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O que é amar um país

cardeal José Tolentino Mendonça, discurso proferido na qualidade de presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas 2020, 10 de Junho

O QUE É AMAR UM PAÍS

Agradeço ao senhor Presidente o convite para presidir à Comissão das comemorações do dia 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. Estas comemorações estavam para acontecer não só com outro formato, mas também noutro lugar, a Madeira. No poema inicial do seu livro intitulado Flash, o poeta Herberto Helder, ali nascido, recorda justamente «como pesa na água (…) a raiz de uma ilha». Gostaria de iniciar este discurso, que pensei como uma reflexão sobre as raízes, por saudar a raiz dessa ilha-arquipélago, também minha raiz, que desde há seis séculos se tornou uma das admiráveis entradas atlânticas de Portugal.

É uma bela tradição da nossa República esta de convidar um cidadão a tomar a palavra neste contexto solene para assim representar a comunidade de concidadãos que somos. É nessa condição, como mais um entre os dez milhões de portugueses, que hoje me dirijo às mulheres e aos homens do meu país, àquelas e àqueles que dia-a-dia o constroem, suscitam, amam e sonham, que dia-a-dia encarnam Portugal onde quer que Portugal seja: no território continental ou nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira, no espaço físico nacional ou nas extensas redes da nossa diáspora.

Se interrogássemos cada um, provavelmente responderia que está apenas a cuidar da sua parte – a tratar do seu trabalho, da sua família; a cultivar as suas relações ou o seu território de vizinhança – mas é importante que se recorde que, cuidando das múltiplas partes, estamos juntos a edificar o todo. Cada português é uma expressão de Portugal e é chamado a sentir-se responsável por ele. Pois quando arquitetamos uma casa não podemos esquecer que, nesse momento, estamos também a construir a cidade. E quando pomos no mar a nossa embarcação não somos apenas responsáveis por ela, mas pelo inteiro oceano. Ou quando queremos interpretar a árvore não podemos esquecer que ela não viveria sem as raízes.

Camões e a arte do desconfinamento

Pensemos no contributo de Camões. Camões não nos deu só o poema. Se quisermos ser precisos, Camões deixou-nos em herança a poesia. Se, à distância destes quase quinhentos anos, continuamos a evocar coletivamente o seu nome, não é apenas porque nos ofereceu, em concreto, o mais extraordinário mapa mental do Portugal do seu tempo, mas também porque iniciou um inteiro povo nessa inultrapassável ciência de navegação interior que é a poesia. A poesia é um guia náutico perpétuo; é um tratado de marinhagem para a experiência oceânica que fazemos da vida; é uma cosmografia da alma. Isso explica, por exemplo, que Os Lusíadas sejam, ao mesmo tempo, um livro que nos leva por mar até à India, mas que nos conduz por terra ainda mais longe: conduz-nos a nós próprios; conduz-nos, com uma lucidez veemente, a representações que nos definem como indivíduos e como nação; faz-nos aportar – e esse é o prodígio da grande literatura – àquela consciência última de nós mesmos, ao quinhão daquelas perguntas fundamentais de cujo confronto, um ser humano sobre a terra, não se pode isentar.

Se é verdade, como escreveu Wittgenstein, que «os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo», Camões desconfinou Portugal. A quem tivesse dúvidas sobre o papel central da cultura, das artes ou do pensamento na construção de um país bastaria recordar isso. Camões desconfinou Portugal no século XVI e continua a ser para a nossa época um preclaro mestre da arte do desconfinamento. Porque desconfinar não é simplesmente voltar a ocupar o espaço comunitário, mas é poder, sim, habitá-lo plenamente; poder modelá-lo de forma criativa, com forças e intensidades novas, como um exercício deliberado e comprometido de cidadania. Desconfinar é sentir-se protagonista e participante de um projeto mais amplo e em construção, que a todos diz respeito. É não conformar-se com os limites da linguagem, das ideias, dos modelos e do próprio tempo. Numa estação de tetos baixos, Camões é uma inspiração para ousar sonhos grandes. E isso é tanto mais decisivo numa época que não apenas nos confronta com múltiplas mudanças, mas sobretudo nos coloca no interior turbulento de uma mudança de época.

Que a crise nos encontre unidos

Gostaria de recordar aqui uma passagem do Canto Sexto d’Os Lusíadas, que celebra a chegada da expedição portuguesa à India. Os marinheiros, dependurados na gávea, avistam finalmente «terra alta pela proa» e passam notícia ao piloto que, por sua vez, a anuncia vibrante a Vasco da Gama. O objetivo da missão está assim cumprido. Mas o Canto Sexto tem uma exigente composição em antítese, à qual não podemos não prestar atenção. É que à visão do sonho concretizado não se chega sem atravessar uma dura experiência de crise, provocada por uma tempestade marítima que Camões sabiamente se empenha em descrever, com impressiva força plástica. Digo sabiamente, porque não há viagem sem tempestades. Não há demandas que não enfrentem a sua própria complexificação. Não há itinerário histórico sem crises. Isso vem-nos dito n’Os Lusíadas de Camões, mas também nas Metamorfoses de Ovídio, na Eneida de Virgílio, na Odisseia de Homero ou nos Evangelhos cristãos.

No itinerário de um país, cada geração é chamada a viver tempos bons e maus, épocas de fortuna e infelizmente também de infortúnio, horas de calmaria e travessias borrascosas. A história não é um continuum, mas é feita de maturações, deslocações, ruturas e recomeços. O importante a salvaguardar é que, como comunidade, nos encontremos unidos em torno à atualização dos valores humanos essenciais e capazes de lutar por eles.

Mas à observação realística que Camões faz da tempestade, gostaria de ir buscar um detalhe, na verdade uma palavra, para a reflexão que proponho: a palavra «raízes». Na estância 79, falando dos efeitos devastadores do vento, o poeta diz: «Quantas árvores velhas arrancaram/ Do vento bravo as fúrias indignadas/ As forçosas raízes não cuidaram/Que nunca para o Céu fossem viradas». A leitura da imagem em jogo é imediata: as velhas árvores reviradas ao contrário, arrancadas com violência ao solo, expõem dramaticamente, a céu aberto, as próprias raízes. A tempestade descrita por Camões recorda-nos, assim, a vulnerabilidade, com a qual temos sempre de fazer conta. As raízes, que julgamos inabaláveis, são também frágeis, sofrem os efeitos da turbulência da máquina do mundo. Não há super-países, como não há super-homens. Todos somos chamados a perseverar com realismo e diligência nas nossas forças e a tratar com sabedoria das nossas feridas, pois essa é a condição de tudo o que está sobre este mundo.

