bolos XXL, de ataques de riso, de passeios e de voltas às rotundas.
Dia J. Dia do Jorge. Dia de nascer para ser vida e ser vida com um significado tão profundo que vence qualquer separação.
Dia J. Dia do Jorge. Dia da atenção plena aos outros, do cuidado com todos os detalhes, do amor ao campo e à arte do descanso.
Dia J. Dia do Jorge. Dia de viagens longas de autocarro, de paragens em estações de serviço pela madrugada, de acantonamentos cheios de sol e de estrelas.
Dia J. Dia do Jorge. Dia dos silêncios fecundos, das conversas noturnas e das folhas amarelas nos temas partilhados.
Dia J. Dia do Jorge. Dia da festa maior embrulhada em saudade e enfeitada em abraços cheios daquela irmandade que nos continua a salvar todos os dias.
Um texto de gratidão. A todos, por todos e para todos. O que vivemos esta semana contrastou com as intempéries climatéricas que têm assolado o nosso país. Enquanto no exterior temos enfrentado vento e chuva, no interior da nossa Comunidade fomos alegria e partilha. Como tantas vezes temos dito, este contraste não acontece por acaso. Uma vida com significado não é uma vida ao acaso, ela acontece para ser olhada e acontecida em nós e assim assumida na sua totalidade. Numa semana de memórias e de saudade, de percalços e de ausências, escolhemos não habitar nessa zona de perda e dar o salto, simultaneamente confiante e imprevisível, que nos leva ao outro lado, ao espaço da alegria, da dor que é trabalhada para dar fruto, da comunhão de vida com quem connosco caminha.
No dia 1 de novembro, lembramos a vida do Jorge nas nossas vidas numa festa que, para nós cristãos, é a maior de todas – a Eucaristia. A festa que o Jorge gostaria que lhe fizéssemos! A festa do encontro, da partilha, das palavras cantadas, da música tocada, dos abraços e dos braços no ar, na igreja que foi o seu coração durante a sua vida toda. Este é nosso lugar de pertença, de crescimento, de doação. “Esta é a geração dos que procuram a vossa face, Senhor”, cantávamos nesse dia no salmo, uma das mais belas músicas feitas pelo Jorge. Esta geração somos nós, os que seguimos. Aceitando os obstáculos e dando as mãos para os enfrentar, cantando e rindo quando tantas vezes as lágrimas nos caem. Que alegria sermos esta geração que caminha em comunidade, tal como sempre foi o desejo do Jorge!
Na quinta-feira, celebramos o 2.º aniversário do “Encontro em TI”, a nossa oração comunitária mensal na Igreja Matriz. Um sonho nosso antigo, este o de levar a nossa forma de orar para a comunidade e, assim, rezarmos juntos com a música, as palavras, o silêncio. No final, levamos esta partilha para a volta da mesa com quem, numa noite ventosa, se juntou a nós. E que convívio tão genuíno, tão simples e tão agradável, como é tudo aquilo que verdadeiramente importa!
Este é um texto de profunda gratidão. Como diria o Jorge, esta semana foi “uma riqueza”! Obrigada a vós que caminhais connosco nesta Estrada Clara! Seguimos juntos!
Hoje celebramos a VIDA do Jorge, não a morte. Festejemos e cantemos! Se possível, dancemos também e abracemo-nos em risos cheios da alegria que nasce de quem se sabe irmão. O Jorge é festa em nós e hoje somos nós essa festa que ele continua a fazer nas nossas vidas. Por isso, hoje celebramos!
Celebramos a vida do Jorge quando continuamos a ensaiar, a querer colocar as nossas vozes no sítio correto, a confiar que cada Eucaristia cantada se multiplica em Amor doado.
Celebramos a vida do Jorge quando pelas nossas palavras e gestos anunciamos um Deus que nos ama e nos faz ser aquela luz que ilumina a escuridão e que dela nos salva.
Celebramos a vida do Jorge quando continuamos a fazer das nossas fragilidades força, das nossas lágrimas risos, dos nossos medos coragem.
Celebramos a vida do Jorge quando somos mais do que os horários, do que as carreiras, do que as desculpas usadas para não estar, não ir, não fazer.
