
José Tolentino Mendonça, E, Expresso 12.outubro.2019
Este fim de semana muito se vai falar de John Henry Newman (1801-1890). O Papa Francisco canoniza no domingo um dos intelectuais europeus de referência do século XIX e a quem a nossa contemporaneidade deve porventura mais do que ainda reconhece. A sua voz contradistingue-se, com claridade, num período histórico atribulado, mas particularmente rico no plano das ideias e do seu debate: basta dizer que partilhou o século de Comte, de Marx, de John Stuart Mill, de Herbert Spencer, de Nietzsche e, em parte, de Freud. Newman mergulha apaixonadamente na construção cultural do seu tempo, mostrando que o contributo dos crentes se joga também aí, e de forma decisiva. Fá-lo, por exemplo, ajudando a pensar, a partir de dentro, o que é uma universidade, não como fragmentado lugar de saberes especializados mas como laboratório de consciência crítica que ensina a pensar globalmente, com rigor e humildade. Uma universidade, na visão de Newman, não se pode contentar em preparar economistas, engenheiros ou médicos. A sua finalidade prática é, antes de tudo, formar pessoas capazes de elevar o tom de toda a sociedade.
Mas será no campo da hermenêutica da experiência religiosa e na defesa da legitimidade racional do ato de fé que o mestre oxfordiano mais se empenhará. Como ele dirá, “o ato ou processo de fé é certamente um exercício da razão”. E, investindo nesse sentido, constrói um legado impressionante de reflexão sobre o humano e sobre a natureza e modalidades daquilo a que chamamos conhecimento. Quando confrontamos o seu discurso com o do empirismo racionalista que então triunfava, percebemos a sua grandeza, pois cartografa a existência de forma bem mais atenta, original e polifónica. Newman recusava-se a aceitar a redução do homem a máquina de raciocínios, como se a única gramática possível fosse a lógica. Complementa, por isso, o exercício raciocinante com o exercício de relação continuamente operado pelo homem, “um animal que vê, sente, contempla e atua”. Quando saiu na coleção ‘Teofanias’, da Assírio, a belíssima tradução portuguesa que Artur Morão fez do “Ensaio a Favor de Uma Gramática do Assentimento”, lembro-me do interesse que gerou não só entre teólogos mas também em filósofos, em teóricos da literatura, em arquitetos, em juristas. O que o oratoriano, nascido em Londres, demonstra é que um grande livro de teologia é sempre um texto de cultura, capaz de ressoar para lá do seu tempo.
Newman é justamente considerado um dos precursores do Concílio Vaticano II. A sua marca é bem nítida pelo menos em três temáticas-chave. A primeira delas é a da valorização do laicado. Praticamente transcreve-se o pensamento de Newman quando se refere o papel dos fiéis leigos em matéria de fé (Lumen Gentium 12). Outra é a do primado da consciência. Para o autor do célebre manifesto “Carta ao Duque de Norfolk”, a consciência é a capacidade que o homem tem de reconhecer a verdade e ao mesmo tempo o dever de encaminhar-se para ela. É isso que o Concílio Vaticano II assumirá na Gaudium et Spes, recordando que “a consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (n. 16). Uma última mas não menos importante inspiração de Newman é a do ecumenismo. Um testemunho disso é o facto de um poema seu se ter tornado um dos hinos espirituais mais repetidos nas diversas Igrejas cristãs: “Sê tu a conduzir-me, luz gentil/ Sê tu a guiar-me na escuridão que me cerca;/ a noite avança e a minha casa é distante/ Sê tu a conduzir-me, luz gentil.”
Newman foi criado cardeal por expressa vontade do Papa Leão XIII, em 1879, e escolheu como mote do seu escudo cardinalício as palavras “Cor ad Cor loquitur”, “o coração fala ao coração”.