Sobre prisões

imagesTiago Bettencourt, Visão

Não quero falar sobre religião. Quero falar sobre a solidão de não haver mais nada para além de nós e deste egoísmo escondido que anda a atirar tanta gente para um buraco, buraco esse que visto de fora não deveria ser tão fundo como nos relatam os que lá estão dentro. Há este vazio nas pessoas, esta pergunta esquecida num sítio profundo demais para se poder ver. Há esta era em que não existe tempo para aprofundar seja o que for. Se olharmos, os sinais estão em todo o lado a apontar para a forma como não nos comprometemos e não nos aprofundamos: na casa que não se compra, no trabalho onde nunca estamos contentes, nos divórcios, na cultura “mainstream” oca, nas depressões, na busca tardia por uma espiritualidade imediata… Vive-se uma grande fatia de vida centrada em tudo o que é apenas humano: os estudos, o trabalho, a carreira, a casa, um “parceiro” para morar… até ao dia em que se tem tudo isso. Depois chega o fim de semana, do mês, do ano, e o vazio, que era tão pequenino que nem sequer se reparava, está de repente do tamanho de todo o tempo que se esteve sem olhar para ele. Depois choram, choram nos cantos sem saber porquê. Choram mais do que quando alguém lhes morre. Choram por falta de direção, falta de sentido. São pessoas com emprego, com estabilidade, com condições para serem felizes. Ouço estas histórias e não consigo deixar de pensar no outro lado deste manto negro que veste em segredo as camadas mais confortáveis da sociedade. Parece que na ausência de problemas de maior importância, na ausência de preocupações que os mantenham acordados à noite, surge este sítio parado no tempo, este sítio sozinho em que perguntam “e agora?”. Imagino o silêncio avassalador. Um silêncio humano, limitado, terreno.

Lembro-me que eu era mais forte, quando tinha fé. A questão é que me lembro de ter mais certezas, de haver uma resposta às perguntas, de não haver silêncio. Só o facto de saber que existia uma qualquer força superior à minha pequenez, à minha ignorância, fazia com que todo o meu ser se sentisse menos pesado, como se constantemente estivesse a andar lado a lado com a própria razão desse andar, e tudo fluía, os problemas eram abraçados em vez de lamentados até à exaustão, porque eram parte do caminho, como se houvesse um plano. Era tudo muito simples, e eu era mais livre. Sinto que esta ideia, que se espalhou pelo mundo intelectual de que a espiritualidade é uma prisão castradora dos nossos instintos, não fez mais do que criar outro tipo de prisão, invisível, silenciosa, ignorante, desorientada. E de repente temos todo um mundo de fugas, feitas de alucinogénios, de cocaína, de retiros que nos oferecem um pacote espiritual de fim de semana, como injeção que vai durar tanto quanto esses dois dias de emoção extrema “instagramada” ao minuto. Há este buraco fundo, há esta ausência de profundidade para o entender e a ausência de armas e tempo para o desvelar. Não sei o que é suposto dizer esta crónica para além de apontar para este vazio, porque à medida que os anos passam ouço mais histórias de gente a chorar sem razão. Sei que ler um bom livro é melhor que passar os olhos por um artigo de net sobre nada, que ouvir um bom disco é melhor que um “shuffle” pelos “hits” da semana, que ver um bom filme é melhor que o “diário da casa dos segredos”, que ir a uma boa exposição é melhor que um dia no “shopping”, e que ter tempo para perceber, a partir do nosso interior, o que existe para lá de nós é melhor que chegarmos ao fim do dia perdidos e acharmos que estamos sozinhos.