Domingo
Escuta, Israel
“Escuta Israel”: cada um de nós é a resposta a uma chamada. É a resposta existencial, sinuosa mas possível, a um apelo de ser, que nós dizemos que é o apelo de Deus. Cada pessoa na sua vida é a resposta concreta ao apelo de Deus que é um apelo à vida. Os caminhos existenciais pelos quais se cumpre esta resposta podem ser em algumas pessoas mais facilitados e em outras mais complexos, mas cada pessoa se cumpre dizendo: “sim”. E o “sim” é aceitar a vida. “Escuta” é um dos mandamentos mais importantes do Antigo Testamento. Põe-te à escuta de Deus, pondo-te à escuta do mundo. E quem se põe à escuta sabe que a primeira palavra não é a nossa palavra. A primeira palavra é a palavra que alguém me dirige, é a palavra que vem de fora. É um desafio, um repto, um apelo, uma evidência, um conhecimento. É a descoberta de alguma coisa ou a descoberta de alguém. É um sentimento que me habita, é uma vontade. E no segundo momento, eu digo “sim” a esse apelo. Ao dizer “sim”, e ao continuar a dizer “sim”, estou-me a cumprir.
“Escuta Israel, amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua força, com toda a tua alma.” Curioso, o verbo «amarás» está no futuro. Significa que é um trabalho para toda a vida, é uma promessa, é um mandamento porque o Senhor nos desafia a vivê-lo. Mas é um mandamento que se adapta às nossas circunstâncias, ao nosso crescimento, à nossa evolução. É uma promessa que nunca está concluída, é uma resposta que nunca está acabada. Por isso tem futuro. “Amarás o Senhor teu Deus.” Porque a Deus só se vai pelo amor. Deus só vem a nós pelos caminhos do amor. O amor é que faz a santidade. Porque o amor é a relação, é a procura, é a descoberta, é a resposta possível, por vezes hesitante, é o passo que se dá na procura do outro em que nós nos implicamos por inteiro. Não deixes nada de fora na tua relação com Deus. Façamos do amor a Deus o amor envolvente de todo o teu ser. Até dos nossos limites, das nossas fragilidades, das nossas dúvidas, das nossas hesitações, das nossas feridas, dos nossos desencontros. Tudo isto é para o unificar, é para o oferecer nesta resposta que nós queremos dar a Deus pelo caminho do amor.
Mas o amor a Deus não vale por si, completa-se no amor aos irmãos. O nosso sentimento mais nobre, mais sublime que é a resposta a um apelo fundamental da nossa vida a quem chamamos Deus, concretiza-se na nossa relação quotidiana com aqueles com quem vivemos, com quem nos cruzamos: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo.”
Padre António Martins in “Homilia do XXXI Domingo do Tempo Comum (04.11.18)”
Segunda-feira
Agora, aqui e hoje
«O meu passado já não me preocupa: pertence à misericórdia divina. O meu futuro também não me preocupa: pertence à providência divina. O que me preocupa é o agora, aqui e hoje: ele pertence à graça divina e ao empenho da minha boa vontade.» Estas palavras de S. Francisco de Sales (1567-1622), também conhecido pela sua fina produção literária espiritual, podem adaptar-se a estes últimos dias de um ano que está a declinar.
Elaborar balanços finais ou projetivos de uma empresa pode ser fácil; mais desafiador é fazer o relatório de uma vida com os seus esplendores e as suas misérias, com o bem e o mal, com o significado ou com o vazio de uma existência.
Francisco de Sales articula o seu balanço na tríplice dimensão do tempo e coloca-o sob a alçada do julgamento divino. O passado e o futuro são vistos com grande serenidade: o primeiro é confiado à misericórdia de Deus, até porque já não pode ser mudado; o segundo está somente nas mãos de Deus, que também é pai e não quer que o filho seja abandonado ou arruinado.
