
Domingo
A vida é viva quando tem coração
O homem bom do bom tesouro do seu coração extrai o bem. O bom tesouro do coração: uma definição tão bela, tão plena de esperança, daquilo que somos no nosso íntimo mistério. Todos temos um tesouro bom guardado em vasos de argila, ouro fino a distribuir. O primeiro tesouro é o nosso próprio coração: «Um homem vale quanto vale o seu coração» (Gandhi). A nossa vida é viva se cultivámos tesouros de esperança, a paixão pelo bem possível, pelo sorriso possível, a boa política possível, uma casa comum onde seja possível viver melhor para todos. A nossa vida é viva quando tem coração.
Jesus leva ao cumprimento a religião antiga segundo duas diretrizes: a linha da pessoa, que vem primeiro da lei, e depois a linha do coração, das motivações profundas, das raízes boas. Acontece como para as árvores: a árvore boa não produz frutos estragados. Jesus conduz-nos à escola da sabedoria das árvores. A primeira lei de uma árvore é a fecundidade, o fruto. E é a mesma regra de fundo que inspira a moral evangélica: uma ética do fruto bom, da fecundidade criativa, do gesto que verdadeiramente faz bem, da palavra que verdadeiramente consola e cura, do sorriso autêntico. As árvores, toda a natureza, mostram como não se vive em função de si próprio, mas ao serviço das criaturas. Com efeito, em cada outono encanta-nos o espetáculo dos ramos carregados de frutos, um excesso, um desperdício de sementes, que são para os pássaros do céu, para os animais da Terra, para os insetos como para os filhos do homem.
As leis profundas que regem a realidade são as mesmas que regem a vida espiritual. O coração do cosmo não diz sobrevivência, a lei profunda da vida é dar. Isto é, crescer e florir, criar e dar. Como árvores boas.
O olho do Criador vê que o homem é coisa muito boa! Deus vê o homem muito bom porque tem um coração de luz. O olho mau emana obscuridade, espalha amor pela sombra. O olho bom é como lucerna, difunde luz. Não procura traves ou argueiros ou olhos feridos, os nossos tesouros maus, mas pousa sobre um Éden de que ninguém está privado. «Com todo o cuidado vigia o teu coração, porque nele está a fonte da vida.»
Ermes Ronchi in “Avvenire”
Segunda-feira
O caminho
É importante nós descobrirmos que o caminho da nossa vida é um caminho teológico, que o caminho que nós estamos a fazer é um caminho onde Jesus vem ao nosso encontro. O caminho torna-se uma espécie de sacramento ou uma espécie de sacramental. Porque, qualquer que seja o nosso caminho (mais solitário, mais acompanhado, mais esperançoso, mais desiludido, mais luminoso, mais ferido, mais com fé, mais cravado de dúvidas), esse caminho é precioso. O nosso caminho é precioso porque é no caminho que Ele se vem colocar ao nosso lado, mesmo que os nossos olhos estejam impedidos de O ver. E tantas vezes nós sabemos que é assim. Parece que estamos a caminhar sozinhos com o nosso peso e com a nossa dificuldade, depois, mais tarde, nós vamos perceber que não estivemos sozinhos e que o caminho foi, de uma forma misteriosa, um lugar de encontro, um lugar de audição. Muitas vezes estes momentos de crise, estes caminhos palmilhados nas horas de crise são momentos de auscultação profunda, necessária na nossa própria vida. Aprendamos também a dar valor ao nosso caminho, mesmo que ele pareça uma coisa sem sentido, mesmo que ele pareça só uma fuga, um fracasso. Aprendamos a valorizar o nosso caminho como lugar de construção da fé, e da fé pascal, porque o caminho é esse lugar, é esse lugar onde o Ressuscitado vem caminhar connosco. A fé é o caminho, e o caminho em grande medida é a nossa biografia, é a nossa história, é a nossa trajetória, são os nossos encontros e desencontros. A fé é a Palavra, é o encontro com a Palavra, é o encontro com uma Palavra que organiza, que cura, que dá sentido, que relê, que ajuda a reler a própria história. Mas a fé, a fé cristã, fica sem possibilidade de ver Jesus se ela não é hospitalidade, se ela não é franquear de portas, se ela não é abertura de uma mesa universal, se ela não é convite para dizer “fica connosco porque o dia vem cair” – é aí que o Ressuscitado Se revela.
