No primeiro fim de semana de agosto, alguns elementos da Comunidade Estrada Clara participaram no encontro “Logoterapia e Análise Existencial” promovido na Casa da Torre, em Soutelo, Braga. O encontro foi orientado pela professora universitária e psicóloga Ana Cláudia Fernandes e teve como ponto de reflexão a Logoterapia, a terapia de sentido de vida criada por Viktor Frankl, um psiquiatra austríaco mundialmente conhecido pelo seu livro fundamental, “O Homem em busca de um sentido”, no qual ele simultaneamente descreve a sua experiência enquanto prisioneiro em campos de concentração e lança as bases do seu movimento psicológico. Ao longo de todo o fim de semana, foi possível, em grupo, conhecermos os fundamentos desta abordagem terapêutica que se foca, essencialmente, na busca do sentido para a vida de cada homem e mulher ao mesmo tempo que também reestrutura a noção da experiência do sofrimento e privilegia a ideia de autotranscendência do ser humano. Juntando a tranquilidade e a serenidade de um lugar de retiro como o é a Casa da Torre com a partilha de ideias, de experiências de vida, de questões, de descobertas, este encontro foi um ponto de partida para uma consciencialização do sentido de espiritualidade que cada um de nós busca em cada dia. A Logoterapia é precisamente a terapia de encontro de sentido, na ajuda que fornece a cada um na descoberta do sentido pessoal da vida a acontecer e a realizar. Para os elementos da Comunidade Estrada Clara, a participação neste evento foi inegavelmente enriquecedora, uma vez que veio ao encontro das linhas orientadoras desta Comunidade – o trazer para a luz de cada dia essa busca de sentido último que é o Outro que tudo realiza em nós. Enquanto projeto de vida cristã, a Comunidade Estrada Clara também pretende proporcionar a descoberta da centralidade existencial de cada pessoa, trabalhando profundamente todas as suas dimensões, com especial enfoque na vertente espiritual. Assim sendo, este encontro em Soutelo também serviu de inspiração para atividades futuras a promover tendo como ponto de partida esta descoberta de cada um de nós enquanto seres únicos e capazes de olhar a vida (com todas as suas circunstâncias, alegres e tristes) com serenidade e com esperança.
O neuropsicólogo espanhol Álvaro Bilbao, a propósito da reedição em Portugal do seu livro “O Cérebro da Criança explicado aos Pais” fala, nesta entrevista ao site sapo.pt de temas fulcrais tais como o amor, os limites, a atenção, os afetos, as escolhas, os abraços, o futuro. Das crianças e do mundo, isto é, de todos nós, pais, educadores, família, professores, amigos. Todos somos educadores, todos somos responsáveis uns pelos outros, grandes e pequenos. Na introdução do seu livro, o autor defende que “educar uma criança é uma grande responsabilidade e, provavelmente, o ato mais importante da vida de muitas pessoas”. Todos somos responsáveis uns pelos outros, pelo bem-estar uns dos outros, pelo crescimento não só físico, mas também espiritual das nossas crianças tendo em vista o seu desenvolvimento integral. Lutemos contra a indiferença que tantas vezes teima em dominar o nosso dia-a-dia e nos impede de fazermos do nosso presente um lugar de afetos. Quando deixamos de cuidar do(s) outro(s), estamos a condicionar o futuro de quem cresce connosco. Mas quando assumimos esse cuidado, somos todos responsáveis pela(s) vida(s) que crescem connosco.
Entrevista a Álvaro Bilbao
A pandemia trouxe ao contexto familiar, não excluindo as crianças, ansiedade e medo. Essas manifestações são transitórias ou deixarão marcas no futuro?
A ansiedade e o receio que terão experimentado algumas crianças, cujos pais viveram especialmente o medo e com precauções excessivas, poderão trazer problemas psicológicos no futuro, tais como uma maior vulnerabilidade à ansiedade. Um dos fatores que melhor prevê se uma pessoa em idade adulta voltará a sofrer de ansiedade, é se viveu anteriormente outros episódios de ansiedade. Esta é uma porta que, uma vez aberta, não volta a fechar-se. No entanto, estou bastante otimista, as crianças são resistentes e resilientes. Um bom trabalho dos pais, o regresso à normalidade, antevê que as crianças terão uma vida adulta tranquila. É verdade que nalguns casos estarão mais vulneráveis ao medo. Daí, penso que poderão aumentar ligeiramente os casos de transtornos que se manifestam entre os 12 e os 14 anos de idade, associados ao controlo e ao medo, como as perturbações obsessivo-compulsiva, as fobias e anorexia. Mas, julgo, serão poucos casos e que, na sua grande maioria estarão controlados.
Os confinamentos também trouxeram aspetos positivos na relação entre pais e filhos?
Creio que sim. Muitos pais contaram-me que o confinamento foi uma época dura mas bonita, porque passaram mais tempo com os seus filhos. Tomavam o pequeno-almoço juntos, cozinhavam juntos, faziam os trabalhos de casa com os filhos, divertiam-se com jogos de tabuleiro. Claro que não foi assim para todas as famílias. Sabemos que há casos terríveis, com maus-tratos sobre mulheres e crianças. Podemos imaginar o dia a dia de uma criança, ‘presa’ em casa, que sofre abusos sexuais de um progenitor.
O Álvaro Bilbao é pai. Que recordações tira dos confinamentos em família com os seus filhos?
Estou no grupo das pessoas para quem os confinamentos e a pandemia foram uma oportunidade de aproximação familiar. Antes, passava muitas horas no hospital, em consultas, assim como na escrita dos meus livros. O confinamento permitiu-me estar na companhia dos meus filhos, sem deixar de acompanhar os meus pacientes. Reduzi as horas de trabalho, fizemos jogos e vídeos em família e muitas conversas online com os avós.
Lemos no seu livro a frase: “a infância é o jardim em que vamos brincar quando formos adultos”. Existem manifestações do nosso cérebro infantil no nosso cérebro adulto?
Não consegue imaginar todas as coisas que fazemos em adultos que ficaram gravadas no nosso cérebro infantil. Por exemplo, nas consultas, acompanho adultos que apresentam preocupações associadas à falta de poder aquisitivo, como o medo de ficarem na pobreza, e que estão ligadas a questões das suas infâncias, por terem vivido em famílias com dificuldades económicas. O medo de subir num elevador pode vir de algo que vimos acontecer aos nossos pais nesse contexto. Os filhos de pacientes que, por exemplo, têm esquizofrenia, crescem com medo de padecer de doença mental. Há conflitos que surgem entre o ‘papá’ e a ‘mamã’ por quererem fazer as coisas tal como eram feitas nas casas da sua infância. Também encontramos aspetos positivos. Por exemplo se os nossos pais gostavam de fazer exercício, ou passar o fim de semana em família, também poderemos gostar.
Escreve que o nosso cérebro reúne até aos seis anos um potencial que nunca mais voltará a ter. Que potencial é este?
Durante os primeiros seis anos de vida, o nosso cérebro desenvolve infindáveis conexões que, podemos dizer, são como os pilares de uma casa. São fortes, mas também devemos permitir-lhes alguma flexibilidade. Mais tarde, criará no adulto umas fundações fortes. O cérebro das crianças, nestes primeiros anos, sedimenta estes pilares que lhe trarão maior ou menor confiança na vida futura, desenvolvimento da linguagem e bases para resolver problemas e tomar decisões. Há que dar à criança muito afeto – todo, será sempre pouco -, mas também há que começar a construir com a criança limites e normas. Depois do afeto e dos limites, o terceiro aspeto mais importante é dar atenção, tempo e responder às necessidades da criança de uma forma consistente. Se a criança tem fome, damos-lhe de comer; se tem sono pomo-la a dormir; se está preocupada, há que escutá-la; se tem medo, vamos protegê-la. No fundo, sentir-se segura a todo o momento e saber educar sem gritos ou ameaças.
Escutamos pouco os nossos filhos?
Como pais, muitas vezes não escutamos os nossos filhos. As crianças vão crescer com a ideia de que aquilo que dizem não é importante e, consequentemente, não se sentem importantes. A conversação é muito importante para as crianças entenderem as suas emoções e sentimentos, mas também para desenvolverem a memória, a concentração, a atenção e o vocabulário.