Celebramos a vida do Jorge quando o conjugamos neste tempo presente que é o indicativo de um caminho comunitário de uma vida orante e pensante.
Celebramos a vida do Jorge quando nos continuamos a juntar em volta da mesa para comermos juntos, para partilharmos histórias, para sonharmos projetos.
Celebramos a vida do Jorge quando somos casa uns para os outros, quando continuamos a conversar durante horas sobre o que nos inquieta e nos incomoda, quando pertencemos à vida uns dos outros.
Celebramos a vida do Jorge quando continuamos a escolher a confiança e o acolhimento mesmo quando são opções tão desafiantes.
Celebramos a vida do Jorge porque ele está vivo! Vivo em mim, em ti! É esta a nossa escolha, mais forte do que qualquer morte, mais poderosa do que qualquer dor, mais vitoriosa do que qualquer separação.
Por isso, hoje há festa! Vamos rir e dizer aquelas piadas nossas e tão cheias do que somos. Afinemos as guitarras, preparemos as vozes, usemos roupas bonitas, dancemos e batamos palmas. A festa que o Jorge queria que lhe fizéssemos é aquela que celebramos juntos como comunidade orante. Aquela festa que foi a sua vida toda durante mais de trinta anos, na sua paróquia. Então, venham celebrar connosco! Hoje, às 19h, na Matriz! Viva o Jorge!
As JMJs são música e canções. Por Lisboa, espalharam-se palcos onde muitos grupos cristãos levaram as suas melodias, testemunhando a fé através da arte. E o hino destas JMJ cantado a tantas vozes, com as palavras e a música perfeitas, motivando cada um a partir ao encontro da VIDA.
Nesta dimensão musical da JMJ, partilho aqui dois momentos especiais, que foram para nós sinais da certeza de que o Amor que vivemos nesta dimensão terrena é eterno.
Na cerimónia de acolhimento ao Papa, quando os símbolos das JMJ eram levados ao palco, o @tiagobettencourt cantou a “Viagem”. Uma canção poderosa, de caminho, de aceitação das partidas, de esperança de reencontros numa voz com sabor a casa. Um hino à eternidade! E nada é um acaso! Dias antes, publicávamos, como de costume no nosso site, o texto da reflexão mensal. Eu já tinha um texto meu preparado, mas algo me lembrou que o Jorge tinha escrito, já em 2008, um texto intitulado “Viagem” sobre o simbolismo da viagem que é a Vida. Uma vez que dali a dias partiríamos para Lisboa, entendi ser uma recordação bonita colocar as palavras dele a acompanharem-nos no caminho. E assim foi! Por isso, quando dias depois ouvimos esta canção “Viagem” naquele ambiente de luz, logo os nossos corações se encheram de comoção pois acreditamos que as nossas energias se ligam e se fundem e a presença de quem amamos faz-se sempre inexplicavelmente presente e continua viva em nós.
Na vigília com o Papa, ninguém ficou indiferente quando a doce @carminho cantou “Estrela”. Quando a vimos naquele palco magistral, numa noite tão cheia e tão serena, o nosso coração voltou a encher-se de alegria, aquela alegria que só brota de quem entende que a vida acontece nestes detalhes aparentemente insignificantes, mas que são tudo. E isto porque esta música “Estrela” tem sido a nossa companhia nestes dois últimos anos no “Encontro em TI”, o nosso momento de oração mensal na Igreja da nossa paróquia, esse que foi um projeto antigo e muito desejado pelo Jorge.
A música. Nós. A vida a dar-nos sinais. E ele, com Ele, a falar-nos através das músicas. E sempre connosco, a olhar-nos. Que felizes somos!
Texto de Jorge Ferreira, Comunidade Estrada Clara (este texto foi escrito pelo Jorge em julho de 2008)
Cada um de nós tem de fazer da sua vida uma viagem. E, muitas vezes, para nos descobrirmos e nos conhecermos, há momentos em que esta viagem tem de ser feita na solidão, na relação connosco próprios. Sabemos que para cada pessoa há uma viagem distinta a fazer, um caminho distinto a percorrer. A pessoas diferentes correspondem viagens e caminhos diferentes. Não podemos ter a vida que os outros têm nem eles podem ter a nossa. Somos únicos. Ninguém pode escolher por nós nem nós por os outros. A escolha é sempre nossa. Muitas vezes cedemos à tentação de nos deixarmos ir na corrente, de sermos cópias do que outros já são. Comportamo-nos como os outros para mais facilmente nos sentirmos aceites e não sermos alvo fácil da avaliação dos outros que, quase sempre, é atroz.