José Tolentino Mendonça in “Homilia no III Domingo da Páscoa (30.04.2017)”
Terça-feira
Fé
“Bem-aventurados os que não veem e, no entanto, acreditam.” A fé real, a fé bem-aventurada tem sempre o caráter de uma “fé, apesar de tudo”, de uma “fé, mesmo assim” – do corajoso passo da esperança para lá dos limites do verificável, do concetualizável e compreensível.
Já na cena em que Jesus chama os seus primeiros apóstolos e os convida a lançar ao mar, outra vez, as suas redes, após uma noite de esforço inútil, ressoa a primeira confissão de fé de Pedro: “Nada apanhámos, mas porque Tu o dizes, lançarei novamente as redes.”
A esperança carrega com a confiança na sua palavra. Esta palavra é para nós, hoje, a palavra das testemunhas, por esta palavra os próprios Apóstolos devem tornar-se testemunhas, como Tomé, mas também os que vêm depois dele, os que não veem e, todavia, acreditam. Se a nossa fé, desde o “mundo visível” que, de tantos modos, nos pode seduzir para a desconfiança e para a descrença, consegue dar este salto da confiança e da coragem para o “mundo invisível”, para o seio do mistério do sentido oculto da realidade incompreensível e invisível, então também nos tornamos testemunhas.
Tomás Halík in “O meu Deus é um Deus ferido”
Quarta-feira
O passarinho
«Se eu puder impedir um coração de se quebrar, não terei vivido em vão. Se aliviar a dor de uma vida ou curar um sofrimento, ou ajudar um passarinho caído a voltar ao ninho, não terei vivido em vão.» É, em absoluto, uma das poetisas que me é mais querida, a americana Emily Dickinson, que viveu no século XIX em isolamento na casa paterna de uma cidadezinha do Massachussets.
Os seus versos são sempre límpidos, ainda que nem sempre fáceis, e revelam uma intensa espiritualidade que se confia aos grandes temas bíblicos e à contemplação da natureza, a partir do microcosmo do jardim da família. Escolhi hoje alguns versos que refletem uma mensagem imediata e cristã. Não se vive em vão, não porque realizaste grandes projetos, não porque as multidões te aclamaram, e também não por teres deixado livros que ganham pó nas bibliotecas.
A verdadeira herança que assegura a eternidade é o amor que se semeou, mesmo nos pequenos gestos como é o de suster um passarinho recém-nascido, ou acariciar a quem está em sofrimento e talvez não o saiba exprimir. Sobretudo gostaria de sublinhar a frase «impedir um coração de se quebrar». Demasiadas vezes passamos pelo próximo com a segurança e o distanciamento de um príncipe que não quer saber do povo.
Não nos damos conta das perguntas mudas, das pessoas frágeis que empurramos, dos sentimentos delicados que ignoramos e, até, desprezamos. Reencontrar a finura da alma, sem afetação mas com doçura, permitirá aos outros e a nós confessar que não vivemos em vão.
Cardeal Gianfranco Ravasi in “Avvenire”
Quinta-feira
Vive o Evangelho, vive a vida
Seguir Jesus não significa entrar na corte, nem participar num cortejo triunfal, nem mesmo garantir-se um seguro de vida. Pelo contrário, significa «tomar a própria cruz»: como Ele, carregar os pesos próprios e os pesos alheios, fazer da vida um dom, não uma posse, gastá-la imitando o amor magnânimo e misericordioso que Ele tem por nós. Trata-se de opções que comprometem a totalidade da existência; por isso, Jesus deseja que o discípulo nada anteponha a este amor, nem sequer os afetos mais queridos ou os bens maiores.
Para o conseguir, porém, é preciso olhar mais para Ele do que para nós próprios, aprender o amor que brota do Crucificado. N’Ele vemos um amor que se dá até ao fim, sem medida nem fronteiras. A medida do amor é amar sem medida. Nós mesmos somos objeto, da parte de Deus, dum amor que não se apaga. Não se apaga: nunca se eclipsa da nossa vida, resplandece sobre nós e ilumina até as noites mais escuras. Ora, olhando para o Crucificado, somos chamados às alturas daquele amor: somos chamados a purificar-nos das nossas ideias erradas sobre Deus e dos nossos egoísmos, a amá-Lo a Ele e aos outros, na Igreja e na sociedade, incluindo aqueles que não pensam como nós e até os próprios inimigos.