No seu livro utiliza a metáfora de que temos três cérebros em um para nos explicar as diferentes etapas de desenvolvimento e estruturas deste órgão. Que ‘cérebros’ são estes e como podem os pais com eles comunicar?
O cérebro humano desenvolveu-se ao longo de milhões de anos. Os diferentes passos dessa evolução ficaram refletidos na configuração do cérebro, com estruturas mais antigas e outras mais modernas. Na metáfora que utilizo, o primeiro cérebro é o primitivo, o que herdamos dos nossos antepassados mais remotos, as criaturas que saíram dos oceanos e começaram a colonizar a Terra. Este cérebro primitivo satisfaz cinco necessidade básicas: o sono, a alimentação, a temperatura corporal, a proteção contra os perigos e, finalmente, a reprodução. Nas crianças mais pequenas esta última necessidade não está presente, embora haja manifestações como a sensação de enamoramento das crianças com a ‘mamã’. Mas não tem a ver com órgãos reprodutores, antes a nível emocional, pois é a mãe a pessoa que vemos como auxílio. As restantes quatro necessidades são importantes. A criança tem de sentir que não terá fome ou frio, que pode descansar sempre que necessitar e que os pais a protegem de perigos como, por exemplo, de um cão que o quer morder; de um irmão que lhe quer pegar. Comunicamos com este cérebro através de ações, quando dizemos à criança que tem de ir para a cama dormir.
Qual é o segundo cérebro desta sua metáfora?
O emocional. A sua função básica é recordar aquelas coisas que nos fazem sentir bem e provir a nossa sobrevivência, ou o inverso, as coisas que nos fazem sentir mal, pondo em perigo essa sobrevivência. Comunicamos com este cérebro através da empatia, dizendo à criança palavras e frases que a façam sentir-se compreendida. No fundo, sentir que entendemos o que lhe está a acontecer. Em primeiro lugar, a criança sentirá que as suas emoções existem; em segundo, que são adequadas e, em terceiro, compreender-se-á a si mesma e que é alguém valioso. Desta forma, vai saber quais os amigos com quem se sente bem, as coisas de que mais gosta ou menos gosta. Muitos adultos não se compreendem a sim mesmos porque não tiveram, durante a sua infância, este aspeto emocional. Em vez de gritar com uma criança, há que perceber porque está zangada. Sempre que pomos palavras nas emoções, estamos a comunicar com o cérebro emocional. Por último, o terceiro cérebro, o racional ou superior, é aquele que contém a lógica, a memória, a razão e a consciência de nós mesmos. Todas essas funções racionais, estão acessíveis para comunicação através da palavra. Mas, há que entender que, quase sempre, quando uma criança expressa uma ideia, corre atrás de necessidades básicas. Se quer subir a uma árvore e pede uma cadeira, está a expressar a sua necessidade de ser mais forte e de que o pai ou a mãe a vejam.
Refere que educar é simplesmente apoiar a criança no desenvolvimento de seu cérebro. A fórmula é assim tão simples ou há muita complexidade escondida nessa ação?
Enquanto pais queremos ajudar os nossos filhos a que cresçam felizes, que tenham sucesso na vida, que se relacionem com o próximo. O segredo para tudo isto está em ajudá-los a ter um bom cérebro, ou seja, que os três cérebros que referi, o primitivo, o emocional e o racional cooperem. Isto é complexo, até para quem há muito pratica a neuropsicologia como eu. Todos os dias aprendo com os pais. No livro, procuro traduzir todos os conhecimentos de neurociência, de psicologia infantil de uma forma clara e simples.
Os seres humanos sempre usaram ferramentas. No seu livro apresenta-nos ferramentas úteis na educação da criança. Muitos pais quererão saber quais são essas ferramentas. Pode dar-nos dois ou três exemplos?
Sim. Uma das ferramentas é a empatia, ou seja, a ligação com a criança e o entendimento. É importante, pois muitos dos conflitos emocionais que há na família resolvem-se com a prática da empatia. Os pais que dominam a empatia e compreendem como esta é importante, estão a educar um futuro adulto que se ligará aos seus filhos de uma forma magnífica. Também é importante saber estabelecer limites, pois as crianças precisam deles. Sou adepto da educação pela positiva, mas também sou um defensor dos limites, mas sem extremismos. Há pessoas que são muito extremistas e que não gostam que se destaque o afeto, porque defendem uma educação rígida; outras que consideram que só deve haver amor. Algo que está provado cientificamente é que o cérebro precisa de muito amor e limites. As crianças devem ter o reconhecimento dos pais, aquilo a que chamo reforços. Não se pode confundir reforço com prémio, pois este é negativo. Por sua vez, com o reforço, em momentos-chave, a criança ganhará confiança. Por exemplo, no meu trabalho satisfaz-me quando um paciente me agradece. É reforço, não um prémio. Por último, temos tudo o que se relaciona com as alternativas aos castigos. Os castigos não são positivos no desenvolvimento da criança e há ferramentas alternativas, como a reparação de ações que magoaram outras pessoas ou danificaram objetos.
Atualmente, vemos muitas crianças diagnosticadas com défice de atenção. O Álvaro Bilbao é crítico em relação à prevalência deste diagnóstico. Porquê?
Porque temos de ser mais pacientes, entendermos melhor as necessidades da criança. Temos de entender que as crianças precisam de brincar, de se mexer. O défice de atenção só se transforma num problema se não permitir à criança ter uma vida normal. Se tivermos pais e professores pouco pacientes, a criança não pode fazer uma vida normal e terá transtorno. Se formos mais pacientes, se dermos à criança mais tempo para se comportar bem, o índice de diagnósticos de défice de atenção será menor. Os pais têm de saber como propiciar tranquilidade às crianças seja a impor-lhes limites, como já referi, e a saber acalmá-los. Nesse sentido, é também importante que as crianças não usem tantos ecrãs, que lhes subtraem a atenção e aumentam a sua impulsividade.
As crianças precisam de mais atenção e menos medicamentos psicotrópicos?
Sem qualquer dúvida. Muitos estudos dizem-nos, por exemplo, que o índice de melhoria [índice de eficácia] da depressão com medicação do tipo de inibidores seletivos da recaptação da serotonina, como o Prozac, é de 75%. Também sabemos que uma intervenção psicológica adequada reduz igualmente a depressão em 75%. Porque não praticamos mais a psicologia e menos a medicação? Porque esta é mais barata, mais cómoda e mais rápida para os sistemas de saúde, mas é menos positiva a longo prazo. Os pacientes que fazem psicoterapia correm menos risco de depressões a longo prazo. Fenómeno semelhante passa-se com as crianças. As que têm uma boa intervenção psicológica, por exemplo no défice de atenção e na ansiedade, correm um menor risco de terem problemas no futuro.
Quando ontem se anunciou a morte de Desmond Tutu, a nossa comunidade sentiu humanamente essa partida. Há muito que conhecemos este querido arcebispo. E podemos dizer que conhecemos porque partilhamos as mesmas palavras, as mesmas convicções, os mesmos sonhos. E o mesmo sentido de humor! Em 2005, num dos nossos retiros anuais na Casa da Torre (Soutelo) tivemos o privilégio de refletir acerca do seu extraordinário livro “Deus tem um sonho – uma visão de esperança para o nosso tempo”. Durante esse fim de semana, lemos, individualmente e em grupo, passagens deste mesmo livro e partilhamos ideias, conceitos, projetos, sonhos! Saímos desse retiro com a certeza de que cada um de nós era um elemento fundamental neste sonho de Deus para o mundo e que Deus também tinha um sonho para cada um de nós. Esta obra é um pequeno resumo dos vários textos que Desmond Tutu escreveu e com os quais pretende transmitir uma mensagem de esperança, de confiança, de fé e de alegria, mensagem esta pautada pelo seu conhecido humor. Desmond Tutu parte da sua experiência de provação para nos mostrar que todo esse sofrimento pode ser transformado e redimido e dar lugar à esperança e alegria. Este livro está há muito tempo indisponível nas nossas livrarias nacionais, o que é de lamentar, uma vez que é uma obra sempre atual, profética e deveria ser de leitura obrigatória. Pode ser que, com a sua morte, o voltem a publicar. Desmond Tuto está agora a viver o sonho de Deus numa outra dimensão, eterna e gloriosa, depois de ter vivido o sonho de Deus neste mundo terreno e depois de nos ter mostrado que é possível fazermos parte deste sonho. “Como partilhamos o amor de Deus com os nossos irmãos e irmãs, os outros filhos de Deus, não há tirano que nos possa resistir, nenhuma opressão que não possa ser saciada, nenhuma ferida que não possa ser curada, nenhum ódio que não possa ser convertido em amor, nenhum sonho que não se possa realizar.” (Desmond Tutu)
Eis um pequeno excerto do livro “Deus tem um sonho – Uma visão de esperança para o nosso mundo.