Percorrer esta vida sem respeitar quem eu sou significa não andar, não evoluir, estar parado. Parece-me que todos experimentam, numa ou noutra vez, ser diferente dos outros. Uns têm sucesso, evoluem e distinguem-se. Mas à maior parte das pessoas acontece não ter muito êxito na primeira experiência e desistem porque pensavam que se pode obter tudo logo na primeira investida. “É a vida!”, “Não se pode seguir os sonhos!”, “Tens de ser realista.”, “Esse curso não tem saída nenhuma!”, “Não percas tempo com o teu grupo de jovens, agora tens de ter uma vida séria.”, são apenas alguns exemplos ditos por quem passou a pertencer à maioria, à normalidade. Por aqueles que se inscrevem no clube Dia-a-dia, procuram outros iguais a eles, gritam pelo mesmo clube, passam a gostar de coisas que não gostavam, comem o que nem sonhavam existir e olham para as vidas dos outros como meta a alcançar, idolatrando-as. As suas próprias vidas começam a desaparecer. Vivem, mas não vivem. Entre festas e comida, empregos e carreiras, férias e filhos, lá vão andando e cumprem apenas os requisitos mínimos, esquecendo-se da dádiva de uma Vida maior.
Por isso, é-se diferente quando se decide caminhar, quando decidimos saber mais e melhor. É-se diferente quando aceitamos que não podemos ter tudo, mas o que temos, podemos capitalizar em energias renovadoras. É-se diferente quando aceitamos que não podemos ser como os outros, mas podemos valorizar os recursos que temos e começar daí. E ser diferente implica também aceitar que a nossa viagem, em certos momentos, pode ter de ser feita, muitas vezes, no silêncio e na solidão. Sim, sozinhos. Porque num dado momento podemos ter de perder um amigo que não escolheu o mesmo curso que eu, mas eu tenho de continuar. Ou porque não há ninguém que queira fazer comigo uma dieta para me dar força, mas eu tenho de a fazer. Ou porque ninguém quer ir passear comigo, mas posso ir eu. Estudar é um ato solitário. A solidão não é uma morte, mas um estado por vezes necessário ao ato do crescimento. E é deste tipo de solidão que todos fogem. Solidão que nos ensina a refletir e ser responsável. Ter medo deste tipo de solidão implica a pouca reflexão e leva à prática de atos instintivos. A solidão pode ser um momento de redirecionar a nossa vida. Abraão e Moisés ouviram Deus falar-lhes na solidão. Os relatos bíblicos apresentam-nos, cada um deles, em tempos diferentes, na busca de um sentido para a vida, refletindo sobre o seu verdadeiro significado. Abraão, na sua solidão, descobre que Deus não pode estar sujeito às disposições religiosas locais, mas que, a existir, deve ser imenso e estar em toda a parte e ser Um e único para todos os homens. Moisés, na sua solidão, descobre que Deus lhe confia uma missão, a de libertar os seus irmãos que sofrem no Egipto. E descobre que não pode ficar indiferente a esse chamamento. Verdadeiros milagres da solidão. Verdadeiros milagres para a história e para cada um de nós. A ação criadora tem origem na solidão, na quietude. Muitas decisões e mudanças nascem nestes momentos. É certo que o homem é um ser social e com os outros se realiza, mas o que acontece àquela vida que nunca para para refletir e ponderar? O que acontece a uma vida que não tem momentos calmos de contemplação? O que acontece a uma vida que não contempla o sagrado?