Amar, ainda que custe a cruz do sacrifício, do silêncio, da incompreensão, da solidão, da contrariedade e da perseguição. O amor até ao extremo, com todos os seus espinhos: e não as coisas a meio, as acomodações ou a vida tranquila. Se não apontarmos para o alto, se não arriscarmos, se nos contentarmos com uma fé superficial, somos – diz Jesus – como quem deseja construir uma torre, mas não calculou bem os meios para a fazer: «assenta os alicerces» e, depois, «não a pode acabar» (Lc 14, 29). Se, por medo de nos perdermos, renunciamos a dar-nos, deixamos inacabadas as coisas – os relacionamentos, o trabalho, as responsabilidades que nos estão confiadas, os sonhos, e até a fé –, então acabamos por viver a meias. E quantas pessoas vivem a meias! Também nós muitas vezes temos a tentação de viver a meias, sem nunca dar o passo decisivo (isto é viver a meias), sem levantar voo, sem arriscar pelo bem, sem nos empenharmos verdadeiramente pelos outros. Jesus pede-nos isto: vive o Evangelho e viverás a vida, não a meias, mas até ao fundo. Vive o Evangelho, vive a vida, sem cedências.
Papa Francisco in “Homilia no XXIII Domingo do Tempo Comum (04.09.22)”
Sexta-feira
Quem nos trará a primavera?
“Por vezes, o nosso destino parece uma árvore de fruto no inverno. Ninguém diria que aqueles ramos hão-de ficar verdes e florir de novo, mas temos confiança, nós sabemo-lo.”, escreveu Goethe.
Depois de cada inverno, nunca sabemos os ramos que em nós voltarão a florir, nem quais teremos perdido para sempre. Nunca saberemos a duração de cada inverno em nós: no coração de alguns parece durar eternamente.
Perguntamos: quem nos trará a primavera? Quem nos devolverá a inocência dos pássaros e a frescura das manhãs? É preciso gritar e deixar que a violência do grito rebente no coração, como as trovoadas rebentam na terra as águas de maio. É preciso essa dor de nos deixarmos abrir, não ceder à tentação da fuga. Fechados, tornamo-nos estranhos a nós próprios, enlouquecidos e sós, perdemo-nos profundamente, morremos devagar.
É pelos outros que nos conhecemos, é para os outros que existimos, é no outro que nos encontramos. Construímo-nos em relação, num diálogo marcado pelo amor, pela dádiva, pela tarefa de realizar um projeto de vida em que o outro se constitua como um referencial absoluto.
O amor é um ato de fé. Torna-nos vulneráveis e expostos, abre fendas por onde podem penetrar o sofrimento e a dor, ou o calor que traga de novo a primavera ao nosso destino para que se cumpre, para que de novo a árvore rebente e floresça.
Henrique Manuel S. Pereira in “Os paraísos são interiores”
Sábado
Sem amor, o teu coração é um deserto
É no coração que se sente a felicidade e é aí que mais dói a solidão. Uma ferida sempre aberta que sente tudo com grande intensidade, chegando a fazer-nos chorar de alegria, de tristeza e também, muitas vezes, sem porquê. Quando amamos, o espaço e o tempo sentem-se como coisas ainda mais concretas do que as pedras.
Sem amor, ninguém é feliz, mas por causa dele, cada coração tem em si o céu e o inferno. Talvez a nossa vida seja uma história de amor do primeiro ao último dia, passando por todo o tipo de paisagens. Os tempos aproximam-nos ou afastam-nos, mas nada podem perante o que nos une aos que amamos. É o amor que nutrimos por alguém que o faz sempre presente na nossa vida. Assim também, cada um de nós habita no coração de quem nos ama, mesmo quando nos julgamos sós e abandonados.
Há corações doentes, ou por não se julgarem capazes de abraçar a dor de amar, ou por não compreenderem como é possível amar sem se sentir amado… A existência plena implica o sofrimento inevitável que decorre de sermos vida e vida em abundância. Quem não ama, não vive. Não há maior infelicidade do que a de quem não ama. Ser só é não ser. O amor é uma árvore com duas raízes, uma no coração de quem ama e outra no de quem é amado. E assim é, mesmo quando quem é amado se julga sem ninguém que lhe queira o maior bem.
Ama, deixa que a vontade que a vida tem de si mesma faça brotar em ti as mais belas flores e frutos. Vida em ti, vida para os outros através de ti.
José Luís Nunes Martins in www.agencia.ecclesia.pt