Segundo a fé cristã, quando caímos nas garras do diabo e estávamos escravizados pelo pecado, Deus escolheu Maria, uma jovem de uma pequena aldeia, para ser a mãe do Seu filho. Ele enviou um arcanjo para a visitar. Na minha visão isto aconteceu assim:
Truz, truz.
“Entre.”
“…Maria?”
“Sim.”
“Maria, Deus gostaria que tu fosses a mãe do Seu filho.”
“O quê? Eu? Nesta aldeia nem sequer nos podemos coçar sem que toda agente saiba! Tu queres que eu seja uma mãe solteira? Eu sou uma rapariga decente, sabias? Lamento, tenta na porta ao lado.”
Se ela tivesse dito isto, estaríamos numa situação muito complicada. Misericordiosa e maravilhosamente, Maria disse: “Eis a serva do Senhor; que se faça tudo segundo a Sua Palavra.”. E o universo soltou um suspiro cósmico de alívio porque ela tornou possível que o nosso Salvador nascesse.
Maria era uma pobre adolescente na Galileia e lembra-nos que a transfiguração do nosso mundo provém mesmo dos mais improváveis lugares e pessoas. Tu és o indispensável agente da mudança. Não te deves intimidar pela magnitude da tarefa que tens à tua frente. A tua contribuição pode inspirar os outros, encorajar outros que são tímidos a erguer-se no meio do tumulto de distorção, propaganda e engano. A erguer-se pelos direitos humanos onde estes estão a ser violados impunemente. A erguer-se pela justiça, liberdade e amor, onde estes são pisados pela injustiça, opressão, ódio e crueldade; erguer-se pela dignidade humana e pela decência em alturas em que estes nos fazem desesperadamente falta.
Deus chama-nos para sermos seus parceiros, trabalhando para um novo tipo de sociedade em que as pessoas contem, onde as pessoas contem mais do que as coisas, mais do que os bens; onde a vida humana é, não apenas respeitada, mas efetivamente reverenciada; onde as pessoas estejam em segurança e não sofram o medo da fome, a ignorância, a doença; onde haja mais suavidade, mais atenção, mais partilha, mais compaixão, mais riso; onde haja paz e não guerra. A nossa parceria com Deus provém do facto de termos sido feitos à imagem de Deus. Cada ser humano é criado a partir dessa mesma imagem divina. E isto é incrível, uma espantosa asserção sobre os seres humanos.
Do nosso ponto de vista cristão, o nosso Deus é aquele que assumiu a nossa natureza humana. O nosso Deus disse: “Quando fizerdes isto a um dos mais pequenos, meus irmãos, estareis a fazê-lo a mim.” Não temos de andar por aí à procura de Deus. Não temos de perguntar, “Onde está Deus?” Cada um à tua volta – esse é Deus.
Homilia doDomingo XXXIV do Tempo Comum – Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo
Queridos irmãos, queridas irmãs
Neste último domingo do ano litúrgico, Jesus deixa-nos com uma imagem. Uma imagem é um presente fantástico, porque uma imagem vale mil vezes mais do que um argumento ou uma elucubração. Uma imagem agarra-se ao coração e desprende-se aos poucos, não vem toda de uma vez. A imagem habita-nos, deixamo-nos habitar por ela. A imagem torna-se uma espécie de modelo, de tipologia interna, de paradigma de ação. Percebemos que aquela imagem é uma espécie de caminho que se vai abrindo para nós. No final deste ano litúrgico ficamos com uma imagem, uma imagem exigente e maravilhosa. Uma imagem que tem a ver com isto: com o falhar a vida ou o viver a vida plenamente.
O que é o suplício eterno? É o desgosto quando compreendermos que falhamos a vida, que a vida foi em vão, que a nossa construção, as nossas opções, aquilo que nos entusiasmou, nos apaixonou, nos cegou, nos ofuscou, afinal não era isso a vida. Afinal não era esse o modo verdadeiro de nos encontrarmos. Afinal, roubámos a vida e perdemos a grande oportunidade que é a vida. Uma oportunidade precária, frágil, que nós temos de agarrar. É um dom que nos é dado, que temos de agarrar e agarrá-lo no sentido da plenitude. E o que é a vida eterna? É ter vivido de tal maneira que se percebe que essa vida não acaba, é perceber que essa vida nos levou a uma plenitude, que essa vida se tornou fecunda, multiplicada, que essa vida não acabou quando nós acabamos, que essa vida continua, que essa vida é expressão da vida do próprio Deus. Por isso não é apenas uma existência, é uma vida eterna.
A imagem que hoje Jesus nos oferece, no Evangelho, é para dialogar com isto: o que é que estamos a fazer da vida? O que é que é importante para nós? De que maneira encontramos Jesus? Esta imagem é uma imagem de sobressalto porque quer os da direita, quer os da esquerda, chamam a Jesus por “Senhor”. Quer dizer: não é a fé que os distingue. A fé não basta. A fé não os distingue porque, para ambos, Jesus é o Senhor e ambos vivem na expectativa de Deus, ambos vivem a sua vida como lugar de espera de Deus. Mas há uma diferença: é que os da direita não ficaram apenas numa fé processada, numa fé que é confissão de uma verdade, de uma crença, de uma convicção, não ficaram apenas numa fé que é uma tradição recebida, que é um património inestimável. Mas, para usar a palavra de São João Paulo II, souberam mergulhar na fantasia da caridade. Souberam operar a misericórdia, traduzir a fé em misericórdia. De uma forma muito simples, a beleza desta imagem que Jesus nos confia, e a sua força, está também na sua simplicidade.
Nós não temos de quebrar a cabeça para encontrar Jesus. Não. É encontrá-lo pele com pele, é encontrá-lo corpo com corpo. Quando? Onde? Quando damos de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede, quando recolhemos os que não têm casa, os que são peregrinos, quando vestimos os que não têm roupa, quando visitamos os que estão doentes e quando temos compaixão dos prisioneiros ou quando depois sepultamos os mortos. Quer dizer, não é nada de extravagante ou de espetacular. É a expressão de uma humanidade. Estas regras que Jesus nos dá nem sequer são regras religiosas, são um código humano de conduta, o código humano de ser. Um ateu pode-se rever nestas obras de misericórdia. O que é que distingue então um crente, um cristão? É a surpresa de reconhecer que na pessoa do mais pequenino está o próprio Jesus.
Queridos irmãos, o final de um ano é o momento da síntese para perceber o que é que vale a pena e o que é que não vale a pena. Normalmente, fazemos esses balanços a 31 de dezembro. Mas, liturgicamente, fazemo-los nesta Festa de Cristo Rei. O critério para o balanço é este: é o critério do amor vivido, o critério do amor praticado, o critério deste contacto humano, desta relação humana que somos chamados a fazer com os mais pequeninos.
Isto quer dizer o quê? Que não é apenas com os nossos. Temos o dever de amar a família, os amigos, mas Jesus alarga e este indefinido Jesus não diz quem é. Não dizendo quem é está a dizer que são todos. Temos de ser capazes de chegar a Jesus através do agir e não ficarmos apenas a chamar Jesus “Senhor, Senhor”. Dominicalmente reunimo-nos aqui para dizer que Jesus é o Senhor das nossas vidas. E depois? E depois? Onde é que isso nos leva? O que é que fazemos com isso? O que é que isso nos torna?