O único aspeto do tempo que é arriscado é o presente porque está a ser construído «agora, aqui e hoje» e é o único que plenamente nos pertence. Depende da nossa liberdade torná-lo ofensivo e deflagrador ou frutífero e produtivo. Mas S. Francisco sabe que também o presente, embora intrinsecamente ligado a nós, não está privado da presença divina. A graça, com efeito, sustenta a nossa liberdade e basta esticarmos a mão para que Deus esteja pronto a agarrá-la e a guiar-nos ao longo do caminho da vida, dia após dia, passo após passo.
Cardeal Gianfranco Ravasi in “Avvenire”
Terça-feira
Deus surpreende-nos sempre
No Evangelho, Jesus escolhe uma imagem quase banal do dia-a-dia para nos explicar a nossa relação com Deus. Fala-nos de um lavrador que lança a sua semente por todo lado, de modo a que esta cresça e ele possa ter uma boa colheita. É como se Jesus nos dissesse: Deus dá a todos, sem medida. Tudo o que Deus pode fazer é dar vida. Não é preciso dar muitas voltas à cabeça para compreendermos como podemos merecer o seu amor. Ele dá esse amor constantemente.
A verdadeira questão que esta parábola nos traz é outra, nomeadamente: como podemos receber o que Deus nos dá? Afinal, uma semente não cresce apenas por si própria. Precisa de encontrar o solo conveniente para dar fruto. Em nós e no nosso mundo, há muitos obstáculos que obstruem a comunicação e o crescimento da vida de Deus, do seu amor. Para algumas pessoas, há demasiadas provações que tornam a confiança em Deus impossível. As más experiências do passado podem endurecer-nos e fazer-nos duvidar da bondade de Deus.
Mas as provações também podem tornar-nos menos auto-suficientes, mais disponíveis para acolher o que vem de outros lados. Paradoxalmente, às vezes, podem ajudar-nos a avançar para uma vida melhor. O obstáculo mais profundo ao acolhimento do dom de Deus não é o sofrimento, mas a recusa de nos deixarmos ser perturbados, por medo ou por comodismo.
Deus surpreende-nos sempre. As crianças gostam de surpresas, mas os adultos nem sempre as apreciam imediatamente. Mexem com os nossos hábitos, deixamos de ter o controlo total das coisas, põem-nos sobre um caminho que nos leva ao desconhecido. Mas se nunca nos deixamos incomodar, como podemos descobrir a vida inesperada que Deus nos oferece? Esta vontade de acolher aquilo que não controlamos chama-se a confiança. E quando o dom de Deus encontra um coração que confia, tudo se torna possível. É a isso que a parábola chama dar fruto ao cêntuplo. O universo inteiro é como que recriado pelo sim de um coração que confia.
Comunidade de Taizé in “Aprofundar a Palavra” (www.taize.fr)
Quarta-feira
Sonhos sem realidade
Muitas vezes os nossos sonhos nascem e amadurecem sem que nós o decidamos, não são um ato de vontade, somos como que chamados por eles. Os sonhos são depostos em nós como uma semente e polarizam tudo: por vezes torna-se um sim de toda a pessoa, outras vezes pensamos que viver um sonho é demasiado pouco, e por isso deixamo-lo morrer e fazemos nascer outro.
Hoje vivemos a instabilidade dos sonhos a longo prazo, curamos um sonho com outro sonho, uma paixão com outra paixão, um desejo com outro, sem permitir-lhes que se tornem realidade. Os sonhos adoecem e morrem se não se tornam vida, se não permanecem dentro da fidelidade a nós mesmos, se não nos fazemos hóspedes no seu mistério, se não sabemos esperar, se os consideramos uma conquista em vez de um encontro. A espera não é passividade, é fermento.
Não é fácil compreender se é desejo que gera em nós inquietude, ou é a inquietude que gera o desejo. Somos doentes de infinito, andamos ansiosos não pelo pouco, mas pelas demasiadas ofertas a que não podemos chegar. Deixámos adormecer a inteligência, essa capacidade de ler dentro de nós e dentro dos acontecimentos, de transformar as paixões e os sonhos em ações. Há uma desproporção entre aquilo que se pode e aquilo que se deseja. Ainda que permaneçam vivos os sonhos, as emoções, a ternura, estamos cansados de viver uma realidade esmagada que não abraça o sonho. Os sonhos e as paixões requerem progressividade e paciência, criatividade e coragem para se tornarem vida.