O que é amar um país

Cerimónias Comemorativas do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas 2020 no Mosteiro dos Jerónimos em Lisboa

O Dia de Portugal, e este Dia de Portugal de 2020 em concreto, oferece-nos a oportunidade de nos perguntarmos o que significa amar um país. A pensadora europeia Simone Weil, num instigante ensaio destinado a inspirar o renascimento da Europa sob os escombros da Segunda Grande Guerra, de cujo desfecho estamos agora a celebrar o 75º aniversário, escreveu o seguinte: um país pode ser amado por duas razões, e estas constituem, na verdade, dois amores distintos. Podemos amar um país idealmente, emoldurando-o para que permaneça fixo numa imagem de glória, e desejando que esta não se modifique jamais. Ou podemos amar um país como algo que, precisamente por estar colocado dentro da história, sujeito aos seus solavancos, está exposto a tantos riscos. São dois amores diferentes. Podemos amar pela força ou amar pela fragilidade. Mas, explica Simone Weil, quando é o reconhecimento da fragilidade a inflamar o nosso amor, a chama deste é muito mais pura.

O amor a um país, ao nosso país, pede-nos que coloquemos em prática a compaixão – no seu sentido mais nobre – e que essa seja vivida como exercício efetivo da fraternidade. Compaixão e fraternidade não são flores ocasionais. Compaixão e fraternidade são permanentes e necessárias raízes de que nos orgulhamos, não só em relação à história passada de Portugal, mas também àquela hodierna, que o nosso presente escreve. E é nesse chão que precisamos, como comunidade nacional, de fincar ainda novas raízes.

Nestes últimos meses abateu-se sobre nós uma imprevista tempestade global que condicionou radicalmente as nossas vidas e cujas consequências estamos ainda longe de mensurar. A pandemia que principiou como uma crise sanitária tornou-se uma crise poliédrica, de amplo espetro, atingindo todos os domínios da nossa vida comum. Sabendo que não regressaremos ao ponto em que estávamos quando esta tempestade rebentou, é importante, porém, que, como sociedade, saibamos para onde queremos ir. No Canto Sexto d’Os Lusíadas a tempestade não suspendeu a viagem, mas ofereceu a oportunidade para redescobrir o que significa estarmos no mesmo barco.

Reabilitar o pacto comunitário

O que significa estar no mesmo barco? Permitam-me pegar numa parábola. Circula há anos, atribuída à antropóloga Margaret Mead, a seguinte história. Um estudante ter-lhe-ia perguntado qual seria para ela o primeiro sinal de civilização. E a expectativa geral é que nomeasse, por exemplo, os primeiríssimos instrumentos de caça, as pedras de amolar ou os ancestrais recipientes de barro. Mas a antropóloga surpreendeu a todos, identificando como primeiro vestígio de civilização um fémur quebrado e cicatrizado. No reino animal, um ser ferido está automaticamente condenado à morte, pois fica fatalmente desprotegido face aos perigos e deixa de se poder alimentar a si próprio. Que um fémur humano se tenha quebrado e restabelecido documenta a emergência de um momento completamente novo: quer dizer que uma pessoa não foi deixada para trás, sozinha; que alguém a acompanhou na sua fragilidade, dedicou-se a ela, oferecendo-lhe o cuidado necessário e garantindo a sua segurança, até que recuperasse. A raiz da civilização é, por isso, a comunidade. É na comunidade que a nossa história começa. Quando do eu fomos capazes de passar ao nós e de dar a este uma determinada configuração histórica, espiritual e ética.

É interessante escutar o que diz a etimologia latina da palavra comunidade (communitas). Associando dois termos, cum e munus, ela explica que os membros de uma comunidade – e também de uma comunidade nacional – não estão unidos por uma raiz ocasional qualquer. Estão ligados sim por um múnus, isto é, por um comum dever, por uma tarefa partilhada. Que tarefa é essa? Qual é a primeira tarefa de uma comunidade? Cuidar da vida. Não há missão mais grandiosa, mais humilde, mais criativa ou mais atual.

Celebrar o Dia de Portugal significa, portanto, reabilitar o pacto comunitário que é a nossa raiz. Sentir que fazemos parte uns dos outros, empenharmo-nos na qualificação fraterna da vida comum, ultrapassando a cultura da indiferença e do descarte. Uma comunidade desvitaliza-se quando perde a dimensão humana, quando deixa de colocar a pessoa humana no centro, quando não se empenha em tornar concreta a justiça social, quando desiste de corrigir as drásticas assimetrias que nos desirmanam, quando, com os olhos postos naqueles que se podem posicionar como primeiros, se esquece daqueles que são os últimos. Não podemos esquecer a multidão dos nossos concidadãos para quem o Covid19 ficará como sinónimo de desemprego, de diminuição de condições de vida, de empobrecimento radical e mesmo de fome. Esta tem de ser uma hora de solidariedade. No contexto do surto pandémico, foi, por exemplo, um sinal humanitário importante a regularização dos imigrantes com pedidos de autorização de residência, pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. O desafio da integração é, porém, como sabemos, imenso, porque se trata de ajudar a construir raízes. E essas não se improvisam: são lentas, requerem tempo, políticas apropriadas e uma participação do conjunto da sociedade. Lembro-me de um diálogo do filme do cineasta Pedro Costa, «Vitalina Varela», onde se diz a alguém que chega ao nosso país: «chegaste atrasada, aqui em Portugal não há nada para ti». Sem compaixão e fraternidade fortalecem-se apenas os muros e aliena-se a possibilidade de lançar raízes.