Esta imagem que Jesus nos dá é uma imagem para nos dar que fazer. Porque a fé tem de dar que fazer. A fé tem de nos levar a esta saída de nós próprios para irmos ao encontro dos outros, nesse encontro de caridade e de amor, nesse encontro com o pobre, com o doente, com o preso, com a vítima, com o sem-abrigo, com aquele que passa necessidades de vária ordem. Estas obras de misericórdia têm uma leitura literal e é preciso não fugir para o símbolo, que é uma zona de conforto. Não, isto é literal. Mas ao mesmo tempo tem tantas dimensões humanas. O que é vestir o nu? É tanta coisa. Antes de tudo, é vestir, mesmo. Mas, depois, é tanta coisa. É dar-lhe o que ele precisa para ser, é colaborar nisso. E, reparem, Jesus não diz para sermos heróis, diz-nos para fazer. Não nos diz: “Tens de fazer 200.” Não. Faz. Faz.
Não há dúvida que, queridos irmãs e irmãos, o amor é uma grande escola, o amor é uma grande escola de vida. É no encontro que temos com os outros que celebramos a esperança da vida, que celebramos a ressurreição, que celebramos a certeza de que Ele está vivo no meio de nós.
Leonor Xavier apresentou aqui, na Capela do Rato, o último livro que escreveu: O passageiro clandestino. É um livro sobre a sua experiência do cancro, de ser portadora da doença do cancro. No fundo, todos nós, numa hora de fragilidade e de doença, sentimos a grande ameaça, o peso dessa ameaça. Mas o que é extraordinário no testemunho da Leonor é que ela aproveita essa condição para celebrar o encontro. Então leva-nos para dentro dos hospitais, das salas de espera, ao encontro com esses anónimos e a perceber como a coisa mais bela é esse encontro com pessoas com outra cultura, com outras idades, que vêm com outras questões, mas que no fundo são “o mais pequenino” naquela circunstância, e ser capaz de estabelecer uma relação de vida. No livro, percebemos que é isso que a salva. Porque depois é um mistério, acreditamos que a medicina faça o seu caminho, acreditamos na força de recuperação da própria vida; mas, como ela diz: “A doença é também uma iniciação” e uma iniciação à vida, a arte do encontro.
Penso que uma vez mais o que nos é pedido é isso. Não é aterrarmos nas nossas certezas, não é engordarmos com os nossos saberes, com os nossos conhecimentos. Isso tudo é muito importante. Mas, depois, podemos ter isso tudo e nunca o ter visto. Jesus tem isto: só se deixa ver na partilha do pão, quando quebramos o pão, para dar o pão aos outros. Isto é: só na vida que se quebra, só na vida que se parte e reparte é que Jesus se dá a ver; o resto nós não o vemos, podemos até sentir o entusiasmo, a paixão do conhecimento, isso também é uma via, mas é uma via insuficiente. A única via completa é a via do amor, é a via da relação, é a via da dádiva, é a via do encontro.
Queridos irmãs e irmãos, celebrar a realeza de Jesus é celebrar a realidade de Jesus. Jesus é real. Não é apenas uma ideia, não é uma herança do passado, não é um fantasma. Jesus é real, é real. E a realidade de Cristo é impressa no mundo através de nós. Jesus não quis fazer um monumento a si próprio, Jesus não quis fundar uma escola, uma tribo, quis juntar homens e mulheres que tivessem esta capacidade de ouvir quem tem fome, quem é peregrino, quem está despido, quem está doente, quem está na prisão. Esta é a via silenciosa do amor, da partilha, da entrega, que nos revela Jesus e nos dá o sentido profundo da bem-aventurança: “Vinde benditos de meu Pai, recebei em herança o reino que vos está prometido desde o princípio do mundo.”
Queridos irmãos, estas palavras são para nós. Não as percamos, não as percamos de vista numa vida embrulhada em nós e nas nossas coisas e coisinhas, que nos afasta da promessa de viver uma vida inteira, uma vida que valha a pena. A maior parte do tempo, aquilo que nos falta é precisamente isto, é dar, é vestir, é ir visitar, é ir ver, é falar, é isso que verdadeiramente nos falta.
Vamos celebrar esta Festa de Cristo Rei sentindo que Ele é o pastor das nossas vidas. Com esta imagem do julgamento final, Ele dá-nos um caminho, acende uma luz no nosso coração. Se hoje, ao escutarmos esta Palavra, uma luz se acendeu, no sentido de nos impelir à caridade, nos empurrar para o amor, para o encontro, para a dinâmica dos gestos, se isto nos empurrar, então quer dizer que esta imagem acordou, despertou em nós o rosto do próprio Jesus.
António Coimbra de Matos, Vária. Existo porque fui amado, Climepsi Editores
Há dois tipos de solidão que é necessário bem discriminar: 1. a solidão objectiva, real e concreta, quando não estamos acompanhados externamente por alguém (o chamado objecto externo); e 2. a solidão subjectiva, interna, quando o espaço interior, psíquico, está vazio de pessoas significativas (os designados objectos internos)
A primeira caracteriza o desamparo ou depressão anaclítica; a segunda, o desânimo ou depressão introjectiva. Ao primeiro sujeito chamamos abandonado; ao segundo, abandónico. No primeiro caso há uma perda do objecto (pessoa significativa); no segundo, uma perda do amor do objecto.
Estar só externamente é triste, aborrecido e perigoso; mas estar só internamente, afectivamente – sem amor – é destruidor da auto-estima, inferiorizante. A solidão interna é muito mais gravosa.
Acresce que, no desenvolvimento e na vida, adquirimos, ou é bom que o consigamos, uma certa capacidade de estarmos sós objectivamente; porém, estarmos sós subjectivamente não seria uma capacidade mas uma anomalia.
Não é bom, todavia, estarmos concretamente sós, sendo, não obstante, bom termos capacidade de estarmos sós – não só porque é necessário para a autonomia, como também nos dá a possibilidade de escolhermos melhor o(s) parceiro(s).
Logo, solidão externa quanto baste; solidão interna o mínimo possível.
Estar realmente só por algum tempo pode ser uma benção; estar afectivamente só é um terrível infortúnio.
Clara Ferreira Alves, Cenas da Vida Americana, Clube do Autor
Podemos fingir que não vemos. Podemos sempre fingir que não reparamos. Embora seja impossível não reparar. É um dos traços fortes do retrato humano e percebe-se claramente em pequenos pormenores mais do que nos grandes gestos. Falo da crueldade. Talvez porque somos a única espécie que apresenta este traço, visível num franzido da boca, num dedo espetado ou encarquilhado, numa ruga da testa, num olhar baixo, numa voz silenciosa. A crueldade gela os que não são cruéis e embriaga os admiradores. A crueldade sobrevive à morte dos seus portadores, como um vírus ou uma bactéria das que vivem há milhões de anos para se replicarem e sobreviverem ao planeta. Quando entramos os portões de Auschwitz ou caminhamos nas linhas de caminho de ferro de Birkenau, sentimos a crueldade, sentimos a mão de ferro na garganta. Uma crueldade cósmica, desnaturada, metafísica. Na vida de todos os dias, a crueldade é um exercício banal. Vemos as pessoas que a praticam e vemos os atos da sua consequência.