Zaqueu, no meio da multidão, deseja ver Jesus, um desejo que não sucumbe perante a sua baixa estatura. Torna-se criativo e vê que entre ele e Jesus está uma árvore de sicómoro, que em hebraico quer dizer “árvore da loucura e da coragem”; trepa-a e consegue vê-lo. São a coragem e a criatividade que impelem o sonho a tornar-se realidade. O criativo não é o fantasioso, mas é aquele que, como Zaqueu, é capaz de se sintonizar com a realidade, e sabe criar harmonia entre o mundo em que vive e o mundo que vive nele. Os sonhos precisam de paciência e de um passo de cada vez sem ter de recomeçar sempre do início; precisam de tempo para fazer amadurecer em nós aquilo que ainda não foi resolvido no coração.
Luigi Verdi in “Il domani avrà i tuoi occhi”
Quinta-feira
Gratidão
A gratidão é aquilo que permite que haja encontros. Nós sabemos que cada um de nós é fruto dos encontros que teve. E há encontros que nos marcaram, que abriram portas no nosso coração, que nos tornaram maiores do que nós somos, que nos explicaram o mundo de outra forma.
Só há grandes encontros quando há gratidão por aquilo que o outro é. E precisamos aprender a ganhar consciência, a agradecer aquilo que o outro é, a agradecer a sua presença, agradecer o seu esforço, agradecer o estar aqui, o estar ao meu lado, agradecer a abertura do seu coração. Porque essa gratidão é a garantia de um encontro em Deus, de um encontro maior, de um encontro em que eu sou sensível àquilo que de maravilhoso pode acontecer na troca, pode acontecer na relação. Se eu me deixo ficar no piloto automático nos contactos mecânicos, perco o espanto, perco a abertura de olhos para aquilo que o outro é. É como se fizéssemos parte da mobília da casa uns dos outros e verdadeiramente já não nos víssemos.
Esta gratidão e a manifestação da nossa gratidão é fundamental, porque coloca-nos no lugar certo da vida. Temos que transferir esta gratidão e este louvor das nossas relações interpessoais para a nossa relação com Deus. Precisamos que a nossa oração se torne de facto uma oração de louvor, de louvor. Em vez de ser apenas uma oração de súplica, em vez de ser apenas uma oração de intercessão, ser uma oração de louvor, uma oração de gratidão. Louvor por aquilo de belo, de bom, de maravilhoso que Deus é, Deus faz, Deus cria na história. A grande oração de Maria, o seu Magnificat, não é outra coisa se não um canto de louvor. A minha alma cresce para louvar o Senhor porque Ele fez tanto, Ele é tanto no mundo.
No fundo, trata-se disso, a nossa alma tem de crescer, não podemos ficar mirrados por dentro, presos. Mas temos de libertar, libertar o nosso coração, libertar a nossa espiritualidade, libertar a nossa relação uns com os outros. Mas, a partir destas atitudes que podem parecer pequenas, que podem parecer coisas de nada, insignificantes, mas no fundo são o lugar onde o essencial da vida, o invisível da vida se decide verdadeiramente.
José Tolentino Mendonça in “Homilia no XXVIII Domingo do Tempo Comum (09.10.16)
Sexta-feira
A sabedoria das árvores
Jesus ama a esperança, não o medo: aprendei da figueira: quando o seu ramo se torna tenro e despontam as folhas, sabei que o verão está próximo. Jesus conduz-nos à escola das plantas, para que as leis do espírito e as leis profundas da realidade coincidam. Cada rebento assegura que a vida vence sobre a morte.
Aprendei da sabedoria das árvores: quando o ramo se torna tenro… No inverno não imaginamos o amolecer do ramo; o seu amaciamento pela linfa que torna a encher os pequenos canais é uma surpresa e um espanto antigo. As coisas mais belas não são para procurar, mas para esperar. Como a primavera. E despontam as folhas, e tu não podes fazer nada; ou talvez sim: contemplar e proteger.
Então compreendereis que o verão está próximo. Na realidade, os botões indicam a primavera, que no entanto, na Palestina, é brevíssima, poucos dias e logo depois é o verão. Assim também vós sabereis que Ele está próximo, está à porta. Deus é próximo, está aqui; belo, vital e novo como a primavera do cosmo.
De um rebento aprendei o futuro de Deus: que está à porta e bate; vem não como um dedo apontado, mas como um abraço, um germinar humilde de vida. Então sinto-me como uma barca, que deixou de estar ansiosa pela rota a seguir, porque sobre ela sopra um Vento de Céu, e a lâmpada da Palavra está acesa à proa. Passam o Sol e a Lua, que são o relógio do universo, esfarela-se a Terra, mas não as minhas palavras, são um Sol que nunca declinará dos horizontes da História, do coração do ser humano. Os profetas e poetas, os enamorados e os bons são eles a parábola, o rebento, ramo de figueira ou de amendoeira do mundo salvado. São-no aqui e agora, sobre a Terra inteira e dentro da minha própria casa, como rebentos bons, embebidos de Céu, impregnados de Deus. Quem me quer bem é lâmpada para os meus passos.
Olhai bem, uma gota de luz está intrincada em cada ruga, um grama de primavera e de futuro está enraizada em cada rosto. A fé repete-me que Deus está à porta, está próximo, está aqui, está neles. «Cada um é um próprio momento de Deus» (D. M. Turoldo).
Ermes Ronchi in “Avvenire”
Sábado
Deus tem plano B?
Que sucede quando Deus nos diz para irmos por um lado e nós desobedecemos e vamos por outro? Deus tem “planos B”? Ou seja: quando falhamos o caminho, quando seguimos por uma direção errada, será que Ele tem “planos B” a partir do ponto (errado) em que agora nos encontramos (por culpa nossa)? Recalcula a rota? Tomo como adquirido que Deus primeiro tenta sempre que façamos inversão de marcha. Mas nem sempre é fácil… Às vezes já não dá, a asneira já fez trajeto. Será que então aí Deus tem uma nova rota? Creio que somos hoje ingenuamente otimistas em relação a nós mesmos e em relação à vida. Achamos que está sempre tudo em aberto para ser revisto e recomeçado, quaisquer que sejam as opções que fizemos. Achamos que podemos sempre voltar ao ponto de partida e ser o que éramos antes da viagem. Acho esta ideia muito ingénua. As nossas opções entretanto fizeram história, criaram ligações, responsabilidades, tiveram as suas consequências, abriram ou fecharam possibilidades para o nosso futuro. Deixaram-nos em lugares diferentes dos lugares em que estávamos antes. Piores ou melhores; mas certamente diferentes.
E, ao longo do caminho, nós próprios ficámos pessoas diferentes devido às atitudes que fomos alimentando: pessoas mais livres ou mais mesquinhas, mais altruístas ou egocêntricas, pessoas com fé ou à defesa, generosas ou calculistas, pessoas mais humanas ou mais desumanas… As nossas decisões não decidem só a estrada que fazemos; decidem também as pessoas em que nos tornamos.
Creio firmemente que a vontade de Deus coincide sempre com o nosso maior bem e que procurar fazer o que Lhe agrada é sempre a opção mais inteligente quando temos de tomar decisões. Digo “procurar” e não “fazer” porque muitas vezes nem sabemos bem o que é o melhor e por onde passa a vontade de Deus. Nem Deus nos pede que acertemos; pede-nos apenas que o tentemos fazer de todo o coração. Com essa nossa generosidade e boa vontade, Ele fará tudo o resto. E até poderá “escrever direito por linha tortas”, como diz o povo. Vezes sem conta. Ou seja: Deus tem sempre “planos B”. Para Ele, hoje é sempre o primeiro dia das nossas vidas. Mas não escreve por nós a nossa história.
Padre Nuno Tovar de Lemos in pontosj.pt