Fortalecer o pacto intergeracional

Reabilitar o pacto comunitário implica robustecer, entre nós, o pacto intergeracional. O pior que nos poderia acontecer seria arrumarmos a sociedade em faixas etárias, resignando-nos a uma visão desagregada e desigual, como se não fossemos a cada momento um todo inseparável: velhos e jovens, reformados e jovens à procura do primeiro emprego, avós e netos, crianças e adultos no auge do seu percurso laboral. Precisamos, por isso, de uma visão mais inclusiva do contributo das diversas gerações. É um erro pensar ou representar uma geração como um peso, pois não poderíamos viver uns sem os outros.

A tempestade provocada pelo Covid19 obriga-nos como comunidade, a refletir sobre a situação dos idosos em Portugal e nesta Europa da qual somos parte. Por um lado, eles têm sido as principais vítimas da pandemia, e precisamos chorar essas perdas, dando a essas lágrimas uma dignidade e um tempo que porventura ainda não nos concedemos, pois o luto de uma geração não é uma questão privada. Por outro, temos de rejeitar firmemente a tese de que uma esperança de vida mais breve determine uma diminuição do seu valor. A vida é um valor sem variações. Uma raiz de futuro em Portugal será, pelo contrário, aprofundar a contribuição dos seus idosos, ajudá-los a viver e a assumir-se como mediadores de vida para as novas gerações. Quando tomei posse como arquivista e bibliotecário da Santa Sé, uma das referências que quis evocar nesse momento foi a da minha avó materna, uma mulher analfabeta, mas que foi para mim a primeira biblioteca. Quando era criança, pensava que as histórias que ela contava, ou as cantilenas com que entretinha os netos, eram coisas de circunstância, inventadas por ela. Depois descobri que faziam parte do romanceiro oral da tradição portuguesa. E que afinal aquela avó analfabeta estava, sem que nós soubéssemos, e provavelmente sem que ela própria o soubesse, a mediar o nosso primeiro encontro com os tesouros da nossa cultura.

Robustecer o pacto intergeracional é também olhar seriamente para uma das nossas gerações mais vulneráveis, que é a dos jovens adultos, abaixo dos 35 anos; geração que, praticamente numa década, vê abater-se sobre as suas aspirações, uma segunda crise económica grave. Jovens adultos, muitos deles com uma alta qualificação escolar, remetidos para uma experiência interminável de trabalho precário ou de atividades informais que os obrigam sucessivamente a adiar os legítimos sonhos de autonomia pessoal, de lançar raízes familiares, de ter filhos e de se realizarem.

Implementar um novo pacto ambiental

A pandemia veio, por fim, expor a urgência de um novo pacto ambiental. Hoje é impossível não ver a dimensão do problema ecológico e climático, que têm uma clara raiz sistémica. Não podemos continuar a chamar progresso àquilo que para as frágeis condições do planeta, ou para a existência dos outros seres vivos, tem sido uma evidente regressão. Num dos textos centrais deste século XXI, a Encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco exorta a uma «ecologia integral», onde o presente e o futuro da nossa humanidade se pense a par do presente e do futuro da grande casa comum. Está tudo conectado. Precisamos de construir uma ecologia do mundo, onde em vez de senhores despóticos apareçamos como cuidadores sensatos, praticando uma ética da criação, que tenha expressão jurídica efetiva nos tratados transnacionais, mas também nos estilos de vida, nas escolhas e nas expressões mais domésticas do nosso quotidiano.

Uma viagem que fazemos juntos

Camões n’Os Lusíadas não apenas documentou um país em viagem, mas foi mais longe: representou o próprio país como viagem. Portugal é uma viagem que fazemos juntos há quase nove séculos. E o maior tesouro que esta nos tem dado é a possibilidade de ser-em-comum, esta tarefa apaixonante e sempre inacabada de plasmar uma comunidade aberta e justa, de mulheres e homens livres, onde todos são necessários, onde todos se sentem – e efetivamente são – corresponsáveis pelo incessante trânsito que liga a multiplicidade das raízes à composição ampla e esperançosa do futuro. Portugal é e será, por isso, uma viagem que fazemos juntos. E uma grande viagem é como um grande amor. Uma viagem assim – explica Maria Gabriela Llansol, uma das vozes mais límpidas da nossa contemporaneidade -, não se esgota, nem cancela na fugaz temporalidade da história, mas constitui uma espécie de «rasto do fulgor» que exprime a ardente natureza do sentido que interrogamos.

Os selfistas

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José Tolentino Mendonça, E, Expresso 15.fevereiro.2020

A selfie tornou-se um sintoma do tempo em que vivemos. Se pensarmos na fotografia tradicional era claro o seu papel em relação à temporalidade da vida: a fotografia, fixando o tempo, como que o prolongava, assumindo-se, no confronto com a nossa existência, como uma arte da memória. Não é por acaso que imprimíamos as fotografias e as recolhíamos num álbum, e deixámos de o fazer com o material fotográfico que simplesmente acumulamos nos telemóveis. Quer dizer que a função da imagem mudou. A fotografia tradicional pretendia ser ainda um registo ao serviço da interpretação da vida. O seu processamento chamava-se justamente “revelação”, pois era disso que se tratava, e não só a um nível imediato, mas numa profusão de detalhes significativos que a simples visão normalmente não deteta. Na sua “Pequena História da Fotografia”, Walter Benjamin afirma, por exemplo, que na fotografia fazemos a experiência do “inconsciente ótico”, do mesmo modo que as psicoterapias nos permitem aceder ao “inconsciente pulsional”. A fotografia testemunhava assim, de um modo amplo e singular, o domínio visível do sujeito, mas também nos avizinhava do seu campo invisível.

A selfie, pelo contrário, transaciona sobre o imediato, como se o sujeito histórico se tivesse tornado evanescente e a sua duração (histórica, psicológica…) se dissolvesse para permitir que a aparição instantânea se torne um fim. A proposição que move a selfie é agora este videor ergo sum (sou visto logo existo), propagado por toda a parte. Mas fazer depender a existência deste tipo de visibilidade dá razão àquilo que o psiquiatra italiano Giovanni Stanghellini escreve num ensaio recente (“Selfie. Sentirsi nello sguardo dell’altro”, Feltrinelli, 2020): “a instantaneidade da selfie é semelhante à temporalidade esfomeada e sem fôlego de um ataque bulímico”. De facto, para compreendermos a contemporânea bulimia que nos torna a todos produtores ininterruptos de imagens temos de procurar a razão de fundo que permanece escondida, e que é uma dramática anorexia em relação ao ser.

É verdade que enquanto a fotografia tradicional nos permitia dizer “eu sou esta pessoa”, a selfie nos parece fazer dizer “eu estou aqui”. Mas este “aqui” é um espaço atópico, errante, que nunca chega a ser habitado. Por isso se caracteriza justamente o selfista como um turista e não já como um viajante. Enganamo-nos, portanto, se pensamos que a selfie serve para assinalar a nossa passagem por um determinado lugar: ela é sim o resultado de uma radical desterritorialização da vida, capturada pela ânsia da comunicação virtual, mais do que pelo desejo de documentar o real.

O que procuramos então nas selfies? Stanghellini explica que buscamos uma “prótese” existencial, uma “técnica de si” ativada para dar uma resposta ficcional à necessidade de fundar a própria identidade. Perante a exigência de nos definirmos a nós próprios, em tempos de “aporia identitária”, a selfie é “o dispositivo que responde (que tenta responder) à pergunta ‘quem sou?’”. Mas este psiquiatra que dirige uma escola de psicoterapia em Florença é dirimente: “O mito da instantaneidade como satisfação alucinatória da necessidade de vizinhança ou de ultrapassagem da distância transforma a experiência do sujeito apenas numa sequência sincopada de acontecimentos isolados e encerrados neles mesmos. E quando pedimos aos outros para assistir — se bem que ao longe — a estes acontecimentos, é porque só nos sentimos presentes quando fazemos de nós próprios um espetáculo.” Não admira que a era da selfie seja também a do crepúsculo do rosto.

John Henry Newman

José Tolentino Mendonça, E, Expresso 12.outubro.2019

Este fim de semana muito se vai falar de John Henry Newman (1801-1890). O Papa Francisco canoniza no domingo um dos intelectuais europeus de referência do século XIX e a quem a nossa contemporaneidade deve porventura mais do que ainda reconhece. A sua voz contradistingue-se, com claridade, num período histórico atribulado, mas particularmente rico no plano das ideias e do seu debate: basta dizer que partilhou o século de Comte, de Marx, de John Stuart Mill, de Herbert Spencer, de Nietzsche e, em parte, de Freud. Newman mergulha apaixonadamente na construção cultural do seu tempo, mostrando que o contributo dos crentes se joga também aí, e de forma decisiva. Fá-lo, por exemplo, ajudando a pensar, a partir de dentro, o que é uma universidade, não como fragmentado lugar de saberes especializados mas como laboratório de consciência crítica que ensina a pensar globalmente, com rigor e humildade. Uma universidade, na visão de Newman, não se pode contentar em preparar economistas, engenheiros ou médicos. A sua finalidade prática é, antes de tudo, formar pessoas capazes de elevar o tom de toda a sociedade.

Mas será no campo da hermenêutica da experiência religiosa e na defesa da legitimidade racional do ato de fé que o mestre oxfordiano mais se empenhará. Como ele dirá, “o ato ou processo de fé é certamente um exercício da razão”. E, investindo nesse sentido, constrói um legado impressionante de reflexão sobre o humano e sobre a natureza e modalidades daquilo a que chamamos conhecimento. Quando confrontamos o seu discurso com o do empirismo racionalista que então triunfava, percebemos a sua grandeza, pois cartografa a existência de forma bem mais atenta, original e polifónica. Newman recusava-se a aceitar a redução do homem a máquina de raciocínios, como se a única gramática possível fosse a lógica. Complementa, por isso, o exercício raciocinante com o exercício de relação continuamente operado pelo homem, “um animal que vê, sente, contempla e atua”. Quando saiu na coleção ‘Teofanias’, da Assírio, a belíssima tradução portuguesa que Artur Morão fez do “Ensaio a Favor de Uma Gramática do Assentimento”, lembro-me do interesse que gerou não só entre teólogos mas também em filósofos, em teóricos da literatura, em arquitetos, em juristas. O que o oratoriano, nascido em Londres, demonstra é que um grande livro de teologia é sempre um texto de cultura, capaz de ressoar para lá do seu tempo.

Newman é justamente considerado um dos precursores do Concílio Vaticano II. A sua marca é bem nítida pelo menos em três temáticas-chave. A primeira delas é a da valorização do laicado. Praticamente transcreve-se o pensamento de Newman quando se refere o papel dos fiéis leigos em matéria de fé (Lumen Gentium 12). Outra é a do primado da consciência. Para o autor do célebre manifesto “Carta ao Duque de Norfolk”, a consciência é a capacidade que o homem tem de reconhecer a verdade e ao mesmo tempo o dever de encaminhar-se para ela. É isso que o Concílio Vaticano II assumirá na Gaudium et Spes, recordando que “a consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (n. 16). Uma última mas não menos importante inspiração de Newman é a do ecumenismo. Um testemunho disso é o facto de um poema seu se ter tornado um dos hinos espirituais mais repetidos nas diversas Igrejas cristãs: “Sê tu a conduzir-me, luz gentil/ Sê tu a guiar-me na escuridão que me cerca;/ a noite avança e a minha casa é distante/ Sê tu a conduzir-me, luz gentil.”

Newman foi criado cardeal por expressa vontade do Papa Leão XIII, em 1879, e escolheu como mote do seu escudo cardinalício as palavras “Cor ad Cor loquitur”, “o coração fala ao coração”.

Conversem uns com os outros

José Tolentino Mendonça, E, Expresso 24,agosto.2019

Vi uma vez, à entrada de um café, este aviso gentil impresso em tamanho garrafal, impossível de passar despercebido: “Não temos Wi-Fi. Conversem uns com os outros”. E, como tudo na vida, há quem o lesse e entrasse no estabelecimento a sorrir e há quem, com visível desconforto, procurasse outro poiso. Conversar com os outros — ainda o saberemos fazer? Penso em algumas pinturas que representam a história humana como uma conversa. No célebre fresco de Rafael, intitulado “Escola de Atenas”, onde a emergência do

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pensamento filosófico é contada como uma sucessão interminável de conversas: a de Platão e Aristóteles no centro, mas também a de Sócrates, Epicuro, Heraclito, Euclides, Pitágoras ou a da única mulher ali citada, Hipácia, uma importante matemática e astrónoma de Alexandria. Mas penso também nas conversas dos ceifeiros de Bruegel, onde se vê, sob a tortura da fadiga imposta, como a

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palavra partilhada é um reduto e um alimento. Ou nesse autorretrato de Matisse,

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conversando com a mulher, ele de pijama azul às riscas, ela de robe verde, a mesma cor da janela aberta sobre uma manhã despreocupada de verão, há mais de cem anos atrás. Não seríamos o que somos sem a conversa.

É evidente que hoje continuamos a conversar (e a cavaquear, a confabular, a conferenciar, a grulhar, a parlamentar, a prosear, etc.), mas parece que contamos menos com o que daí pode provir. Mesmo se não o reconhecemos, à custa de recorrermos a um conhecimento prefabricado que nos é servido num ecrã, tornámo-nos menos curiosos pelo mundo do outro que temos diante de nós. Neste afã por conectar com o distante, empobrecemos a relação com o que está próximo. O nosso discurso povoa-se de intermitências. Estamos e não estamos. A concentração dura o instante de um relâmpago. O tempo real de escuta cai. O baraço que permitimos ao desenvolvimento da palavra é sempre mais curto, porque nesta nossa época o que não for imediato não existe.

As conversas, porém, precisam de tempo. São as deambulações, as digressões e as derivas que nos conduzem à ciência do encontro, que nos desarmam enquanto falamos ou escutamos, que nos sobressaltam ou comovem, que nos deslocam interiormente, que nos interligam. Montaigne definiu a conversa como “um falar franco que abre caminho a um outro falar”. É um belo modo de descrever aquilo que numa conversa verdadeira acontece, quando a confiança oferecida pela palavra e sustentada pela escuta autorizam a expressão desse “outro falar” que está submerso em nós, que espera uma oportunidade de ser dito, e já não se manifesta apenas em palavras, mas numa experiência plena do tempo. Frequentar os outros capacita-nos para o encontro connosco mesmos e o conhecimento próprio dá-nos chaves para viver a aventura da alteridade. A conversa serve-nos de caminho para essas grandes viagens. Ela ensina-nos aquilo que Montaigne observava: que “a palavra pertence em parte àquele que fala e em parte àquele que escuta”. A vida é, de facto, essa circularidade, essa procura do quinhão que nos falta, essa entrega ao outro da metade que nos coube trazer até aqui, e que ele poderá continuar de uma forma imprevista, talvez ainda mais límpida do que aquela de que fomos capazes. Por isso, persiste sempre uma tensão na experiência da conversa. O autor dos “Essais” compara-a ao que acontece numa partida de ténis. Os interlocutores não estão estáticos. Mesmo parados movem-se, segundo a geometria da bola que voa de campo a campo. E o importante, por fim, não é fazer vencer as minhas ideias, nem se adequar às do outro, mas reagir em sintonia, compassar, cadenciar, aprender a alegria da troca.

O mapa do tesouro

José Tolentino Mendonça, E, Expresso 3.agosto.2019

No verão apetece-nos trocar os mapas. E há um sentido que se cumpre em fazer-se à estrada, em mudar de língua, de respiração e de paisagem, em deslocar-se na procura de outros lugares. O mundo é também a nossa experiência do mundo. E precisámos disso que se avista longe, disso que se toca nos cimos intangíveis, disso que nos é dito em linguagens que porventura nem percebemos a fundo, mas que na sua recôndita estranheza reconhecemos como próxima e íntima. A verdade é que nós não somos sedentários que se tornam viajantes. Somos desde sempre viajantes que provisoriamente se demoram antes de prosseguir, de novo, o curso da viagem. Mas tal como o caminho, também a nossa demora (por provisória que, perante o nosso destino último, ela possa ser) tem um significado, oferece-nos uma razão, abre-nos uma oportunidade.

Penso muitas vezes naquela saborosa história hassídica que o filósofo Martin Buber conta num dos seus livros. É a história de Eisik de Yékel, um judeu de Cracóvia. Os muitos anos vividos na miséria não haviam abalado a sua confiança em Deus, e ele acabou recompensado com uma revelação. Recebeu em sonhos o mandato de deslocar-se até à cidade de Praga e de procurar aí um tesouro que estaria escondido debaixo da ponte que conduz ao palácio real. A primeira vez que sonhou com isso não ligou. À segunda ficou intrigado. Quando o sonho se repetiu pela terceira vez, Eisik levou-o a sério e fez-se a pé ao longo caminho. Chegou, por fim, a Praga e dirigiu-se imediatamente à ponte, mas esta — percebeu com desânimo — era controlada, noite e dia, por sentinelas, o que tornava impossível qualquer escavação no local. Contudo, não perdeu a esperança e girava para cá e para lá ao longo da ponte. Não decorreu muito tempo até que o capitão da guarda o interpelasse perguntando se esperava alguém ou procurava ali alguma coisa. A Eisik, porém, aquele soldado deve ter parecido amistoso, pois decidiu contar-lhe o sonho que o arrastara de sua casa até aquele ponto distante. O capitão não pôde conter uma gargalhada: “E por causa de um sonho, pobre homem, viajaste até aqui, desperdiçando as solas no caminho! Quem se pode fiar em sonhos! Imagina que, se assim fosse, também eu deveria já ter peregrinado até Cracóvia e escavar na casa de um certo judeu, chamado Eisik de Yékel, para tomar posse do tesouro que se encontra debaixo do forno! Estaria metido em belos trabalhos se confiasse em sonhos e me pusesse a escavar nas casas de uma cidade estranha onde uma metade dos habitantes judeus se chama Eisik e a outra metade Yékel!” Abanava a cabeça e não parava de rir. Eisik saudou-o, tomou o caminho de regresso a casa, e desenterrou o tesouro que há muito o esperava.

Trata-se de uma história antiquíssima e encontrámo-la contada com variantes em tantas literaturas populares. Ela relata um paradoxo que nos atravessa a todos. Esta perceção, primeiro, de que existe um tesouro extraordinário que nos está prometido; segundo, que não o podemos encontrar em parte nenhuma do mundo e, no entanto, sentimo-nos incessantemente chamados a buscá-lo; terceiro, que há apenas um lugar onde o podemos achar: no lugar familiar, comezinho e banal onde se inscreve o nosso rotineiro quotidiano. De facto, não devemos colocar de um lado o sonho de uma vida autêntica e de outro a vida ordinária que vivemos. É no encontro das duas que a nossa existência refulge. O maior tesouro é poder cumprir a existência que está, aqui e agora, ao meu dispor. Uma outra história da tradição hassídica diz o seguinte: Um dia, ao receber em sua casa alguns homens ilustres, o Rabi Mendel de Koretz surpreendeu-os com esta pergunta: “Onde mora Deus?” Perante a reação embaraçada dos seus hóspedes, o próprio Rabi acrescentou: “Deus mora onde o deixamos entrar.”

O coração da vida

José Tolentino Mendonça, E, Expresso 13.julho.2019

Diz-se que os saberes são aquilo que nos permite ganhar a vida. Mas não podemos esquecer que a sabedoria é aquilo que nos permite verdadeiramente vivê-la. Cada um de nós transporta um conjunto de competências — fruto de múltiplas aprendizagens — que nos dão acesso a um ofício, a um labor, a uma função. Os saberes pertencem a esse plano. A sabedoria, por seu lado, é aquilo que nos faz tocar o coração da vida, os seus porquês entusiasmados, sejam de dor ou delícia, e os seus sem porquês a perder de vista. A nossa tendência, demasiadas vezes, é afunilar a realidade ao trabalho da sua conquista imediata. A luta pela sobrevivência literalmente nos esgota e deixámos por fazer a viagem mais profunda, essa que sem palavras justifica o nosso estar aqui. O místico Silesius escreveu que “a rosa é sem porquê”, desafiando-nos à aventura profunda do viver. E, de facto, precisamos desse viver que não depende da contingência que nos rodeia, nem da exclusiva confirmação que o utilitário ou o funcional possam trazer.

A verdade é que vivemos muito à superfície, a esbracejar, a correr de um sítio para outro, e fazemos disso um hábito. Vivemos dando respostas às solicitações que constantemente nos são feitas, às imagens que se atropelam numa sonâmbula sucessão. Na voragem destas sequências, cada instante emerge como um ponto desconexo que num relâmpago se esvazia e não como testemunho de uma iminência maior que perdura. E é assim que raramente mergulhamos no coração da vida. Raramente pensamos numa vida que nos pertença, e que seja mais do que um tique, mais do que a cega forma rotineira de aparecermos a nós próprios e aos outros. Não tenhamos dúvidas: precisamos de mais do que isso. Precisamos de uma existência que nos expresse, que decline o silêncio, o mistério, a imensidão, o aberto do próprio ser, e não a vidinha sempre à pele, condicionada, diminuída e cheia de retrações.

Acontece-nos isto: olhamos para um jardim, gostamos, não gostamos, intervimos, cortamos, cerceamos e, de repente, temos um jardim geométrico, deslumbrado por formas perfeitas. Contudo, é bom saber que o nosso desejo deste artifício é uma enganadora ilusão, porque a vida é informe, ainda em bruto, ainda inicial. Por isso, ela é viva. Creio que temos de construir os nossos canteiros bem ordenados, mas temos de desejar ardentemente que também as flores de que não conhecemos o nome venham florir à nossa porta. Porque elas nos dão o endereço da existência em cascata, na sua pura torrente, na sua originalidade e verdade.

Uma das formas fundamentais da sabedoria é a descoberta que cada um de nós vai fazendo numa vida adulta, a ciclo e a contraciclo, a tempo e fora do tempo, de que somos inacabados. Não por acaso os mestres espirituais ensinam que um dos maiores obstáculos na vida interior é a perfeição, ou melhor, a ideia da perfeição. Porque, no fundo, ela nos atira para fora da própria vida, e nos mantém como que aprisionados à miragem de uma existência que não é a nossa. Mais importante do que a completude é nos sabermos nas mãos do oleiro. São duas experiências a associar: a do inacabamento e a de habitarmos continuamente um processo de (re)criação. Por exemplo: os dias da nossa vida, em que parece que já não há nada para acontecer, são, mesmo se de uma forma que porventura ignoramos, um tempo de criação. Grande tarefa esta de levarmos a sério a própria vida. Porque o abraço ao que somos é a única possibilidade de um abraço que nos salve. A possibilidade do abraço de Deus.

o peixe

José Tolentino Mendonça, E, Expresso de 15.junho.2019

A verdade é que existem dimensões da nossa existência que não são explicáveis, que não pertencem à ordem da razão lógica. Através de um silogismo ou do conhecimento matemático não chegaremos a apreender o seu sentido. E o mesmo se passa com a técnica e com as outras formas da ciência. Mas também é errado pensar que pela razão afetiva se consegue desfazer o enigma. Podemo-nos talvez aproximar mais profundamente, mas não é por acaso que os grandes mitos do amor são, a maior parte das vezes, mitos da procura de amor, de desejo de amor, não são histórias de fusão, de coincidência perfeita ou de uma reciprocidade sem ângulos.

Também à afetividade se pede que aprenda a abraçar o enigma, que deixe de temer aquela porção inalienável de silêncio e mistério que cada ser humano irradia até ao fim. Amar é também amar o que não compreendemos do outro. Lembro-me que José Augusto Mourão defendia, a propósito deste argumento, uma posição desafiadora. Ele dizia: “O que os biólogos marinhos, a indústria de peixe e os compradores de mitos partilham, é simplesmente isto: ninguém realmente sabe o que é um peixe.” É uma coisa em que pensamos pouco: o papel que na nossa vida cabe a este não saber. Se realmente não sabemos o que é um peixe, temos que retirar daí elações e perguntar: como me posso avizinhar de um peixe? Mourão responde: “Aprendamos a negociar.” Isto é, dispúnhamo-nos a aprender, ouvindo, tentando construir pacientemente um pacto, não vinculados a um saber teórico, mas sendo fiel à observação da própria realidade. Sobre o peixe, há aquele conto instigador de Herberto Helder, no livro “Os Passos em Volta”.

 “Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe. O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava… Ao meditar sobre as razões da mudança, o pintor supôs que o peixe, efetuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose. Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.”

A lei da metamorfose não será certamente a única lei. Há um património de verdade e uma ontologia que persistem e se tornam a chave do que somos. Mas a história do peixe amarelo de Herberto Helder também relata dimensões significativas da vida. Identifico rapidamente duas. Primeiro, a importância daquilo que chamaria uma “espiritualidade do provisório”. E cito Roger Schutz, fundador da comunidade ecuménica de Taizé, que explicava o provisório como o aceitar ir de começo em começo; aceitar a peregrinação, a desinstalação permanente; aceitar que podemos habitar a passagem; aceitar comprometer-se apaixonadamente com a vida não apenas quando temos todas as coisas garantidas, mas porque aceitamos caminhar na confiança. A outra coisa é a necessidade de realizar um percurso de reconhecimento. Reconhecer é antes de tudo identificar: tenho que saber quem é o outro e quem sou eu próprio; tenho de ouvir melhor, aprender a ver em profundidade. Mas o reconhecimento é também a gratidão que me faz compreender que a vida é pura economia do dom.

A profissão de viver

José Tolentino Mendonça, E, Expresso 4.maio.2019

Claro que falar do viver como sendo uma profissão tem o seu quê de insólito. A vida não é um ofício, é uma condição. Mas referir-se a ela desse modo talvez nos ajude na compensação de quanto a vida nos pede de aprendizagem, iniciação e sucessivos recomeços. Era Erich Fromm quem dizia que as pessoas felizes são aquelas que encaram todo o curso da sua vida como um processo de nascimento, rompendo com a gramatica mais comum que considera que cada um de nós só nasce uma vez, só tem uma grande oportunidade, só percorre um caminho antes de se precipitar no fim. Erich Fromm defendia que tal modo de pensar gera este efeito devastador: vermos tanta gente a morrer sem sequer ter chegado a nascer. De facto, o verdadeiro e exigentíssimo desafio que se coloca ao ser humano é levar a cumprimento o seu nascimento. Nisto, nós humanos diferenciamo-nos das outras criaturas, que em pouco tempo já são completamente aquilo que são. Nós, ao contrário, somos inacabados; recebemos a vida como dom, mas também como tarefa; vivemos no decurso do tempo o processo do nosso próprio parto; precisamos de muitos anos (e de muito trabalho interno) para chegar a exprimir o que há em nós de original. Os mestres estoicos, na Antiguidade, motivavam os discípulos a construir a sua própria estátua. Quer dizer, exortavam-nos ao labor de si para edificar a sua própria humanidade, esse labor face ao qual todos os outros que desenvolvemos são simplesmente preparatórios.

As nossas sociedades concentram demasiado a sua aposta de formação em saberes técnicos e científicos, ou então assumidamente parcelares e especializados, apontando como horizonte o resultado sobretudo económico e, como consequência, damos por nós analfabetos, vulneráveis e desprovidos nas dimensões fundamentais do viver. Uma das patologias contemporâneas é este défice de sabedoria, esta falta de uma arte da existência. Por isso, não só um a um e em doloroso contraciclo, como na melhor das hipótese acontece, mas como comunidades no seu conjunto teremos de confrontar-nos com aquelas perguntas que T. S. Eliot coloca num dos seus poemas: “Onde está a vida que perdemos vivendo? Onde está a sabedoria que perdemos com o conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos com a informação?”. Eliot tem razão: a vida não só se ganha, também se perde quando nos tornamos prisioneiros do imediato, do desagregado e do fragmentário, sem espaço para reelaborar o vivido a partir de razões mais profundas.

Por sua vocação, o ser humano não se realiza apenas na luta pela sobrevivência. a par dessa, ele precisa de conhecer-se a si mesmo, viver na exterioridade e na interioridade, precisa de avizinhar-se com vagar da “espantosa realidade das coisas”, escutar o visível até ao fim e para lá do visível, porque a vida é surpresa e mistério. Precisa de acreditar e duvidar, recolher e lançar o mesmo propósito muitas vezes, precisa de dizer e calar, abraçando assim esse movimento que é afinal imobilidade e essa imobilidade que é afinal movimento. Atirámos as experiências de vida contemplativa para uma periferia e olhámos para essas expressões (religiosas, culturais, humanas) com indiferença, como se não tivessem nada a ensinar-nos. Dispersámos assim um património espiritual de que as nossas sociedades carecem absolutamente. Friedrich Nietzsche escreveu: “Por ausência de quietude a nossa civilização está a desaguar numa nova barbárie. Nunca como hoje o ativismo dos irrequietos gozou de tamanha consideração. Por isso, uma das correções a introduzir no modo de vivermos a nossa humanidade seria reforçar largamente o elemento contemplativo”.

Salvos pela fraqueza

José Tolentino Mendonça, E, Expresso 13.abril.2019

Entrar numa igreja em dia de sexta-feira santa é uma experiência que só nos pode deixar atónitos. Olhamos para o tabernáculo e está aberto e vazio, como se tivesse sido espoliado. O altar não tem toalha nem adornos: apenas a pedra nua. Se procurarmos uma cruz, não a encontramos: foi retirada ou oculta ao olhar com um véu. Estamos ali como se estivéssemos num qualquer lugar perdido, rebuscando entre silêncio e escombros. Encontramo-nos numa situação paralela àquela descrita no Evangelho de João, quando os mensageiros vestidos de branco perguntam a Madalena: “Mulher, porque choras?” E ela responde: “Levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram” (Jo 20, 13). É verdade que demasiadas vezes o cristianismo (pelo menos, o nosso) corre o risco do excesso: demasiadas palavras, amontoação de símbolos e de ritualismos… Em dia de sexta-feira santa é o contrário: ocorre uma dramática redução. O espaço religioso esvazia-se até ao osso; torna-se simplesmente anónimo; nada o distingue de qualquer outro lugar desolado da terra. A liturgia, que nessa ocasião se celebra, principia em estrito silêncio e quando os presbíteros chegarem à zona do altar vão atirar-se por terra, longamente jazentes, como que inanimados, mimetizando com o próprio corpo o abandono que toda a comunidade é chamada a experimentar. Que espesso enigma é este? Onde nos conduz este tatear cambaleante, esta celebração assim desprovida, esta radical privação? A única resposta é esta: conduz-nos ao âmago ardente dos mistérios cristãos que, na verdade, são puro escândalo, aturdimento e loucura, pois os cristãos acreditam num Messias crucificado, num Salvador que salva não através da força, mas da impotência. Isso que São Paulo explicitou na Primeira Carta aos Coríntios: “Nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo… e loucura” (1 Cor 1, 22).

Um dos mais importantes teólogos do século XX, o pastor-mártir Dietrich Bonhoffer, rebelava-se contra o recurso que, na prática, os crentes fazem a um deus ex-machina, a um Deus “tapa-buracos”, que se assemelha a uma solução mágica para todos os dilemas humanos. De facto, o cristianismo opera uma corajosa inversão de paradigma: enquanto que a religiosidade natural leva a que o homem procure o Deus poderoso como auxílio para a sua vulnerabilidade, o cristianismo reenvia continuamente o homem à impotência e ao sofrimento de Deus. Segundo Bonhoeffer, “é absolutamente evidente que Cristo não nos socorre em razão da sua omnipotência, mas em razão da sua fraqueza”, pois “Deus deixa-se expulsar do mundo no alto da cruz, Deus revela-se aí impotente e frágil, e só dessa maneira está o nosso lado e nos ajuda”. Neste caso, o que é a fé? Para Dietrich Bonhoeffer, a fé é tomar parte no sofrimento de Deus no mundo, abraçando e cuidando de cada pessoa que sofre, responsabilizando-se solidariamente com esta história, fincando nela os dois pés. Se vivermos agora a difícil história humana, com as suas emergências e apelos, apenas com um pé colocado no chão, teremos depois também apenas um pé colocado no paraíso.

Outra mártir do século XX, a escritora Etty Hillesum, abre-nos para um intenso desafio existencial quando diz: “Eu compreendi que tenho de ajudar Deus.” No diário que redigiu no campo de concentração, deixou escritas estas palavras: “São tempos temerosos, meu Deus. Esta noite, pela primeira vez, passei-a deitada no escuro de olhos abertos e a arder, e muitas imagens do sofrimento humano desfilavam perante mim. Mas torna-se-me cada vez mais claro o seguinte: que tu não nos podes ajudar, mas nós é que temos de ajudar-te, e, ajudando-te, ajudamo-nos a nós mesmos”.

A perfeita alegria

José Tolentino Mendonça, E, Expresso 23.fevereiro.2019

É uma arte difícil, a alegria. Por uma lado, sabemo-la próxima e acessível, como se os nossos dedos pudessem, a cada momento, e sem esforço, alcançá-la. Mas sabemos também como nos escapa, como é precária, dolorosa e inexplicável a alegria. Como nos obriga a procuras extenuantes e a desertos cujo fim não de divisa. Não admira, por isso, que muitos desistam da alegria e se metam a caminhar, vida fora, excluindo-a do seu alforge. A alegria, porém, é uma condição necessária da existência. Sempre que ela nos falta temos de interpretar isso como uma iniludível sintoma, a que é preciso atender. Temos de nos interrogar sobre o porquê do nosso viver burocrático e tristonho, o porquê do nosso passo precocemente anoitecido, do nosso errar entre o peso e a cinza de onde a alegria se ausenta.

Não raro o problema é fazer depender a alegria de motivações acidentais, que nada têm que ver com a sua essência julgamos extrair a alegria do sucesso, da abundância, da força, da afirmação, de eficácia, do poder, mas o tempo encarrega-se de demonstrar o nosso equívoco. Os mestres espirituais ensinam, por exemplo, que a alegria não depende do imediato ou conjuntural: a alegria liga-se às razões profundas do viver. De facto, ela não deve ser reduzida a uma espécie de estado de graça que nos toca em certas estações ou a uma maravilhosa isenção face à turbulência e aos contrastes do mundo. Pelo contrário. Se pensarmos bem, a maior parte do tempo, a nossa vida é a experiência de inacabamento e incompletude, é esboço e é projecto, é movimento transformante. Como escrevia Montale: “Não existe um tempo inteiro:/ temos sempre tantos fios/ a correr em paralelo/ fios em sentido contrário/ que raramente coincidem.” Conta-se nos ‘Fioretti’ (a célebre recolha hagiográfica que se tornou uma das fontes para conhecer o franciscanismo das origens) que regressando São Francisco de uma viagem para o seu convento de Santa Maria dos Anjos, fustigado por um inverno particularmente hostil, o seu companheiro Frei Leão lhe perguntou: “Pai, peço-te, da parte de Deus, que me digas onde está a perfeita alegria” E que São Francisco lhe respondeu desta maneira: “Imagina que ao chegarmos a Santa Maria dos Anjos, completamente encharcados, desfigurados pela lama, pela fome e pelo frio, batemos à porta do convento; o porteiro aproxima-se irritado e diz: ‘quem são vocês’; e nós explicamos: ‘somos dois dos vossos irmãos’; mas ele responde, ‘vê-se claramente que estão a mentir, são, sim, vagabundos que roubam as esmolas destinadas aos pobres. Fora daqui!’. Quando o irmão porteiro nos fechar a porta, e nos abandonar sem apelo à neve e à fome, se soubermos suportar tal injúria de bom modo, sem nos perturbarmos e sem murmurarmos contra ele, possuiremos então a perfeita alegria.

“É uma arte de paciência, a alegria. Ela pede de nós a capacidade de construir as nossas expectativas, necessidades, idealizações – coisas a que estamos mais apegados do que supomos – e a provar aquela liberdade que vem de abraçar a vida nas suas não-coincidências (como sugeria a verso de Montale), com os seus sofrimentos, os seus revezes, as suas interrogações e pausas, as suas misteriosas travessias. E a fazê-lo sem ressentimentos, mas aceitando que a esperança se expressa de um modo alternativo, prossegue por um caminho outro, capaz de nos surpreender.

Na verdade, é um artesanato a alegria, não um produto prefabricado. É uma coreografia que avança por tentativas e não um enredo prévio, que já dominamos. Somos felizes quando, reconhecendo a nossa própria fragilidade, nos reconhecemos também prometidos não só à alegria, mas à perfeita alegria.