Podemos sempre fazer como Brunhilde Pomsel, a secretária de Joseph Goebbels, que morreu esta semana com 106 anos de idade. Brunhilde disse, numa raríssima confissão ao “Guardian” um ano antes de morrer (a propósito de um documentário, “A German Life”), que não tinha a consciência pesada. A família Goebbels era amorosa, particularmente a senhora Goebbels, tinham um cão amoroso, um Airedale (esta necessidade de nomear a raça do cão é interessante) e ela limitava-se a datilografar. Não sabia de nada, nunca soube de nada, e não guardava um vestígio de culpa ou remorso. “Depois da ascensão do partido nazi, o país estava como que enfeitiçado” e ela sabia que “qualquer idealismo poderia descambar num pescoço partido”. Melhor fingir que nada se passava. Quando Goebbels lhe deu para as mãos uma pasta recomendando que a pusesse no cofre e não olhasse, Brunhilde ficou contente pela confiança depositada. Não olhou. Era o processo de Sophie Scholl, uma ativista antinazi executada por alta traição em fevereiro de 1943 por distribuir panfletos de extrema-esquerda na Universidade de Munique. Educada no espartilho prussiano, Brunhilde sabia cumprir o seu dever. Apesar de ser um membro do partido nazi, paga pelos nazis, de trabalhar no coração do nazismo, nunca reparou em nada. Reparou, isso sim, nas unhas perfeitamente cuidadas de Goebbels. Reparou que a vida de uma amiga judia, Eva, se tornou insuportável depois da ascensão de Hitler. Eva desapareceu, mas tirando isso… isso e a manicura, Goebbels tinha uma manicura por dia, e era um bocado arrogante, tirando isso… A manicura ainda hoje lhe dava vontade de rir. Um exagero. De resto, Joseph Goebbels nada tinha de censurável. Quando o viu a falar de “guerra total” no famoso discurso do Sportpalast, admirou-se. Excessivo, não? Goebbels passara de “pessoa civilizada e séria”, um “homem de nobre elegância”, a um “anão a arengar”. Tirando isso… Em 1945, Brunhilde finalmente reparou que a vida mudara. Passou cinco anos em detenção, em várias prisões russas dentro e fora de Berlim, defendendo-se com a frase “eu sou apenas uma datilógrafa”. Décadas mais tarde, resolveu saber da sorte da desaparecida Eva. Morta em Auschwitz. Quem diria…
Pior do que a crueldade, sempre gratuita, é esta indiferença perante a crueldade. As pessoas que resolvem olhar para o lado, fugir com o rabo à seringa, pretendendo não ver. As pessoas que têm horror da resistência. Os facilitadores. Os cúmplices. Os assalariados. Os corrompidos. Os cobardes. Os amorais. Os neutros.
O que assusta em Trump não são as políticas de Trump. O que assusta é a crueldade, traço evidente para quem viu os episódios de “O Aprendiz” ou os primeiros debates contra os republicanos, quando ele não esperava ganhar. Quando descobriu uma aberta em Jeb Bush nunca mais o largou, como um mastim esfomeado a quem atiraram um bife. Vemos a crueldade dentro da auréola branca dos olhos pequeninos, no fungar enervado, na crispação furiosa do desapontamento. E vemo-la no triunfo, quando ela se torna corrupção e prepotência, vingança e soberba. Vemo-la quando ele sai do carro e avança para Obama deixando para trás a mulher, sem lhe abrir a porta ou esperar por ela. Caminha sempre na frente da família, a filha favorita ao lado, o filho pequeno na cauda. Vemo-la nas entrevistas e nas poses. Nos filmes e nos livros sobre ele, pagos ou não por ele. Vemo-la no dedinho autocrático, o bracinho biónico deste Dr. Strangelove. Vemo-la agora, perigosíssima, nestas ordens executivas feitas por medida. E vemo-la, suprema, no olhar maléfico do seu mentor, Steve Bannon, o novo senhor da Segurança Nacional americana. Bannon, o “leninista”, o “Darth Vader” (palavras dele) que gosta de soluções finais para os problemas nacionais e internacionais. O amante da força bruta e da guerra total, o homem que quer destruir o sistema. O ditador dos media. O Goebbels desta ópera bufa. Vemos a crueldade claramente vista. Podemos escolher não ver, como fazem Paul Ryan e Theresa May com olhos murchos. Podemos sempre não ver, mas custa-nos a alma.
Até ao Papa Gregório I (590 a 604 d.C.) os pecados mortais eram
dez. Ele conseguiu reduzi-los a sete. Foi dessa lista que hoje conhecemos que o
neurobiólogo britânico Jack Lewis partiu para estudar a ciência que existe por
detrás do pecado e escrever um livro. Apesar de ter crescido sem acreditar em
Deus e até se considerar ateu, o neurobiólogo deu-se conta de que agia como um
bom cristão: “Toda a vida resisti ativamente à influência do Cristianismo, mas
um dia percebi que a minha moral, o sentido daquilo que considerava estar certo
ou errado havia sido diretamente retirado do modelo cristão. Sem acreditar em
Deus comportava-me como um bom cristão.”
Sabendo que a ciência não tem respostas para todas as questões, Jack Lewis começou a interessar-se pela forma como o cristianismo “estuda” há milénios o comportamento humano: “A ciência é muito mais recente nesta área. O comportamento humano só é estudado há décadas. Há na religião uma velha sabedoria, um conhecimento que resulta de uma coleção de observações feitas por diferentes pessoas, século após século, sobre o que podem ser as regras para uma boa ou uma má vida. Porquê então rejeitar esse conhecimento? Porquê deitar fora o bebé com a água do banho?”
Foi nesta linha de pensamento que Jack Lewis olhou para os sete pecados mortais, definidos por São Gregório, e descobriu neles sete tipos de comportamento. O orgulho, a gula, a luxúria, a preguiça, a avareza, a inveja e a ira “constituem um bom sistema de categorias”, explica Lewis, num tom assertivo. Na opinião dele, os sete pecados mortais são mais do que regras para evitar o Inferno e ir para o Paraíso: “São regras para a vida.” Regras que evitam sofrimento, garantem cooperação, colaboração e boa convivência dentro de um grupo, mas também a saúde do indivíduo: “A ciência já conseguiu provar que uma pessoa isolada tem uma maior incidência de doenças cardiovasculares, cancro, doenças mentais, como depressão, ansiedade e outras desordens borderline, e logo é provável que vá morrer mais cedo.”
Em “A Ciência do Pecado” (Desassossego, 2019), o livro no qual Jack Lewis defende a clarividência dos sete pecados mortais e a sua importância para a boa saúde de quem os respeita, o neurobiólogo escrutina a literatura existente na área da neurociência, os estudos que registam a atividade cerebral sempre que está em causa um dos comportamentos associados a um dos sete pecados. Acaba por concluir que em quatro, destes sete pecados, é ativada sempre a mesma área do cérebro, aquela que está diretamente relacionada com a dor física e psicológica.
Em cada um dos pecados existem, contudo, componentes benignos e
malignos: “Se tivessem sido completamente abolidos, é bastante possível que a
nossa espécie nunca tivesse sobrevivido.” E dá exemplos: “O orgulho pode ter
consequências saudáveis ou nocivas dependendo de como se manifesta em cada um
dos indivíduos. Ser demasiado centrado em si mesmo irrita as outras pessoas,
mas não ter orgulho naquilo que fazemos também pode causar problemas. Uma
pitada de luxúria é claramente vital para a perpetuação da espécie, mas quando
permitimos que a libido domine todas as nossas decisões pode causar grande
sofrimento. A gula permitiu aos nossos antepassados caçadores-recoletores
sobreviverem durante a escassez de alimentos, mas atualmente mata um número
impressionante de pessoas…”
Jack Lewis acredita que o orgulho não foi colocado à cabeça por
São Gregório por acaso. O orgulho “alimenta a chama” de outros pecados mortais,
e pode levar à luxúria, à gula, à avareza, à ira e à inveja, reduzindo a
possibilidade de “forjar relações íntimas, duradouras e cooperantes, com
sucesso. (…) O problema é que o excesso de orgulho é já uma realidade, e
corresponde a uma pandemia dos nossos dias, a do narcisismo: “O mundo está a
tornar-se não apenas mais tolerante para com o exibicionismo obcecado, como
parece mais sedento dele.” De acordo com Lewis, o número de pessoas com
Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN), e logo com menos capacidade de
sentir empatia, ou seja sentir o que os outros sentem, “tem vindo a aumentar
firmemente nos Estados Unidos”. O que não é estranho, tendo em conta que há uma
“normalização do narcisismo”, reiterada pelas redes sociais e pelos meios de
comunicação social. “Não me parece que, em breve, possamos melhorar na área do
narcisismo. O comportamento é altamente incentivado em todos os media, seja na televisão ou nas redes sociais, lugares
onde os narcisistas obtêm mais sucesso, e onde são incentivados a
comportarem-se como idiotas.” É provável que daqui a 20 anos a nossa tolerância
para com o narcisismo seja total, alerta o neurobiólogo.