Gosto particularmente dos dias a seguir às festas. A seguir ao Natal, a seguir à Páscoa, a seguir às festas do futebol, às festas populares, ao S. Pedro, a seguir às férias. Gosto porque sinto que a vida continua indiferente às festas e enfeites dos homens. Festas, muitas vezes, vividas sem sentido, vividas só para o exterior, para mostrar que se está alegre e feliz. Numa sociedade cheia de barulho e apelos ruidosos, precisamos de encontrar um equilíbrio que nos dê serenidade, que nos faça por a render os nossos dons. Onde está o quadro que foi pintado no meio duma multidão? Onde está o livro que foi escrito no meio do barulho? Onde está a música escrita no meio de uma festa? Não existem. Onde estão as vidas feitas só de barulhos, de shoppings, de modas, de ídolos? Estão vazias.
É no silêncio que tantas vezes descobrimos os maiores significados da nossa vida. Tantos, que há coisas que nem sabemos revelar aos outros. Tão particular o que descobrimos, tão íntima a vivência que, por vezes, não conseguimos partilhar. E guardamos para nós. Ou para dizer noutra ocasião. E crescemos nesse momento. O silêncio não é um buraco onde tudo desaparece. É uma oportunidade de crescimento. O silêncio e a interioridade obrigam-nos a enfrentar e resolver os problemas que temos.
Nas nossas viagens, depois do entusiasmo inicial, depois de cantarmos, depois de conversarmos, de rirmos bem alto, há momentos em que todos se calam e se acalmam e simplesmente pensam. Momentos quietos, mas nos quais ninguém dorme. Momentos em que todos olham pela janela. Momentos em que vemos os pinheiros a andar para trás. E nós para a frente. A natureza tem este poder: o de chamar cada um de nós para aquela solidão preenchida, para o silêncio, para a interioridade, para esse lugar único onde cada um de nós consegue descobrir verdadeiramente quem é. Aquela tal viagem. A viagem.
O Jorge faz anos. Ele é toda a teimosia encarnada num metro e oitenta de altura, as gargalhadas vivas e duradouras espalhadas num corpo sempre moreno, o rosto barbudo e sério a encarar, com respeito, a grandiosidade da vida que acontece.
O Jorge faz anos. Ele é a música plena que envolve, as palavras cantadas e partilhadas em tantas e tantas vozes diferentes, a inquietação constante pelas notas a descobrir em cada canção.
O Jorge faz anos. Ele é a sensibilidade de um abraço forte que é sempre casa que acolhe, a ousadia de viver constantemente em alturas que ninguém suporta, a sorte grande deste encontro eterno que é o nosso.
O Jorge faz anos. Ele é caminho desafiante por entre subidas às altas montanhas e descidas até às águas frescas, uma conversa longa em altas horas, uma evangelização atrativa sem medos nem hesitações.
O Jorge faz anos. Ele é o verbo ir e seguir sem olhar para trás, o encantamento do silêncio no meio do ruído e da agitação, a procura incessante das estrelas mais brilhantes nas noites frias em São João.
O Jorge faz anos. Ele é a exigência de uma vida com sentido, a negação das futilidades ocas, a mão que se estende para que caminhemos à descoberta de quem somos.
O Jorge faz anos. Ele é o ataque de riso incontrolável nas nossas tantas viagens de carro, a psicologia humana e empática espiritualizada, todos os tantos livros aconchegados nas nossas estantes.
O Jorge faz anos. Ele é o azul de todas as roupas, as caminhadas pensativas dos entardeceres de Verão, as plantas que vivem em vasos mil.
O Jorge faz anos. Ele é o canto das crianças nas festas grandes das comunhões da Paróquia, as danças alegres dos nossos musicais nos palcos, os poemas profundos e interpelantes do seu querido Torga.
O Jorge faz anos. E hoje é um dia feliz. Muito feliz. Um dia de saudades inquietantes, mas de muito amor sereno a transbordar. Sempre. Sempre o amor que nos juntou, que se multiplica e que nos continua a levar por esta nossa Estrada Clara. Por tudo isto, seguimos. O maior presente deste aniversário fomos nós que o recebemos! Então, agora, é tempo de preparar a festa! Vamos! Viva a Vida! A Vida toda para toda a Vida!
Texto de Jorge Ferreira, Comunidade Estrada Clara (este texto foi escrito pelo Jorge em novembro de 2008)
“O homem que vive na opulência não permanecerá. Esta é a sorte dos que confiam em si mesmos. Não te preocupes, se alguém enriquece, se aumenta a fortuna da sua casa. Quando morrer, nada levará consigo; a sua fortuna não há-de acompanhá-lo.” Salmo 49
Em tempo de crise, as palavras proféticas da Bíblia gritam-nos com mais força. Crise que não é uma doença nem uma catástrofe natural diante das quais somos quase impotentes, mas uma crise provocada por homens. Homens que sem escrúpulos fazem mal aos seus semelhantes. Há dias, na SIC Notícias, um comentador dizia que a irresponsabilidade dos especuladores da bolsa estava ao nível da irresponsabilidade de Hitler, Mao Tse ou Pol Pot. Homens estes que queriam ter mais dinheiro e mais poder, mais dinheiro e mais lucro, mais lucro e mais dinheiro, mais dinheiro e mais dinheiro. Perderam. E com eles todos. E ao que parece todo o mundo, em efeito dominó, como dizem os economistas.
Penso que toda esta busca incessante e incansável que se faz pelo dinheiro é uma ideia confusa que se generalizou em todas as pessoas de que o dinheiro traz felicidade ou nos põe perto dela. Querer ter mais dinheiro é normal e saudável. Querer ter muito dinheiro, acumular riqueza, possuir tudo à volta até onde o olhar alcança é doença. A árvore do fruto proibido do Éden lembra-nos isso: não nos é dado ter tudo nem saber tudo. O homem não soube ver quão maravilhoso era tudo à volta e preferiu aquele fruto. Hoje faz-se o mesmo. A felicidade não vem de termos mais dinheiro, mas vem na medida em que nos realizamos. Não valemos pelo que temos dentro dos bolsos, mas pelo que temos dentro da cabeça. Somos felizes na medida em que percebemos o que se passa à nossa volta, na medida em que compreendemos os nossos irmãos, os nossos amigos, o mundo, o cosmos. Não se chega a este conhecimento preocupados em ganhar dinheiro nem a pensar no carro que vamos comprar amanhã. A felicidade é um estado sereno. Quieto. Calmo. A felicidade não faz barulho. Não é um mero divertimento. É um estado interior. Parece-me que a felicidade estará ao nível daquilo a Abraham Maslow chama de autorrealização. Na teoria da hierarquia das necessidades humanas que ele apresenta em forma de pirâmide com cinco níveis, a autorrealização é o nível mais elevado e “depende da realização e cumprimentos máximos dos nossos potenciais, talentos e capacidades. Se uma pessoa não estiver autorrealizada, ficará impaciente, frustrada e descontente”. Assim estava o Jovem rico que Jesus encontrou um dia. Apesar da sua grande fortuna e de cumprir todos os mandamentos, como dizia, sentia-se insatisfeito. Jesus disse-lhe como deveria alcançar a felicidade, mas ele não foi capaz de a encontrar “porque possuía muitos bens”. Diz-nos também Maslow que “independentemente das nossas ocupações e interesses podemos maximizar as habilidades pessoais e atingir o desenvolvimento completo da personalidade. A autorrealização não é limitada a celebridades intelectuais e criativas, como os músicos, artistas, astrofísicos. O importante é desenvolver os seus próprios potenciais no mais alto nível possível, qualquer que seja a missão escolhida”. Uma das diversas condições para que possamos sentirmo-nos realizados que mais aprecio é esta: “Estar livre de restrições impostas pela sociedade e por nós mesmos”. Quais são as restrições que a sociedade nos impõe? Como é que eu me livro destas restrições? Como é que eu descubro que tenho uma vontade, um gosto, uma ideia se estou obcecado pela moda, pela fama, pelas tecnologias, pelo dinheiro, pelo bem-estar material? E já agora: o que é que me faz rir? Rio-me com aquilo que os outros se riem? O que é que de mim quero mostrar aos outros? O que é que os outros vêm em mim? Conhecermo-nos e pensarmo-nos chama a felicidade a nós. Ter um telemóvel que a sociedade nos impõe não chama. Nas Forças de Assinatura de Martin Seligman não é mencionado o dinheiro, ter muito ou pouco. Pelo contrário ter muito dinheiro é normalmente sinal de muitas preocupações. “A boa vida consiste em obter a felicidade através da utilização das suas forças de assinatura nos principais domínios da vida. Uma vida com significado adiciona mais um componente: utilizar estas mesmas forças para promover o conhecimento, o poder ou a bondade.”(Martim Seligman). A descoberta das nossas forças e a sua utilização no dia-a-dia pressupõem estarmos livres de restrições, regras e modelos que nada têm a ver connosco, nada nos acrescentam e nada valem. Maslow diz que a autorrealização exige coragem. Eu digo que é preciso coragem para, por vezes, tomarmos certas decisões, tais como abandonarmos um curso que não nos interessa, um(a) namorado(a) que não nos completa, a comida que nos faz mal, o telemóvel, as modas, as manias, as mentiras, a cama, a televisão, o trânsito, o computador se preciso for para sermos nós mesmos, para sermos felizes. “O processo de autorrealização exige esforço, disciplina e autocontrole. Assim, para muitas pessoas pode parecer mais fácil e seguro aceitar a vida como ela é, em vez de procurar novos desafios. As pessoas realizadas testam-se a si mesmas constantemente, abandonando rotinas seguras, comportamentos e atitudes familiares”. (Maslow)
“Estou interessada em fazer filmes que desafiem as pessoas a ser protagonistas das suas próprias vidas.” disse Susan Sarandon há dias de passagem por Lisboa. Ela descobriu que todos podemos conduzir e nossa vida. Ela não acha que só os artistas ou pessoas com dinheiro o podem fazer. Por fim, podemos especular se os especuladores da bolsa que especularam demais e com o dinheiro dos outros se sentirão felizes e realizados. Ou especulados!
“Uma vida cheia de significado é aquela que se junta a algo maior do que nós” (Martim Seligman)
Lembramos hoje a partida do Jorge. Um dia agridoce, um misto de gratidão e dor. Não sei porque é que o Jorge morreu. Com tantos projetos por concretizar. Com metade da vida por viver. Com tantas pessoas que o queriam continuar a amar. Com tantas músicas por fazer e tantas conversas para ter. Com tanto ainda para nos rirmos juntos. Não sei porque é que o Jorge morreu. Mas sei o mais importante! Sei bem porque é que o Jorge viveu. Viveu para nos anunciar que é possível uma vida diferente. Viveu para nos fazer cantar mais e melhor. Viveu para nos mostrar um modo livre, sereno e pleno de acreditar num Deus que é só Amor. Viveu para que a música fosse para nós um meio de anunciar que somos feitos de infinito. Viveu para nos encorajar a saltar em lagoas frias, para aprendermos a contemplar as estrelas e para descobrirmos que há sempre caminhos novos a seguir. Viveu para nos fazer escolher a melhor parte, aquela que só quem vê com o coração conhece bem. Viveu para nos unir numa comunidade orante e pensante. Viveu para nos confrontar com os medos que atrapalham a nossa essência e para nos mostrar que somos muito mais felizes quando nos despojamos do nosso egoísmo e nos focamos uns nos outros. Viveu para desconstruir as nossas ideias pré-concebidas em relação a tantos temas da vida que nos impedem de sermos mais pessoas. Viveu para nos desinstalar da apatia e daquelas vidas que são futilidade e vazias de divindade. O Jorge viveu para nós. Foi a sua escolha. E para sermos nós, agora, nos nossos dias, a continuar este caminho há muito iniciado. Por isso, o que nos tem acontecido, nestes dois últimos anos, também tem sido, como o Jorge diria, “uma riqueza”! Mesmo que não seja como idealizamos, mesmo que seja diferente do que julgávamos que iria ser. Um caminho claro, bonito, edificante porque ele, agora com Ele, caminha à nossa frente. E, afinal, tem sido tudo como sempre foi! O Jorge continua a ser o primeiro, aquele que ia e vai sempre à frente. “Como é, vindes ou não?”, perguntava ele tantas vezes. Sim, Jorge, nós vamos! Nós seguimos aqui, juntos e com tanta gente boa a caminhar connosco nesta Estrada Clara até que, um dia, nos encontraremos juntos num abraço amigo!