Também é interessante a relação que estabelece entre o consumo de sites pornográficos nos rapazes e a libido sexual: “Começam por provocar uma resposta de excitação sexual gradualmente menor; a seguir, esta diminuição desenvolve-se numa redução generalizada da libido e pode mesmo resultar na incapacidade de obter uma ereção.” A exposição a muita pornografia acaba por treinar os cérebros para produzirem apenas “respostas sexuais a estímulos supernormais, ou seja, mais intenso, mais chocante do que aquele que encontramos na vida normal”. Cria um efeito a que se começou a chamar “pornificação”, a uma cultura de “aceitação de domínio estereotipado do homem, assim como das práticas sexuais agressivas”. O que não é surpreendente, tendo em conta a natureza neuroplástica do cérebro: “Os ambientes em que passamos o nosso tempo moldam os cérebros e os cérebros desenvolvem capacidades de dar novas formas aos ambientes, que nos moldam ainda mais os cérebros, e assim sucessivamente.” Razão pela qual, Jack Lewis é um grande defensor da meditação, como instrumento para alterar processos mentais doentios que causam muito sofrimento ou do tratamento com drogas psicadélicas em ambientes clínicos.
Num estudo, citado por Lewis, quanto mais inveja uma pessoa sentia, “maior a atividade gerada na parte dorsal ou superior do córtex cingulado anterior dorsal (dACC)”, ou seja, a mesma área ativada por um narcisista sempre que experimenta a rejeição social”. E quanto mais invejosa era uma pessoa, menor era a sua inteligência emocional, menor também uma determinada área cerebral: “O estudo encontrou uma diferença significativa no tamanho de uma região do córtex pré-frontal dorsolateral (dlPFC) que fica mesmo junto à linha de cabelo da maior parte das pessoas, sobre a testa do lado direito. Quanto mais inveja a pessoa experimentava diariamente, consoante os resultados da pontuação da inveja tendencial, mais pequena era esta zona do dlPFC.” Lewis não se limita a analisar os pecados do ponto de vista da sua área científica. Está preocupado com a forma com estes pecados são utilizados todos os dias para produzirem lucro, na nossa sociedade, e bastante sofrimento em muitos indivíduos, além de uma economia que está a gerar escassez de recursos, e alterações climáticas que colocam a nossa sobrevivência em causa.
No final do livro, avança conclusões curiosas, perante as quais até o próprio Lewis se surpreendeu. À cabeça está o caso de o paracetamol ser tão eficaz a combater a dor psicológica quanto a dor física: “Nem queria acreditar quando li”, confessou ao Expresso. Mas também há uma outra conclusão relativa ao Botox: “As pessoas que colocam Botox na cara apresentam comportamentos menos agressivos, porque os músculos paralisam e deixam de conseguir imitar as caras zangadas dos outros. As injeções reduzem as ativações da amígdala quando são apresentadas a estas pessoas imagens com rostos zangados.”
Para Lewis, não há dúvida de que há alguma ciência nestas regras religiosas, no sentido em que elas encerram em si sabedoria acumulada, e que uma vida que se relacione com os sete pecados mortais com moderação pode ser mais saudável não só para o indivíduo como para o grupo: “É importante recordar que o que importa é a qualidade das relações pessoais, não a quantidade.” E é por isso que o neurobiólogo não hesita: “Mesmo que não acreditemos em Deus, é melhor que tenhamos em mente estas sete regras, na medida em que isso irá aumentar a qualidade da nossa vida e a nossa possibilidade de sobrevivência. É preciso ir além da tentação. Olhar para nós periodicamente e tentar analisar o nosso comportamento para perceber qual destes tipos de comportamento pode estar desequilibrado.”
1. Não haja dúvidas. A religião, concretamente na Europa, também entre nós, está em queda. O número de agnósticos e de ateus aumenta, para não falar na chamada “prática religiosa”, que desce a olhos vistos. O padre José Antonio Pagola escreveu recentemente um texto com o título “Depois de séculos de ‘imperialismo cristão’, os discípulos de Jesus têm de aprender a viver em minoria”.
Significa isto o triunfo do materialismo crasso ou o que está em causa é mesmo a religião institucional, mas não a espiritualidade? O que é facto é que tenho encontrado cada vez mais grupos interessados na espiritualidade e no aprofundamento da vida interior. Multiplicam-se esses grupos e também a bibliografia sobre o tema. Por exemplo, com sucesso escreveu recentemente o teólogo Francesc Torralba uma obra: La Interioridad Habitada, onde se pode ler: “A educação da interioridade não é, em caso algum, um luxo nem uma questão menor, pois tem como objectivo final o cuidar de si mesmo, e, para isso, desenvolver todas as potencialidades latentes no ser humano, como a memória, a imaginação, a vontade, a inteligência e a emotividade, mas também o fundo último do seu ser: a espiritualidade, admitindo que esta pode adquirir formas, expressões e modos muito diversos em virtude dos contextos educativos e dos momentos históricos. No modelo da interioridade habitada reconhecem-se dois magistérios: o exercício do mestre humano que fala e actua a partir de fora e o do mestre interior que habita lá no íntimo.”
2. Hoje, quero referir-me concretamente a Pablo D’Ors, padre e escritor. Numa recente entrevista a José Manuel Vidal, director de ReligiónDigital, disse: “As formas tradicionais da Igreja não respondem à sensibilidade e à linguagem contemporâneas.” Numa outra entrevista, a La La Razón, declarou: “Boa parte do descrédito da Igreja deve-se a ela sucumbir ao ritualismo.” Pablo D’Ors publicou um livro célebre do qual se venderam já mais de 150 mil exemplares, com o título Biografia do Silêncio. E é o fundador da associação Amigos do Deserto, que conta com uma rede de meditadores com mais de 500 membros, porque, como afirmou: “Há uma ânsia espiritual muito grande nesta sociedade secularizada.” Deixo aí, a partir destas duas entrevistas, pensamentos que julgo ser urgente meditar.
Porque é que o livro teve tanto sucesso? “Uma das razões do êxito é precisamente a sua oportunidade. Surgiu num momento em que aumentava claramente o interesse pela meditação. O seu prestígio construiu-se sobre o desprestígio da religião. O facto de muitas pessoas terem abandonado as formas religiosas não quer dizer que a sua sede espiritual esteja saciada ou se tenha anulado. Persiste e é preciso procurar novas formas de a alimentar. A meditação é uma delas. Costumo dizer que a religião é o copo e a espiritualidade é o vinho, e o que nos sacia verdadeiramente é o vinho. A religião tem de estar ao serviço de suscitar a experiência espiritual, e nós, os cristãos, contentámo-nos com o copo. As formas, para ir ao fundo da questão, deixaram de ser formas para o conteúdo e encerraram-se em si mesmas. O mal não está no rito, mas no ritualismo. As pessoas não sentem que isso as alimente. A isto junta-se que a linguagem tanto verbal como gestual do cristianismo não responde à sensibilidade nem à cultura contemporânea.” Não podemos esquecer de que tão importantes como o património que recebemos, o Evangelho, são o homem e a mulher de hoje. Por isso, “a nossa fidelidade não é só ao Evangelho, é a este homem e a esta mulher de hoje. Se estivermos longe deles, dificilmente entramos em relação”. Impõe-se que se perceba que “as formas têm de estar ao serviço do fundo, e muitas vezes as formas perdem-nos, pois ficamos no formalismo e privamo-nos de ir ao núcleo da questão. Qual é a urgência fundamental para a Igreja de hoje? Uma renovação espiritual; que estejamos verdadeiramente no nosso centro”.
Para Pablo D’Ors, o silenciamento interior é uma necessidade de primeira ordem. “A meditação é uma prática de silenciamento e quietude. É um trabalho que se faz com o corpo e com a mente e cujo propósito fundamental é o autoconhecimento.” Quando muitas coisas exteriores se foram afundando, ele descobriu a aventura interior, que é um processo de higiene da mente e do coração: “Normalmente temos uma grande confusão intelectual e sentimental. Criámos uma cultura da exterioridade, representada fundamentalmente pelo telemóvel. Quanto maior conexão fora, menor conexão dentro. Perde-se a dimensão interior, porque a nossa cultura nos impulsiona e estimula para estar sempre fora.” Então, nas crises existenciais, as pessoas ficam desamparadas por dentro, pois nem sequer sabem se há “um dentro”. Por isso, “boa parte do êxito de muitas escolas de meditação radica nesta busca. Hoje, não falamos tanto de espiritualidade como de interioridade, que é o modo laico de dizer o mesmo”.
Precisamos
de arrumar o nosso interior, para que haja mais espaço, pois, desse modo,
distinguimos melhor. É como quando numa casa repleta de coisas começas a tirar
o não necessário e começas a ver. Daí surge, paradoxalmente, o segundo fruto: a
humildade. “Saber quem és, ter uma visão realista de ti mesmo, essa
humildade, esse saber qual é o teu lugar, isso é o que te dá a paz interior.”
Pergunta-se se não há o perigo de estas correntes de espiritualidade serem um pouco individualistas, egocêntricas, ignorando a transformação do mundo. Responde: “Creio que a meditação autêntica não se afasta de Deus, mesmo que isso se não verbalize de maneira explícita. Quem verdadeiramente se conhece a si mesmo, mais cedo ou mais tarde, aponta para o mistério. Esse mistério poderá chamá-lo Deus ou não, mas Ele está lá. Em ti gerou-se uma atitude espiritual.” Quanto à denúncia e ao compromisso com a mudança das estruturas: sim, há o perigo de grupos espirituais caírem num espiritualismo desencarnado, mas a questão é de prioridades: “A justiça social, a denúncia, tudo isso, vem por acréscimo, é o fruto de estarmos centrados. Primeiro, vamos transformando a nossa própria vida. A oração, o nosso próprio espírito transforma-nos e, simultaneamente, vai transformando a vida à nossa volta, a vida familiar, a vida social, a vida do bairro. A vida da nação.”
Deve-se prescindir das religiões? De modo algum. “O mindfulness não é puramente laico, mesmo que os termos e as práticas se apresentem numa linguagem puramente secular. Isto é o que, modestamente, os Amigos do Deserto e eu queremos fazer com o cristianismo. Que seja uma tradução secular, para o mundo de hoje, da mensagem cristã. Para o Ocidente, a figura de Cristo é muito mais próxima do que a de Buda, e por isso o salto cultural que é preciso dar para ser meditador cristão é muito menor. Julgo que prescindir das religiões é um suicídio, porque isso significaria prescindir do nosso passado. Ora, quem prescinde do seu passado não sabe qual é o seu presente.” Não, não há o perigo de obsessão pelo “aqui e agora”. Porque “o sublinhado no presente não deveria fazer-nos perder de vista a importância do passado e do futuro. Recordar é passar a história pelo coração e ajuda-nos a compreender quem somos. Uma árvore sem raiz não se aguenta, o passado é a nossa raiz e é preciso cuidar dela. O mesmo digo do futuro. O homem não é sem projecção e projecto de si. A espiritualidade cristã sempre sublinhou o futuro, o horizonte, e a budista, o presente. Penso que estamos num tempo de síntese.”
A propósito,
como se relacionam em Pablo D’Ors “o ego do escritor e o não ego do meditador?”
“Devo dizer que para mim silêncio e palavra são duas faces da mesma moeda.
O segredo da palavra é o silêncio e o do silêncio, a palavra. Uma palavra nasce
matinal no coração do leitor na medida em que foi preparada no silêncio. Para
que a palavra seja fecunda, tem de nascer do silêncio. Com o tempo, fui
descobrindo que a minha dupla vocação, sacerdotal e literária, é a mesma.”
Então, não existe realmente o perigo maior, que consiste em ficar encerrado em si mesmo, no egocentrismo? “O ego (o eu), que não é outra coisa senão a tendência para auto-afirmar-se, é necessário para viver. Não se trata de matar o ego, mas de colocá-lo no seu lugar.” Por isso, quanto a escutar-se a si mesmo ou a escutar o outro, “é como perguntar o que é que é mais complicado: amar-se a si mesmo ou aos outros. É exactamente a mesma coisa. Por isso digo que a meditação é uma escola de escuta. Se aprenderes a escutar-te a ti mesmo poderás escutar os outros. Ninguém pode dar o que não tem.” Quanto ao egocentrismo: “Eu vejo-me agora a mim mesmo menos egocêntrico do que há uns anos. Mais magnânimo, com a alma maior. O critério para verificar que um caminho de meditação é autêntico é se te torna mais compassivo, mais justo e caritativo. Se o outro tem um papel mais importante na tua vida. A meditação corre o risco de perverter-te, se esquece a dimensão transcendente e se fica pela busca utilitarista de benefícios pessoais.”
O jornalista: “Chama-me a atenção que diga que é mais importante ser si mesmo do que alguém ‘bom’.” Pablo D’Ors: “Refiro-me a que o essencial é o indicativo da graça e não o imperativo moral. O decisivo para a construção de uma pessoa é experienciar o que é, e, na medida em que o fizer, comportar-se-á de uma maneira ou outra. Não temos de estar tão preocupados em ser bons, pela dimensão moral, como pela metafísica do ser. Sermos quem estamos chamados a ser. Se o formos, se na verdade fores tu, serás bom.” Objecção: “Haverá gente que seja ela mesma e seja egoísta.” Resposta: “Isso baseia-se numa visão do mundo, que é a minha, segundo a qual a luta entre a luz e a sombra não é paritária. O que há fundamentalmente é luz. Este ponto de partida não é subjectivo, é contrastável. Por exemplo, se contares quantos comboios descarrilaram hoje no mundo e quantos chegaram ao destino, verás que a imensa maioria chegou bem. Se fizermos o mesmo com tudo, vemos que o bem é significativamente mais. O que acontece é que os meios de comunicação social fazem-nos crer que o que existe é o mal, quando é o contrário. É como o céu e as nuvens: as nuvens podem tapar o céu, mas o que na realidade há é um céu. Estamos bem feitos.” Neste contexto, sobre a sua vocação: “Aos 18 anos. É como quando alguém se enamora e sabe que é a pessoa adequada quando a conhece. Foi uma experiência de encontro com o mistério, com a graça de Jesus Cristo. É uma sedução, um fascínio, um sentir que é o eixo vertebrador da tua vida, que lhe dá sentido, força. Foi a experiência do entusiasmo. Estar habitado pelos deuses, pelo espírito. A experiência de que havia algo substancial que tudo sustenta. Dessa experiência, a mais decisiva da minha vida, nunca duvidei.”
Qual é então o sentido da vida? “Redimir o mundo. Colocar luz onde há trevas, amor onde há desamor, esperança onde há inesperança e desespero, claridade na dúvida. Na medida em que fizermos isso, estamos bem e semeamos o bem.”
3. Está aí, bem à vista, a chave para entender a crise da religião e perceber a conversão de que a Igreja urgentemente precisa para ser o que Jesus quer. Ele passava noites na montanha a rezar e fez a experiência inexcedível do mistério de Deus como Abbá, Papá, querida Mamã. A consequência: amou a todos, por palavras e obras, a começar por aqueles e por aquelas que ninguém ama, porque Deus é o sentido último da existência, não caminhamos para o nada, porque Deus é Amor. Tomás Moro disse-o, numa síntese perfeita: “O fundamento da religião é o medo. O fundamento do cristianismo é o amor.”
Luciano Manicardi, Viver uma fé adulta, Edições Paulinas
A fé é a grata rendição a Cristo, a resposta humana à humanidade divina de Jesus, o sim à vida vivida por Cristo, que também se torna forma da nossa vida; portanto, é um concreto criar espaço para Cristo na nossa existência, um fazer reinar o Espírito de Cristo nas relações e situações quotidianas. Tudo isto na convicção de que a existência de Cristo narra quem é Deus; que a vida de Cristo, vivida na obediência filial a Deus e na doação total aos irmãos até ao paradoxo do amor pelo inimigo, é o sentido último, humano e divino, do viver; e também convencidos de que a fé de Jesus, a que Ele próprio viveu em relação ao Pai, confiando-se a Ele como Abbá, mesmo nos momentos da cruz, quando continuou a confiar-se àquele que o abandonava, é a referência normativa do nosso crer, o seu paradigma.
Aqui percebemos uma aspecto importante da fé cristã: ela consiste num momento de progressiva (e sempre parcial) assimilação do sujeito crente ao sujeito crido (Jesus Cristo): a fé tem em si uma dinâmica pascal, é um ato de morte e ressurreição. A fé atualiza em nós a morte e a ressurreição e de Cristo. Deste ponto de vista, a fé é risco mortal e possibilidade impensada de vida. Risco mortal porque eu ponho a subsistência do meu ser e do meu viver (“Se não acreditardes, não subsistireis”: Is 7, 9) em que não vejo e de quem os outros deram testemunho (a fé revela aqui a sua dimensão eclesial-comunitária intrínseca); é risco porque este movimento exige a minha saída de mim mesmo e a perda de relevância do meu eu e das suas pretensões para viver no espaço do amor gratuito e preveniente de Deus. E talvez o grande risco da fé seja crer no amor. “Nós conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele” (1Jo 4, 16), amor que Deus manifestou na vida, morte e ressurreição de Cristo.
Na sua raíz, a fé cristã é sempre crer no amor de Deus por nós. Portanto, o amor de Deus narrado por Cristo (Rm 5, 6-10), fundamento da nossa confiança e da nossa fidelidade, é , também e simultaneamente, fonte e objeto da nossa fé. É verdade que crer no amor de Deus é um risco, porque aqui o crente tem de enfrentar o enigma, a não evidência desse amor e, às vezes, também da confiança ou da fiabilidade daquele em quem põe a sua fé; mas, aqui, é também o germe da fé como possibilidade não pensada e não crível de vida, de renovação da vida. Nos momentos em que tudo vacila, a fé simplificada, a fé nua, a fé que crê contra toda a evidência, a fé que habita os infernos, torna-se o lugar da esperança.
Na sociedade atual que multiplica os sistemas de segurança e de previdência, que elabora métodos de precisão e de proteção para esconjurar as incertezas e os riscos do futuro, a fé comporta a dimensão do risco. Não é que a fé não conheça a dimensão da certeza, mas a certeza da fé é de uma ordem diferente da certeza do tipo racional. Pascal escreve: “Se não se devesse fazer nada, excepto por aquilo que está certo, não se deveria fazer nada pela religião, porque ela não é certa” (isto é , não está no mesmo comprimento de onda da certeza comum). O saber próprio da fé é o saber da confiança. Se o risco próprio da fé é inerente a este saber e a esta linguagem de confiança, então também parece inerente à fé e, por assim dizer, à sua própria prova. Assim, crer torna-se também um desafio que, hoje, o homem vive quotidianamente, num contexto que requer demonstrações e evidências e, como dizíamos, procura seguranças e quer evitar a incerteza.
Viver uma fé adulta, itinerário para um cristianismo credível, Edições Paulinas,
Luciano Manicardi é prior da comunidade monástica de Bose
Maria Clara Bingemer, Viver como crentes no mundo de mudança, Paulinas Editora
A fé cristã, hoje, já não acontece em contexto homogeneamente cristão. Assim, supõe um novo sujeito dotado de uma nova consciência religiosa, que é importante assimilar e integrar ao conjunto do tecido eclesial. Já não seria mais nem a tradição, nem a herança, nem a continuidade de uma cultura banhada de cristianismo que determinaria o que é ser cristão. Trata-se mais de uma opção livre e que deve configurar-se na contramão de uma cultura que nem sempre entenderá os seus gestos e símbolos. No fundo, tratar-se-ia de dar de novo ao amor a primordialidade da cidadania dentro da comunidade que pretende e se dispõe a viver o facto cristão.
A fé cristã foi, desde os seus começos, uma fé no testemunho de outros. Os discípulos acreditaram em Jesus, no qual reconheceram e ao qual proclamaram Testemunha Fiel. As mulheres acreditaram que o túmulo não era o lugar daquele que estava vivo. Os Apóstolos, depois de certa relutância, acreditaram nas mulheres. E assim começou o caminho dessa proposta de vida que foi conquistando o mundo conhecido de então, assente apenas na palavra de alguns frágeis seres humanos que diziam: “Isto é verdade porque eu vi, eu experimentei. Dou testemunho e sou capaz de morrer por isso.”
A fé cristã, desde o início, é, portanto, uma fé de testemunhas, e não tanto de textos. Torna-se cada vez mais verdadeira e verificável a afirmação de que há que fazer uma teologia não de textos, mas de testemunhas. Fazendo apelo aos testemunhos de homens e mulheres que foram alcançados por Deus ao longo da história, torna-se mais evidente a diferença entre fé e religião, fé e instituição. Mais claro ainda, o que constitui a identidade mais profunda dos homens e mulheres de fé que somos chamados a ser e a ajudar outros a serem nesta difusa contemporaneidade em que vivemos. São esses e essas que nos mostram que a fé cristã ainda tem um papel a desempenhar hoje, desde que não perca a sua identidade no meio dos tempos nebulosos que vivemos.
Ser cristão hoje implica ter uma esperança estranha que se revela justamente quando parece que não há futuro e uma liberdade que culmina na doação da vida. O cristão ama tanto a vida – porque se encontrou em profundidade com Aquele que diz que é o caminho, a verdade e a vida – que está disposto a morrer por aquilo em que acredita. E é esta confiança corajosa e alegre que dá sentido ao seu testemunho.
O incrível do Cristianismo encontra-se na proximidade inédita entre Deus e o homem. Portanto, leva a humanidade a uma nova relação consigo mesma, que tem como imagem a comunidade ecuménica de Jesus Cristo.
Ser cristão hoje é viver e proclamar os valores constitutivos da proposta de Jesus, que são:
numa sociedade e cultura onde se espera que se odeiem os inimigos, o Cristianismo propõe o amor incondicional, mesmo aos inimigos. Ser cristão é experimentar que se é amado incondicionalmente, independentemente de méritos ou vitórias;
numa sociedade onde se responde ao mal com o mal e se busca a vingança, o Cristianismo propõe o perdão, a persistência no mesmo dom, quando não há razões para tal;
numa sociedade desigual e injusta, opressora, o Cristianismo propõe uma igualdade radical entre todos. Todos têm a mesma dignidade e merecem o mesmo respeito;
numa sociedade que glorifica o poder, o sucesso, o êxito, o Cristianismo propõe a humildade e o serviço como atitudes primordiais e necessárias;
numa sociedade onde as leis são simétricas e, portanto, muitas vezes desumanas, o Cristianismo propõe uma justiça que se transcende a si mesma e se torna caridade. Uma justiça não retributiva, mas restaurativa, que não dá ao outro o que merece, mas o que necessita;
numa sociedade onde todos buscam o melhor para si, ainda que devendo passar sobre os demais, o Cristianismo propõe a generosidade da partilha e da solidariedade sem limites, que está disposta mesmo a sofrer e a morrer pelos outros.
Tudo isto supõe uma fé em Deus que é mistério, que não é um Ser Supremo ou Substância Suprema, mas sim Espírito de criatividade neste universo. Um Deus em quem, por isso, a fé nunca é permanente e definitiva, mas continuamente procurada. Ser cristão é ser um buscador. Um cristão é um sujeito. Enquanto tal, está em constante crescimento e transformação, em processo permanente de chegar a ser. Portanto, como diz Felix Wilfred, “o “cristão” é um projeto e, obviamente, um projeto inacabado”. Ou ainda Karl Rahner: “Creio que ser cristão é a tarefa mais singela, mais simples e, ao mesmo tempo, aquele pesado jugo leve de que fala o Evangelho. Quando se carrega esse jugo, ele carrega-nos a nós mesmos e, quanto mais tempo vivamos, tanto mais pesado e mais leve chegará a ser. No final, só fica o mistério. Mas é o mistério de Jesus”.
Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio