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Como é que é verdade aquilo que confesso ser verdade?

frei Bento Domingues OP, Público 29 Abril 2018

A impertinência da evangelização

1. Encontrei em várias intervenções de Thierry-Dominique Humbrecht (1) e no título de um dos seus livros, A Evangelização Impertinente, a sugestão para esta crónica, ainda que com desvios. O autor referido pretende escrever um guia do cristão nos países pós-modernos. Teve bom acolhimento. Não se conforma com a moleza das expressões da presença cristã em algumas sociedades ocidentais. Não é preciso estar inteiramente de acordo com o seu diagnóstico nem com as suas propostas. É mais importante suscitar um debate do que apresentar soluções para cristãos apressados e preguiçosos.

Th.-D. Humbrecht é um investigador da filosofia medieval e já deu provas da sua acutilância analítica. Não se resigna, porém, a viver na sua torre de marfim do passado, nem se conforma com o silêncio dos católicos nos actuais debates que percorrem a sociedade. O cristão parece intimidado, excluído da cultura, dando a impressão de que não se deixa interrogar pela gravidade do que está a acontecer. Ao julgar irremediável que o país deixe de ser cristão, não se percebe que existe uma estratégia, dita pós-moderna, interessada em libertar-se dessa herança. O niilismo exibido esconde, no entanto, um projecto de poder, por vezes, também, uma nostalgia.

Tendo em conta esse ambiente, que abrange uma grande complexidade, como é que um cristão se pode situar entre a compaixão, a cumplicidade e a contracultura? Perante os cortes na transmissão do que há vivo no passado, o abandono de muitas heranças, a ditadura do relativismo e certo ateísmo católico, muitos cristãos têm a impressão de que o grande navio se tornou numa simples barcarola.

De facto, o próprio cristão cede muitas vezes a essa lógica: escolho o que me apetece e deixo de lado o que não me interessa. Nestas condições, como fazer ouvir o Evangelho? Pela palavra ou pelo exemplo? E onde: na família, na educação, na política na cultura? Entre a laicidade mal compreendida e os vãos apelos ao milagre, o caminho da providência é o que se baseia na nossa coragem pública. O cristão tem algo de insubstituível a dizer aos seus contemporâneos. Não há Igreja sem evangelizadores impertinentes, que ofereçam uma mensagem de esperança para os tempos de relativismo. Para o conseguir é preciso desembaraçar-se de um paradoxal anti-intelectualismo. O cristão deve, pelo contrário, cuidar da sua formação e tornar-se competente sob o ponto de vista intelectual. Por isso, os jovens cristãos devem preferir profissões criativas, em todas as suas expressões, àquelas que acenam apenas com sucesso pessoal no campo financeiro. O filósofo dominicano Th.-D. Humbrecht, professor de várias universidades, inconformado com a incultura do vale tudo e o seu contrário, luta por uma viragem cultural, por um catolicismo competente no campo literário, artístico, filosófico, teológico, espiritual, ético e político.

2. Agrada-me esta vontade de acabar com um catolicismo culturalmente envergonhado e complexado. Detesto, porém, todas as derivas de compensação que vão desaguar no catolicismo fundamentalista, em nome da verdadeira doutrina da Igreja e se esgota na falsa tranquilidade dos catecismo e do Direito Canónico. A fé cristã não se fixa nas formulações dos credos. É uma entrega ao infinito amor de Deus que nenhuma expressão O pode limitar. O místico é aquele que não pode parar. É uma viagem permanente, se apeadeiros, sem estações definitivas, até chegar à plenitude da alegria de Deus.

A fé é um activador da criatividade, não um extintor. Tomás de Aquino insistiu em que uma coisa é recitar os credos da ortodoxia, outra é procurar entender Aquele a quem confiamos. Recitar o Credo sem procurar responder à questão: como é que é verdade aquilo que confesso ser verdade?, posso ser muito ortodoxo mas sou uma cabeça vazia. Também não basta ler os textos e as narrativas do Novo Testamento. A letra mata, só o espírito do texto vivifica. Quando um padre ou um bispo faz uma homilia a repetir a leitura que já escutámos, bem podia ficar calado. É fundamental entrosar as narrativas bíblicas com as experiências actuais da fé, na encruzilhada dos problemas vividos na sociedade.

O Concílio Vaticano II, tão esquecido, lembrou que “é dever da Igreja investigar, a todo o momento, os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de modo adaptado em cada geração às eternas perguntas dos seres humanos acerca do sentido da vida presente e futura e da relação entre ambas. É, por isso, necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as suas esperanças e aspirações, o seu carácter dramática” (2)

A criatividade da fé cristã não se pode manifestar, apenas, nas expressões teológicas e na poesia mística. Pertence-lhe activar e exprimir-se em todas as grandes formas de criatividade humana: literatura, artes plásticas, encenações teatrais cinema, bailado, humor e, sobretudo, música. Dentro e fora da liturgia. Não é preciso nenhum mandamento divino para justificar esta atitude. Como dizia Tomás de Aquino, o bem deve ser praticado porque é bem e o mal devia ser evitado porque é mal.

Não podemos esquecer a impertinência do Evangelho de Jesus Cristo. Se tivesse sido mais acomodado podia ter tido uma carreira brilhante. O diabo do poder de dominação económica, política e religiosa bem o tentou e o Nazareno não tinha o fascínio de João Baptista pela austeridade. Ele gostava da vida. Tinha o defeito de não suportar ver uns à mesa e outros à porta; uns como povo de Deus e outros não se sabe de quem; uns classificados, à partida, como santos e outros como pecadores; uns privilegiados porque eram homens e outras marginalizadas porque eram mulheres. Tinha a impertinência de gostar da vida para todos, desenvolvendo as potencialidade humanas e os talentos, sem discutir se estavam bem ou mal distribuídos. Tinha ainda um outro defeito: destestava a ganância e o carreirismo. Os discípulos que escolheu andavam sempre a perguntar-lhe o que ganhavam na sua companhia e o lugar que lhes estava destinado. Um dia teve de pôr tudo em pratos limpos, mas sem grande sucesso. O Evangelho de Mateus (3), fruto de muita reflexão e de muita experiência pós-pascal, quis deixar, em três parábolas, algo de extraordinário: a importância da lucidez contra o deixar correr, a importância de ninguém se desculpar por não ser um génio, mas não há nenhuma ciência nem nenhuma capacidade de fazer fortuna que não tenha de olhar para o lado e ver os que ninguém cuida.

(1) Thierry-Dominique Humbrecht, O.P., L'évangélisation impertinente. Guide du chrétien au pays des portmodernes, Paris, Paroles et Silence, 2012 (3e édition)

(2) Gaudium et Spes, 4

(3) Mt 25

Dia da Mulher

As mil manipulações de Maria Madalena, in L’Osservatore Romano, 8.3.2018

Historiadora que há décadas estuda a realidade feminina em relação com a tradição cristã, e diretora de “donne chiesa mondo”, o suplemento mensal do jornal do Vaticano, “L’Osservatore Romano”, de que é editora e consultora, Lucetta Scaraffia explica em entrevista à edição mais recente de “Le Monde de la Bible” como ao longo dos séculos a Igreja eliminou pouco a pouco o papel de apóstola de Maria Madalena, sobrepondo-lhe o rosto de pecadora arrependida.

Maria Madalena é mais a pecadora ou a apóstola?

Gostava de começar com uma recordação pessoal. Quando era jovem, em Milão, depois do Maio de 1968, muitas mulheres nos ambientes feministas italianos chamavam as suas filhas de Madalena. Para elas era claramente em antítese de Maria: tratava-se de contrapor à figura da mulher obediente a da dona livre e pecadora. Foi então que comecei a interessar-me por Maria Madalena, que penso ter sido uma das figuras mais manipuladas da história. Da parte quer da Igreja quer das feministas, entre outros.

Porquê este olhar dúplice sobre Maria Madalena?

Maria Madalena é uma figura forte desde os inícios do cristianismo. Mas, numa sociedade patriarcal, que Jesus ressuscitado tenha aparecido em primeiro lugar a uma mulher, confiando-lhe a missão de anunciar aos apóstolos a sua ressurreição – a mais alta missão possível! –, foi um problema para os homens do seu tempo.

Isto traduziu-se de várias formas. Por exemplo, no gnosticismo, a primeira heresia cristã, que tinha grande interesse por Madalena: os gnósticos pensavam que Cristo tinha transmitido um ensinamento secreto, recolhido na “Pìstis sophìa”. Madalena aparece como uma apóstola de pleno direito, que chega a opor-se a Pedro, ao ponto de o vencer depois de se ter tornado num homem, ou melhor, uma espécie de ser andrógino.

Com Maria Madalena coloca-se a pergunta sobre a sexualidade de Jesus, verdadeiro filão de toda uma série de autores que apreciam o escândalo, a começar por Dan Brown…

Se Jesus tivesse tido relações sexuais com mulheres ter-se-ia sabido! Nos Evangelhos ouvem-se as críticas dos fariseus porque comia e bebia juntamente com publicanos e pecadores (cf. Mateus 9, 11), pelo que se pode muito bem imaginar que se tivesse tido uma mulher, saber-se-ia. Todavia não penso que para Ele a ausência de uma mulher exprimisse antes de tudo uma recusa radical da sexualidade. Havia, porém, o risco de uma família hereditária. Se tivesse tido uma criança, a identidade de Filho de Deus seria posta em perigo e isto teria marcado o fim do cristianismo. De resto, são conhecidas as dificuldades, no seio da Igreja primitiva, entre quantos vinham do paganismo e os judeo-cristãos agrupados em torno da família natural de Jesus. Não, realmente, se Jesus tivesse tido filhos, ter-se-ia sabido!

A questão das relações familiares é em todo o caso importante porque o facto de Jesus, após a sua ressurreição, ter escolhido aparecer a Madalena em primeiro lugar, e não à sua mãe, está efetivamente em contraste com as tradições familiares da época. Daí nasceu toda uma série de lendas segundo as quais Jesus teria aparecido antecipadamente e em segredo a Maria e só depois a Madalena; era uma forma de salvaguardar as relações familiares tradicionais. Mas essas narrativas não estão reportadas nos textos canónicos. Quando penso que se os Evangelhos, escritos por homens – e por homens daquele tempo, em que a mulher era considerada como tendo uma dignidade inferior – conservaram a tradição da aparição de Jesus a Madalena em primeiro lugar, é verdadeiramente porque não podiam fazer de outra forma!

Porque é que então se impôs a imagem de Maria Madalena como pecadora?

Começou a assimilar-se a figura de Madalena à de outras duas Marias presentes no Evangelho: a irmã de Marta (cf. Lucas 10, 38-41) e a prostituta que lhe lavou os pés com as suas lágrimas (Lucas 7, 36-50). Maria de Betânia, irmã de Marta, é também irmã de Lázaro, o amigo de Jesus (cf. João 11, 1-45); é, por isso, uma figura quase de família que permite tornar menos perigosa e menos inquietante a sua proximidade a Jesus. Quanto à prostituta, é fácil lançar sobre ela um véu de suspeição e permitir assim a Maria Madalena estar menos em competição com a figura de Maria.

Por outro lado deve sublinhar-se que as tradições do Oriente e do Ocidente sobre este ponto entram em oposição: o Oriente cristão festeja separadamente Maria de Betânia e Maria de Magdala, enquanto que o Ocidente, a partir do século IV, acomunou-a com a prostituta na figura de Maria Madalena. Esta escamoteação transformou Maria Madalena em mulher arrependida que chora pelos seus pecados e por isso deixa de ser a missionária encarregada de anunciar a notícia da ressurreição.

Porquê esta escamoteação?

Escolher a imagem da pecadora arrependida permite ocultar a ligação de Jesus às mulheres, de quem, ao contrário, Ele gostava muito. Mesmo aquelas com uma vida “irregular” são sempre muito importantes em todos os Evangelhos. Jesus vê que as mulheres amam mais que os homens, que compreendem melhor do que os homens o amor. Assim é a samaritana, a primeira pessoa à qual anuncia que é o Messias (cf. João 4, 26). Mesmo se ela teve uma vida desregrada – o Evangelho refere-nos que teve cinco maridos e aquele que agora tem não o é, diz-lhe Jesus –, é uma mulher que procura amor e para Jesus esta é a coisa mais importante.

Dizer que Madalena é uma prostituta é portanto uma maneira de a diminuir, mas mostra também a proximidade de Jesus a estas mulheres à procura de amor, mulheres que Ele muito amou que são muitas vezes apagadas no Evangelho, significando o lugar que Jesus lhes dava. De resto, não se pode excluir que Jesus tenha tido outros relacionamentos com mulheres não reportados pelos Evangelhos. Mas teria sido realmente impossível esconder Maria Madalena a partir do momento em que foi uma figura central na vida de Jesus. Assim, transformá-la em pecadora permitiu eliminar o seu papel de apóstola durante dois mil anos e bloquear o papel das mulheres na Igreja.

Esta eliminação foi completa na Igreja?

Sim. À exceção, talvez, da França, onde uma tradição popular se apropriou da figura de Maria Madalena, confundindo-a, possivelmente, com a figura de Maria Egiziaca, a santa da Palestina que vive na luxúria antes de se retirar para uma gruta no deserto. Uma tradição refere que Maria Madalena teria chegado às costas da Gália e começado a evangelizá-la, antes de terminar os seus dias numa gruta no deserto, em Sainte-Baume. Fazer de Maria Madalena a evangelizadora da Gália permitia à Igreja em França reivindicar uma origem apostólica a par com Roma (Pedro), Bizâncio (André) ou Espanha (Tiago), ainda que aqui se trate de uma mulher. É assim que a tradição popular a acolheu como apóstola, enquanto a Igreja a constrangia ao seu papel de pecadora.

Na prática, como se expressou esse papel?

Um exemplo é o dos numerosos institutos criados ao longo da história e destinados às pecadoras, às prostitutas, às jovens que tinham “pecado” e que, mais ou menos obrigadas, escolhiam arrepender-se numa vida de género religioso. Quase todas essas casas, que as convertiam numa boa vida de família, estavam sob a proteção de Maria Madalena, incluindo aquelas para as viúvas, por seu lado suspeitas porque conheciam o sexo. As virgens, ao contrário, iam para outras instituições, a maior parte sob a proteção de Maria.

Vem à mente o filme “Madalena” [2001] sobre a terrível condição das jovens nesses institutos do século XX na Irlanda…

Felizmente não havia só esses. Havia também muitos conventos em que as coisas funcionavam bem. Em Itália, em muitos deles, ensinava-se um ofício às mulheres ou até se lhes dava um dote para que se casassem. Só havia a preocupação de lhes oferecer uma vida familiar honesta e regular.

Outro exemplo do desenvolvimento da figura de Maria Madalena como pecadora está na pintura. Ainda que a maior parte das modelos dos pintores eram prostitutas, em Roma era proibido representá-las. Não se podia de facto admitir que houvesse prostitutas na cidade do papa! Pintavam-se por isso prostitutas “venezianas” ou Maria Madalena como pecadora arrependida. Era igualmente uma maneira para os pintores fazerem passar conteúdos eróticos, com amplos decotes e copas vermelhas, sinal da paixão sexual.

Porque é que a figura de Maria Madalena como apóstola voltou ao primeiro plano?

Nestes últimos anos muitas mulheres exegetas releram os Evangelhos e começaram a protestar. O seu trabalho permitiu compreender melhor as relações de Jesus com as mulheres, ver melhor o lugar dos vários personagens que compõem a figura atual de Maria Madalena e redescobrir o seu papel de apóstola. Restabelecer a verdade.

Mas o mesmo vale para Maria: fez-se dela um exemplo de obediência de humildade que todas as mulheres deviam seguir. Mas Maria é antes de tudo um exemplo de coragem! Esta jovem aceita ficar grávida ainda antes de se casar, mesmo sabendo que arriscava a lapidação; precisou de uma coragem incrível. Mas, durante séculos, ninguém sublinhou este aspeto.

A 10 de junho de 2016 o Vaticano elevou a memória litúrgica de Santa Maria Madalena a festa litúrgica e publicou um novo prefácio [da oração eucarística] para ela que é agora «a apóstola dos apóstolos». Porque é que esta decisão é importante?

Trata-se de uma decisão do papa Francisco. Que tenha dado a Maria Madalena o título de «apóstola dos apóstolos» é fundamental! Para mim, colocar Madalena no mesmo plano dos apóstolos é ainda mais importante que ordenar mulheres sacerdotes, porque atribui às mulheres uma igualdade ainda mais profunda no âmbito da evangelização. Retenho que é uma decisão tão importante como a de Paulo VI que, em 1970, atribuiu a Teresa de Ávila e Catarina de Sena o título de doutoras da Igreja. Creio que é uma decisão litúrgica e teológica que não será possível eliminar e a partir da qual se poderá chegar à plena igualdade em cada âmbito.

 Tradução: Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura 

As leigas não existem só para obedecer

Lucetta Scaraffia, consultora editorial do L’Osservatore Romano, in L’Osservatore Romano

Quando se fala de colaboração com os leigos, na vida da Igreja, fala-se sobretudo de mulheres. São elas, com efeito, em grandíssima maioria, a desenvolver tarefas de ajuda e assistência ao clero, dos trabalhos domésticos ao catecismo. E ainda para mais é só como leigas que as mulheres se relacionam com a instituição eclesiástica. Nunca tinha pensado nisso, mas quando, no fim do Sínodo sobre a família, me pediram para tomar lugar na fotografia de recordação com o papa – os leigos no Sínodo –, vi junto a mim as poucas religiosas convidadas. Perante o meu espanto, recordaram-me que elas também são leigas.

As mulheres, portanto, em todo o papel de colaboração com a instituição eclesiástica, são leigas, e precisamente por isso representam o coração do problema. Ou seja, é a relação com elas que define – tirando poucas exceções – a relação entre o clero e os leigos. É precisamente daqui que deriva a fragilidade da sua presença na comunidade católica? Este é um problema que não é desacertado colocar-se: só enfrentando a questão da colaboração com as mulheres, efetivamente, é possível sair do modelo paternalista, e quase sempre sufocante, ainda prevalecente na Igreja.

Os leigos são bem vistos, realmente, se se ocupam de voluntariado, talvez até de funções de administração, mas muito menos se pretendem intervir em âmbitos considerados “altos”, como a transmissão da fé ou a preparação de homilias, a organização de encontros não apenas culturais, mas também aprofundamentos de género espiritual, discussões sobre temas teológicos que não sejam controlados pelo clero. E isto acontece, inclusive, em assuntos que requerem a ajuda de peritos leigos, como a bioética. Em geral, tende-se a extinguir toda a possibilidade de discussão e de confronto, e portanto de pensamento, a favor de decisões já tomadas.

Neste contexto, não é de espantar que sejam quase só as mulheres – mas não por muito tempo, porque não se vê uma substituição dos voluntários atuais – a aceitar uma relação tão desigual, sem a possibilidade de procurar alternativas. Em muitos ambientes católicos tem-se a sensação de que já ficam contentes por terem sido promovidas de domésticas a professoras, mas esta condição está para acabar: as jovens não têm qualquer intenção de desenvolver colaborações tão pouco apreciadas, de trabalhar para uma comunidade que não parece interessada em escutá-las, mas só em utilizá-las como executantes obedientes. Não é por acaso que estão a diminuir tão dramaticamente as vocações religiosas femininas, em particular as de vida ativa.

Como farão os sacerdotes sem estas preciosas ajudantes? É uma pergunta que nos devemos colocar, antes que a situação se precipite. Até porque, numa comunidade paroquial, a voz das mulheres pode levar um contributo essencial para dar calor às relações humanas, para fazer compreender ao clero o que acontece no exterior de um mundo que, tendencialmente, é autorreferencial, para imaginar novas iniciativas e para refletir sobre temas como a família, a sexualidade, os jovens.

Ouvindo as homilias, tem-se a certeza de que os sacerdotes ignoram os livros, muitos e muito interessantes, escritos por mulheres nos últimos anos: em grande parte livros de exegese com perspetivas novas, que contribuem para tornar vivo o comentário dos Evangelhos. As leigas – que representam o núcleo central dos leigos – não existem só para obedecer. E é bom darmo-nos conta disso.

 tradução: Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura

Um coach chamado Inácio

Laurinda Alves, Observador 1.agosto.2017

William James, médico e filósofo norte americano, professor de fisiologia, anatomia e filosofia em Harvard, e um dos fundadores da psicologia moderna disse que poucas pessoas utilizam mais de 10% de todo o seu potencial ao longo da vida. William James, ligado ao pragmatismo e considerado o ‘pai da psicologia americana’, morreu em 1910 depois de ter sido muito confrontado e desafiado em vida, mas continua a ser citado e dado como referência. É interessante voltar a esta sua teoria pois ela aplica-se a um potencial de largo espectro: competências intelectuais, físicas, artísticas e até religiosas, pois toda a experiência humana tem uma dimensão espiritual.

Da maneira como nos relacionamos connosco próprios e uns com os outros, à forma como integramos e sistematizamos os conhecimentos de todas as naturezas e áreas do saber, aparentemente continuamos a funcionar muito aquém das nossas capacidades. Teoricamente temos dons e talentos que podem permanecer ocultos, por desvendar, ao longo de toda a nossa existência. De acordo com William James, isso também se deve a uma ‘psico-patologia da média’, uma espécie de doença da ‘normalidade’ que nos leva a ficarmos facilmente satisfeitos com a mediania, ou com tudo aquilo que nos soe a padrão ou estatística. Na sua óptica aceitamos mais naturalmente o que nos parece ‘normal’ do que aquilo que exige outros recursos que habitualmente não usamos e nem sempre identificamos em nós.

Claro que tudo isto é discutível palavra por palavra e linha por linha, mas é interessante como ponto de partida para focar no grande salto para fora da normalidade que todas as pessoas de génio e com rasgo deram, dão e continuarão a dar ao longo dos séculos. Há 500 anos ninguém falava em escuta activa e, muito menos, em exercícios espirituais ou no discernimento do dia a dia, para dar três grandes exemplos existenciais-espirituais. A normalidade ditava caminhos mais previsíveis e porventura mais condicionados, mas graças a pessoas que escaparam aos cânones, esta terminologia vingou. Mais importante do que ter vingado, é terem existido pessoas capazes de cunhar novas linguagens que nos continuam a interpelar muitos séculos depois.

Inácio de Loyola foi uma destas pessoas. Muito antes de ter sido considerado santo, o basco vaidoso e galante, o cavaleiro sedutor e conquistador, revelou uma capacidade invulgar de ser e fazer diferente. Tão vaidoso era, que ao ver-se defeituoso de uma perna após um ferimento grave no campo da Batalha de Pamplona, em 1521, exigiu que lhe voltassem a partir o osso a sangue-frio para que ele pudesse colar sem defeito. Nessa altura, a sua personalidade já se destacava claramente por ser diferente da mediania, mas ainda se construia a partir de um código de valores cavalheirescos. Só mais tarde, depois da sua conversão no quarto onde convalescia dessa dolorosa operação, e ao longo de toda a sua peregrinação pela vida, é que Inácio haveria de revelar a sua capacidade de usar e estimular muitos outros a usarem muito mais do que 10% do seu potencial, por assim dizer.

Há 500 anos existiam mestres e professores, mas o conceito de coach era absolutamente desconhecido. Curiosamente, Inácio de Loyola foi ao mesmo tempo um grande mestre, um extraordinário professor e um fabuloso coach. Ensinou a ouvir, ouvir, ouvir sem a tentação de dar conselhos, pistas infalíveis, ou fórmulas definitivas. O seu método sempre foi o de ajudar a descobrir caminhos e a desocultar dons e talentos para que cada um pudesse encontrar em si mesmo a capacidade de escutar. De se ouvir a si, de escutar os outros e de sentir a acção do espírito.

Inácio de Loyola apontou para caminhos de liberdade que começavam sempre pela liberdade interior que permite sermos quem somos, independentemente da mediania, sem tentações estatísticas e sem medo de não corresponder às expectativas dos outros. Mais, sem outras pressões para além daquelas que são ditadas pela consciência. Uma consciência formada para aspirar ao maior bem, ao lendário ‘mais e melhor’ que acabou por se converter no seu lema de vida. O “magis” que ainda hoje inspira legiões de homens e mulheres apostados em fazer bem o Bem.

Inácio foi um buscador incansável que ajudou e continua a ajudar os mais racionais e, porventura mais cépticos, a encontrarem caminhos de evolução pessoal e elevação espiritual. Como? Dando critérios de discernimento e ensinando uma atenção especial às ‘moções interiores’, atribuindo nomes e conferindo sentido ao que sentimos. Desolação e consolação são conceitos inacianos, de certa forma inaugurados por ele, na medida em que nos ensinou a perceber o que nos desola e nos consola, independentemente de serem alegrias ou tristezas. Inácio de Loyola compreendeu muito cedo a complexidade psicológica de cada ser humano e soube sempre respeitar a identidade de cada um, dando ferramentas de conhecimento próprio e de Deus.

Tal como os melhores coaches da actualidade, Inácio ajudou-nos a separar águas e a perceber que a consolação e a desolação não são ditadas por circunstâncias externas e, muito menos, dependem de bens absolutos como a riqueza ou a saúde, o reconhecimento dos outros, o prestígio ou o poder. Muito pelo contrário, podemos estar a atravessar grandes desertos ou a sobreviver em meio de tempestades mantendo o espírito consolado pela simples razão de sabermos dar sentido àquilo que nos acontece, por termos a certeza de não estarmos sozinhos e por sabermos que há sempre luz depois da escuridão.

Os budistas falam da impermanência, mas Inácio falava de Deus e traduzia por palavras simples e concretas os ensinamentos de Jesus. De tal maneira foi real e concreto que contagiou primeiro um pequeno grupo de amigos, depois um círculo alargado de companheiros que, mais tarde, se transformaram na Companhia de Jesus, hoje em dia a ordem religiosa masculina mais numerosa na Igreja Católica.

Quinhentos anos depois, num tempo em que Deus continua a ser uma palavra difícil e muitos crentes são perseguidos e aniquilados, Inácio de Loyola continua muito à frente do tempo inspirando leigos e religiosos num caminho de descoberta de si mesmos em relação com os outros, com o mundo à sua volta e com tudo aquilo que os transcende.

Milhares e milhares de crentes atestam a vitalidade do pensamento e acção do fundador da Companhia de Jesus ao celebrarem o dia de Santo Inácio, enchendo igrejas por todo o mundo. Esta segunda-feira a igreja de São Roque em Lisboa – a primeira Igreja de jesuítas em Portugal e uma das primeiras no mundo – estava a transbordar de gente apostada em tentar fazer mais e melhor, precisando certamente de usar mais do que os lendários 10% do seu potencial espiritual e relacional.

“Fátima”

Daniel Oliveira, Expresso Diário, 4.maio.2017

Um dia que os historiadores queiram compreender os vários países de que somos feitos deverão, entre muitas coisas, ver os filmes de João Canijo. Depois de “Sangue do meu Sangue”, “Fátima” consegue continuar a viajar pelas periferias do Web Summit e das startups com que nos enganamos para nos integrarmos numa ilusão de modernidade sem povo nem cultura. Em “Fátima”, como em quase tudo o que Canijo faz, não há nem o romantismo do intelectual urbano enfadado, nem o desrespeito anedótico do “kitsch”. Apenas e só a esmagadora honestidade de mergulhar na vida das pessoas sem outra vontade que não seja a de a ver e compreender. Na realidade, o filme oferece-nos, como ficção, uma aproximação muito mais rigorosa à realidade do que qualquer reportagem que alguma vez tenha lido sobre as peregrinações a Fátima. E isto resulta da forma como Canijo e os atores com que trabalha preparam os filmes. E, claro, do talento esmagador de Rita Blanco, Anabela Moreira e aquelas 11 mulheres.

Não sei se “Fátima” é um filme sobre mulheres ou sobre o arreigado catolicismo nacional. Talvez seja sobre as duas coisas, porque as duas se confundem totalmente, como a relevância primeira do culto mariano comprova – para a fé popular da maioria dos católicos Nossa Senhora é quase mais importante do que Jesus. O filme é seguramente sobre Portugal.

Continuando tão ateu como sempre fui, há poucas coisas no meu olhar sobre o mundo e sobre Portugal que tenham mudado tanto, desde a minha juventude até hoje, como a minha relação com a religião. O que, curiosamente, contraria o meu percurso político da esquerda comunista – que, graças à sua implantação popular sempre abordou com muita cautela o fenómeno religioso – para uma esquerda mais libertária. Da irritação racionalista contra as superstições e a alienação passei para uma tolerância quase solidária com a resiliência da fé comunitária à selvajaria individualista e aculturada dos nossos tempos. Poderá dizer-se que fiquei mais conservador, mas prefiro pensar que fui ganhando uma maior compreensão da natureza humana – os conservadores dirão, claro está, que é a mesma coisa. A evolução não é apenas ou especialmente ideológica, é existencial. Uma coisa que, infelizmente, nunca se pode passar para as próximas gerações. O fascínio pelo novo é sempre mais forte para quem quer, com toda a legitimidade, mudar o mundo dos pés à cabeça. Atirando fora o bebé com a água do banho, como também é inevitável. E o bebé é bem visível em “Fátima”: o sentimento de comunidade, com todo o seu asfixiante controlo social (também lá está), mas a sua comovente e empolgante experiência de elevação.

“Fátima” também é sobre sacrifício. Sobre o sacrifício das vidas normais e como é em mais sacrifício que encontram a sua libertação. Como se a liberdade de vidas sacrificadas por condições impostas por outros só se pudesse conquistar no sacrifício que nos impomos a nós próprios. E como se esse sacrifício, que facilita a experiência mística e libertadora, fosse condições para nos compreendermos como seres humanos. Estando seguramente entre o minúsculo grupo de portugueses que passou a sua infância e juventude ao lado de qualquer vivência religiosa, encontrei este elogio do sacrifício de forma muito evidente na ética comunista. Sem nunca ter experimentado nenhuma, o sentido das peregrinações a
Fátima não me é estranho.

Também sou dos que acreditam que o sacrifício autoimposto nos liberta do sofrimento que nos impõem. E que esse sacrifício, com um objetivo final – o Santuário de Fátima, uma sociedade melhor ou qualquer utopia –, só ajuda a construir qualquer coisa de real se for feito em grupo. Essa coisa real é o sentido de pertença que hoje merece escárnio da cultura do individualismo egomaníaco. E é por isso mesmo que sou incapaz de olhar para as novas igrejas de “autoajuda”, evangélicas, que prometem a solução para os problemas individuais como quem vende champô, como olho para as grandes religiões, construídas por camadas de tempo e de símbolos. Encontramos um sentido pragmático da fé tanto na IURD como nas promessas que levam muitos peregrinos a Fátima. Mas o que uma resolve em troca de sacrifício a outras resolvem pedindo apenas dinheiro, o que numa se dirige a uma tradição comunitária, muito presente no mundo rural, outras dirigem-se à solidão suburbana. E é por isso mesmo que a coerência católica condena o capitalismo enquanto essas novas seitas o representam na perfeição.

Muitos dos católicos que conheço não reconhecem nos supostos milagres de Fátima um elemento relevante na sua fé. Tenho, como muitos, convicções sobre a origem do fenómeno de Fátima, que começou por ser popular antes de ser institucional e que acabou por ter, depois da revolução Russa e do anticlericalismo da 1ª República, funções políticas muitíssimo claras. Mas estes fenómenos, como todas as tradições culturais que perduram, são apropriados de formas menos literais. E é por isso que é possível, como em “Fátima”, que os peregrinos cantem, no meio de músicas sobre a terra sem igual que é Vinhais e a roupa de Jesus lavada do Rio Jordão, a “Grândola Vila Morena”, também ela transformada em tradição popular sem referente claro. Porque um povo é muitas coisas e não se divide de forma simples entre crentes e não crentes, conservadores e progressistas, provincianos e cosmopolitas. E é difícil compreender este nosso povo sem compreender o culto mariano, a função libertadora do sacrifício e a experiência coletiva da fé. É difícil compreender este povo sem compreender o que é uma peregrinação a Fátima, retratada com a comovente e habitual honestidade de João Canijo.

Jovens

Daniel Sampaio, entrevista de Joana Pereira Bastos, Expresso Diário 10.abril.2017

Os estragos causados pelos jovens portugueses num Hotel em Torremolinos refletem uma crise de valores em casa e na escola ou são apenas o resultado previsível de uma viagem que junta no mesmo espaço 1000 adolescentes, com muito álcool à mistura?

As regras não foram bem definidas à partida e o resultado era completamente previsível. Quando se junta um grande número de jovens, o regime nunca deveria ser de bar aberto, porque isso evidentemente leva a um consumo exagerado de álcool. Isto são fenómenos de grupo que vêm acontecendo há muitos anos, em vários sítios.

Todos os anos há relatos de problemas neste tipo de viagens. Faz sentido continuar a promover estes programas?

Não podemos impedir que os jovens se organizem para ir, até porque muitos deles já são maiores de idade. Mas pelo menos as viagens que envolvem jovens abaixo dos 18 anos devem ter algumas limitações em termos de organização. Deve-se limitar o consumo de álcool e ter regras muito bem definidas sobre o que podem ou não fazer. Essas regras não podem ser só programadas pelo agente de viagens e pelo hotel. Têm de ser discutidas com os próprios adolescentes, no dia da chegada. Os proprietários dos hotéis devem reunir-se com eles e definir as horas em que podem consumir álcool, o que é que se pode passar nos quartos, tanto quanto é possível prever, etc. Estabelecer este tipo de regras não vai fazer ultrapassar em definitivo os problemas, mas pode minorar, tanto quanto possível, as consequências desta situação.

O que é que os pais destes jovens lhes devem dizer?

É evidente que estes comportamentos devem ser fortemente censurados. Não há qualquer justificação, mesmo sob o efeito do álcool, para que os jovens tenham danificado o material e causado estragos no hotel. Se os pais tiverem autoridade para os castigar, é bom que o façam. O problema é que, muito provavelmente, os pais de quase todos eles não têm autoridade porque não a conquistaram durante a adolescência, o que faz com que agora tenham muito pouca margem de manobra para poderem impor um castigo. Nós assistimos claramente a um défice de autoridade dos pais. Há uma cultura de lazer e de diversão ao máximo por parte dos adolescentes e os pais têm muita dificuldade de impor limites.

Daquilo que tem visto, acha que tem havido uma certa desculpabilização destes jovens por parte dos pais?

Completamente e isso faz-me imensa confusão. Tem havido uma desresponsabilização dos jovens, atribuindo-se culpas ao hotel ou ao agente de viagens, o que é completamente errado do ponto de vista educativo. Primeiro os pais e depois a sociedade devem responsabilizar os adolescentes pelos seus atos em Torremolinos.

Se fosse pai de um destes adolescentes e o seu filho chegasse a casa a dizer que não tinha feito nada, que tinham sido outros a fazer, o que lhe diria?

Eu nunca aceito esse tipo de argumentação. Num grupo todos somos responsáveis. É evidente que há sempre forças positivas e forças negativas. Nós temos que apelar para as forças positivas, mas devemos censurar o comportamento do grupo. Eu penso que não se deve sequer procurar ver quem foi o mais ativo e quem é que bebeu mais. É preciso é ver o que é que se passou com as forças positivas, que não conseguiram controlar o processo.

Que tipo de castigos acha que se deveriam aplicar?

O castigo só se pode aplicar se os pais o conseguirem levar a cabo. É muito importante passar essa mensagem porque há muitos castigos que os pais enunciam mas que depois não conseguem fazer cumprir, o que ainda é pior. Para mim, fazia todo o sentido que no próximo fim de semana estes jovens tivessem de ficar em casa e não pudessem sair à noite. O problema é que em muitas famílias com que eu lido todos os dias esses castigos são enunciados e depois o adolescente abre a porta e vai-se embora e volta às horas que quiser, porque a família perdeu autoridade sobre o adolescente. Os jovens hoje em dia têm muito poucos limites; desde que tenham boas notas os pais deixam fazer tudo.

Mas faz parte da adolescência uma certa transgressão e um quebrar de regras. Onde se deve traçar a fronteira?

Claro que faz parte, mas com limites. As fronteiras têm a ver com a liberdade dos outros. É perfeitamente admissível que possam fazer algum barulho, que possam beber um pouco a mais ou ter uma aventura sexual. Tudo isso está perfeitamente dentro do que é habitual nos grupos juvenis. Mas obviamente não pode ser permitido que destruam material e que façam roubos, como por vezes fazem.

Dantes as viagens de finalistas ocorriam no final da faculdade, depois passaram a realizar-se também no final do ensino secundário e agora até já se organizam no 4º ano. Faz sentido?

Para jovens tão novos acho que não. Para mim pode fazer algum sentido na adolescência, a partir dos 15 anos, no 9º ano, quando se muda de escola. Mas já se organizam também no 4º e no 6º ano de escolaridade, o que não faz sentido. É um excessivo protagonismo da liberdade juvenil, que acho que não é bom.

Ter ADN de índio

Luís Pedro Nunes, E, Expresso, 11.2.2016

Saber a ancestralidade pode dar resultados bizarros

Umas três semanas após ter esfregado vigorosamente a minha bochecha interna com uma zaragatoa no remanso do meu lar e a ter enviado para uma empresa de testes genéticos, eis que o carteiro me entrega um pacote enorme com os resultados. Ia finamente saber tudo sobre os meus antepassados. Contara a uns amigos e as apostas andavam entre o “mouro” com “romani” e “personagem de bandido que faz o Joaquim de Almeida em filmes americanos” com pitadas de europeu. Nada que me preocupasse. Tudo a bem de uma crónica, obviamente. Abri o pacote e saiu um diploma enorme, já devidamente emoldurado, certificando que eu, à presente data (31 janeiro de 2017), tinha realizado um teste de ADN para determinar a minha ancestralidade genética. Resultados biogeográficos ancestrais: Africana (0%). Leste asiático (0%). Europeia (85%). Américo Indígena (15%), bem acima dos 10 por cento de intervalo de confiança. Índio? Americano? Pocahontas? Touro Sentado? Moi?

Os resultados trazem um manual de interpretação dos resultados dos testes de ancestralidade que convém ler antes de repensar o lugar no mundo. Nele se dá a perceber que um “teste de ancestralidade” é uma avaliação estatística e apresenta estimativas da ascendência biogeográfica, pelo que divide a população do planeta nestes quatros grupos recuando aos movimentos migratórios que começaram há mais de 100 mil anos.

O Europeu, por exemplo, abarca todo o território a que chamamos Europa, mas também o Médio Oriente e o Sul da Ásia. África é África. E Indígena americano? Já lá vamos.

Estes testes existem em Portugal há vários anos. E a empresa, a Código ADN, dedica-se mais a fazer testes de paternidade caseiros por pouco mais de 200 euros com 99% de probabilidade de certeza. Se bem que em Portugal seja o Instituto de Medicina Legal a efetuar todos os testes para efeitos jurídicos, esta empresa fornece testes para quem queira tirar dúvidas. Muitas vezes o pai. E outras o filho. Efetuam também um teste pré-natal não invasivo com a colheita do sangue da mãe, que é enviado para os EUA.

Chegamos então a estes testes de ancestralidade. Surgem por vezes pessoas que querem saber se um avô ou um qualquer parente esteve no Brasil ou em África a pintar a manta. E se fez isto ou aquilo. Isso não é possível determinar. Normalmente desistem.

O grande grupo que vem fazer o teste são pessoas que estão dedicadas à sua árvore genealógica e se veem sem grandes opções pela 10ª geração, já com 1024 avós e sem papéis para consultar. Recorrem então à Código ADN.

Houve também o caso de uma empresa que importava bens da China e detetou um cabelo a contaminar um lote. Para saber se tinha tido origem lá ou cá, mandou analisar o ADN do cabelo e a sua ancestralidade, tendo despistado se alguém com ascendentes asiáticos manipulava o produto em Portugal. E o resultado foi que o cabelo era asiático em cerca de 70% de probabilidade.

Voltemos ao índio. É preciso ter em conta que isso da raça é um conceito da treta, não é um termo biológico e não passa de uma construção social. Há 99,9% de ADN que nos une a todos. Esses 0,1% é que definem a etnicidade e há mais variações genéticas dentro das raças do que entre elas.

O que mostra é a grande caminhada da Humanidade. A grande migração Humana, desde o coração de África há 125 mil anos. Para a Ásia e a Europa, até chegarem à América. Criando os referidos quatro grupos de populações fundadoras. Bonito.

Quem for (por exemplo, não sei se existe) 100% europeu, não pense que é um puro cidadão do espaço Schengen. Nada disso. Quer dizer que pertence a um grupo que saiu de África há 50 mi anos para povoar o Crescente Fértil no Médio Oriente, que hoje abrange o Líbano, Síria, Iraque e todo o território entre o Tigre e Eufrates, ramificando-se depois para a Europa e misturando-se com Sul da Ásia (atuais Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão, Uzbequistão).

Deixem-me alertar que até 15% de ADN há pouca influência deste na aparência física. Uma pessoa pode ter 85% de europeia e 15% de africana e ter praticamente nenhumas características físicas vincadas. Racistas de pré-aviso.

Chega-se então ao caso de um fulano que está em Lisboa e é 85% europeu e 15% de índio e está a escrever este texto. Diz o diretor do centro que não me pode dar uma resposta concreta. Há muitos europeus com 10% de sangue Indígena Americano sem nunca terem tido algum ancestral a pisar o Novo Mundo. Isso deve-se ao facto de as populações que migraram para a América serem relativamente recentes e terem deixado marcadores genéticos em Itália, Grécia e Turquia quando subiram para o estreito de Bering, há cerca de 10 mil anos. Com o Império Romano, por exemplo, esses marcadores foram espalhados pela a Europa.

Tenho aqui uma explicação. Esta percentagem (alta) de genes índio ser afinal devido à presença dos romanos na Península Ibérica, por exemplo. Mas estamos a falar de portugueses, conhecidos por engravidar pelo Império fora. Não é de descartar que um filho de um embarcado qualquer tenha regressado como legítimo e seguido a sua vida por cá.

Dizia-me alguém: afinal não ficaste a saber nada. Claro que fiquei. Que pertenço a uma única Humanidade nómada que não tem raças e tem uma história comum, sem fronteiras. O que no momento em que vivemos é fundamental ter em conta e não esquecer.

Os mártires mentais

Miguel Tamen, Observador, 27.1.2017

Não há por estes dias valentão ou -tona que não ache que está a ser politicamente incorrecto e por isso meritório naquilo que diz em público. A quase totalidade das pessoas que fala em público orgulha-se de dizer coisas com que o público não concorda; e o público que as ouve orgulha-se de concordar com quem não concorda com ele.

No público espanta a docilidade de quem vê as suas convicções mais íntimas insultadas; e nos insultantes nunca lhes ocorrer não serem caso isolado. As duas situações fazem sorrir, embora não se perceba muito bem quem tenha melhor motivo para o fazer; desde logo porque ao público nunca acontece imaginar que possa estar a ser insultado; e aos insultantes nunca acontece perceber que a sua valentia oral se tornou um modo de vida muito partilhado.

Os que acham que são incorrectos naquilo que dizem imaginam-se em geral cruzados contra a estupidez humana universal e o preconceito. Estimula-os a fantasia secreta de um estado policial que os persegue com denodo; mas naturalmente o estado tem mais que fazer; e eles no fundo sabem que não têm grande coisa a temer. Dizer a verdade ao poder é uma actividade plácida, como a dos bobos e a das videntes. Não obstante, é assim que a maioria das pessoas se acha membro de uma minoria de mártires mentais e se satisfaz com a ideia de que sempre que abre a boca se está a sacrificar pela maioria no altar das enormidades que diz e pensa.

Não existe porém nenhuma minoria, visto que a ninguém ocorre admitir que o que diz ou pensa irá ser alguma vez examinado por alguém; ou que as suas afirmações serão tratadas como afirmações. A concordância com terceiros mostra-se antes no modo como unanimemente se declara que as convicções de terceiros nos são completamente indiferentes e as nossas opiniões são completamente únicas. Estas unanimidades são conhecidas: existem a respeito da inteligência, da beleza e do conhecimento. A marca infalível do estúpido é achar que é inteligente; e a marca infalível do muito estúpido é achar que faz parte de uma reduzida minoria de pessoas inteligentes.

Surpreende em particular que os alvos da incorrecção dos diversos valentões concordem quase sempre com as enormidades de quem os insulta, e se confessem também mártires mentais ao serviço da incorrecção. Porque naturalmente os alvos também se imaginam minorias; e assim participam na ideia maioritária de que a enormidade é o modo normal de lidar com as outras pessoas. Não será o caso de apreciarem a maneira como as suas convicções são escarnecidas: é antes o caso de no fundo não acharem que as suas convicções podem ser objecto de escárnio. As suas convicções, como as dos insultantes, são uma mera coisa mental; são por isso à prova de enormidades.

Sem perdão?

laurinda-alves-05Laurinda Alves, Observador, 22.11.2016

Gosto muito, muitíssimo, do encontro de Jesus com a mulher adúltera, por tudo o que me diz quem está dentro e fora de cena. Não gostei sempre desta passagem e confesso que durante muitos anos a evitei por me chocar o apedrejamento eminente, o terrível suspense sobre o destino imediato daquela mulher e a sua fragilidade perante um musculado colectivo de juízes de bancada, prontos a atirarem as suas pedras. Horrorizava-me a atitude condenatória, e mesmo sabendo que Jesus estancou a ira dos mortais e travou aqueles homens, custava-me encarar um bando de acusadores que afinal nos representa a todos nós, sempre prontos a julgar e a condenar.

Comecei a conseguir ver melhor o filme dos acontecimentos quando aprendi a ler os Evangelhos fazendo uma composição do lugar. Olhando para a geografia, detendo-me em cada um dos personagens, vendo o espaço em que se movem, ouvindo o que dizem, vendo o que fazem, interpretando os silêncios e meditando as palavras de cada um. Ensinaram-me a rezar desta maneira muitos anos depois da minha catequese. Na infância, e ainda durante a adolescência, o inferno parecia ter mais peso e mais poder que o céu. Deus estava em toda a parte, mas era muito mais para me controlar e acusar, do que para me perdoar.

Lembro-me de ter conversas com os meus irmãos e um deles me dizer que tinha pesadelos com o inferno. Nunca tive, mas percebia que ele os tivesse e sofresse com isso. Afastou-se da Igreja, dessa igreja, quero dizer, por não conseguir suportar um olhar permanentemente delator. Tive a sorte de anos mais tarde encontrar outra Igreja e outros padres, muito mais capazes de revelar a bondade e a misericórdia de Deus. E foi então que, para mim, Ele passou de impiedoso a indulgente. De castigador a amnistiador.

Aos cinquenta e (quase) cinco anos dou-me conta de que, mesmo sem ter a noção disso, a minha vida espiritual adulta se construiu a partir da imagem da mulher que os homens queriam delapidar. Não por ela ou por eles, mas pela entrada de Jesus no cenário. Pela maneira como resolveu um drama aparentemente sem solução. Tranquilo, sem pressas e capaz de ajoelhar para ouvir, Jesus não desatou aos berros. Nem mandou parar tudo para ele próprio fazer justiça. Muito menos travou a violência com mais violência. Simplesmente fez-se presente e notado, para poder ser ouvido. Fez perguntas em vez de dar respostas. E não se deu ao trabalho de dar conselhos por saber que quase nunca são bem vindos.

Ao contrário dos moralistas e justiceiros, Jesus manteve o tom e permaneceu no registo habitual de quem acolhe sem julgar, de quem interroga sem moralizar. E no silêncio escreveu com o dedo na terra. E depois de ter escrito com o dedo na terra, convidou os homens sem pecado ali presentes a atirarem a primeira pedra. E nenhum deles foi capaz de lançar o que tinha na mão. Um por um, todos baixaram os braços e cair e saíram. Em silêncio.

Podemos e devemos perguntar-nos o que pode ter Jesus escrito na terra. Os exegetas estudaram e continuam a estudar este e outros instantes de contornos mais e menos definidos, mas gosto de pensar que a versão que ouvi numa homilia porventura mais iluminada, pode estar proxima da verdade. Fez-me sentido até para perceber como é que aqueles homens, naquela situação, foram ao fundo de si mesmos para encontrarem uma saída radicalmente diferente da que estava escrita na sua lei ou inscrita no coração punitivo de cada um.

Jesus pode ter escrito na terra coisas tão simples como um enunciado de atitudes que habitualmente não catalogamos como pecados. Coisas aparentemente tão insignificantes como a arrogância, a auto-suficiência, a presunção de superioridade, a inveja, a falta de liberdade, a pouca solidariedade, a meia-verdade e por aí adiante. Não terá certamente usado estas palavras, mas o sentido pode ter sido próximo deste. A sua lógica pode ter sido escrever no chão, de forma que todos pudessem ler, que há muito mais pecados que o adultério. Traímos e dividimos mesmo sem nos deitarmos com o homem ou a mulher do outro.

Nunca saberemos exactamente o que ficou escrito no chão, mas sabemos como acaba a narrativa. Saíram todos. E só depois Jesus falou com a mulher e fez mais uma pergunta. Só então disse o que lhe ia no coração. E é deste perdão incondicional que o Papa Francisco falou no encerramento do Ano Santo da Misericórdia. Não para contar uma parábola de há dois mil anos, mas para actualizar a história ao dia e para que cada um se possa continuar a perguntar hoje, amanhã e depois: “e eu, o que é que tenho a ver com isto?”

O Papa Francisco encerrou o Jubileu Extraordinário da Misericórdia com uma Carta Apostólica em que fala de misericórdia e paz, pedindo para continuarmos a viver a misericórdia nas nossas famílias, círculos e comunidades. A exigência do pedido é total, quase brutal, mas o amor sem exigência não é amor.

Quem (não) tem medo da morte?

índicePe. Miguel Almeida, sj, no jornal Observador, 12.11.2016

A morte é o evento que nos acompanha desde que somos gente. É o grande mistério da vida que em todas as épocas da história o ser humano tenta perscrutar e decifrar. Aliás, a morte é um processo que começa com a nossa concepção. Morte e vida coabitam o intrincado tecido biológico, físico, mental, psicológico e espiritual que constitui a identidade de cada pessoa.

O mês de Novembro é, no contexto religioso, mas também culturalmente, dedicado à memória daqueles que nos precederam na história. Seja com a celebração cristã do dia de Todos os Santos, seja com a mesma celebração, mas batizada pelo mundo secular como a festa Halloween tão na moda, iniciamos este mês convidados a olhar para o além. Ou, pelo menos, para os que já não estão no aquém. O segundo dia do mês é dedicado a Todos os Fiéis Defuntos, celebração que a liturgia cristã mantém desde o início do séc. XI.

Como sabemos, Halloween é uma contração da expressão All Hallows’ Eve. Interessante. O mundo, compreensivelmente, tem aversão a pensar na morte. O desconhecido sempre provocou medo e a morte é o salto para esse grande desconhecido acerca do qual a ciência, desoladamente, nada consegue balbuciar. Por isso, tentamos fintar a presença desta constante companheira de viagem, que a cada momento, mais ou menos inesperado da vida, nos vai espreitando, a nós e aos que nos rodeiam. O Halloween é só uma maneira de lidar com essa dimensão. Mas basta ligar qualquer canal de televisão ou de séries para vermos a presença dos dead men walking e afiliados. Anjos e demónios, bruxas, espíritos, almas que vêm do outro mundo ou comunicam connosco, constituem uma panóplia de cosmética da morte que povoa o nosso imaginário.

Cada sociedade tem os seus tabus. E tabus são necessários para vivermos, convivermos e nos organizarmos em sociedade. Mas é bom que tomemos consciência de que o tabu é tabu. E a morte, juntamente com a solidão (que é a expressão vivente da morte), é o grande tabu da nossa sociedade. Ainda me lembro como, quando morreu a minha avó – estava eu na escola primária, por isso já lá vão umas dúzias de anos –, tanta gente se preocupava por eu ir ao seu enterro. Até o diretor da escola simpaticamente se ofereceu para ficar comigo enquanto a minha família estaria na celebração. Escondemos a morte das crianças. Mas depois temos que lhes dar uma noite halloween. Como ainda não havia halloween nem séries sobre mortos-vivos, graças a Deus pude ir ao enterro da minha avó de que me lembro com saudade e não com pavor ou trauma de infância.

Mas, será só por ser o confronto com o desconhecido que a morte nos mete medo? Para quem não tem fé, a vida acaba no momento da morte. É o ponto final, o fim. Medo de quê, propriamente, se não há absolutamente nada? Talvez apavore precisamente isso: o absoluto nada, o vazio total. A morte, para quem tem fé e para quem a não tem, levanta a grande questão do sentido da vida. A humanidade não se divide entre quem crê e quem não crê, mas entre quem busca e quem desistiu ou vive instalado. Claro que é mais fácil viver centrado no comezinho do quotidiano, divergindo-se do essencial – ou viver divertido, como diria Pascal dos que se alienam da verdadeira questão da existência humana – do que confrontar-se com o sentido último da vida. Procurar o sentido da existência, que se colhe em cada decisão e em cada opção de vida, é trabalho de todos, crentes e não crentes.

Quem tem fé, nomeadamente quem crê em Cristo, sabe que a vida não acaba; apenas se transforma. Então porque encontramos cristãos com medo da morte? Que imagem de Deus tem quem acredita nele e lhe tem medo? Não certamente a imagem de Deus que Jesus Cristo, a preço tão alto, nos deixou. A presunção da salvação por mérito é isso mesmo: presunção. O Céu é, por definição, graça, gratuito, free of charge. E, se é graça divina, ninguém o merece. Quem de nós pode dizer que merece o Céu? Mas Cristo morreu e ressuscitou por nós. O Céu já nos foi dado. Afirmar o contrário é negar o poder salvador de Jesus Cristo. Negação obviamente compreensível da parte de quem não tem fé, mas ponto absolutamente crucial para o cristão.

Outra história completamente diferente é se eu, no auge da minha pseudo-liberdade, não aceito o que me é dado de graça. Se alguém me quer oferecer um presente e eu não o aceito, não há presente, não há oferta. Se o inferno existe, é isso: a prepotência humana levada ao extremo da autossuficiência que nega a necessidade do outro, que rejeita a gratuidade do amor. O resultado é o egoísmo total, a solidão absoluta – o inferno. E, neste sentido, remeter exclusivamente o Céu ou o inferno para depois da morte é tentação. Cada decisão egoísta que tomamos é já experiência de inferno. E, ao contrário, cada experiência de entrega, de serviço e de amor que fazemos é já antecipar algo de Céu. Claro que, absolutamente, estas experiências se vivem só onde encontra absoluto: na eternidade.

Por isso, o cumprir da Lei de Deus, o amor ao próximo, a vida moralmente correta e boa não é o modo de ganhar o Céu. Ao contrário! É a forma de aceitar e agradecer o Céu que já nos foi dado. Outra vez, o Céu não é um prémio de bom comportamento. Essa é a atitude criticada por Jesus nos fariseus que, por cumprirem as regras, se sentem com direito à salvação. É pura Graça. Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, não é o meio para alcançar o Céu. É o modus vivendi próprio de quem já foi alcançado pelo amor de Deus.

Nas referências escatológicas catequéticas e teológicas, bem como nas grandes representações pictóricas (veja-se a Capela Sistina de Michelangelo) ou na literatura universal (por exemplo a Divina Comédia de Dante Alighieri), encontramos sempre a menção aos três possíveis estados: Céu, inferno e purgatório. Se o inferno é o egoísmo absoluto, a solidão eterna, o Céu é a comunhão plena, o amor total, a alegria, a felicidade eterna. Claro que estamos a tentar titubear o que pouco ou nada sabemos. Mas temos uma certeza: a nossa imaginação ficará sempre aquém da realidade: “está escrito: o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, o coração do homem não pressentiu, isso Deus preparou para aqueles que o amam” (1Cor 2, 9).

O purgatório é frequentemente representado como um “estado intermédio” entre Céu e inferno. Quer dizer, um estado sofredor, mas que garante a entrada na alegria e comunhão eterna com Deus. Almas que ardem no fogo e que são libertadas desse tormento pelos anjos de Deus que as elevam aos Céus. Ou as que pedem as nossas orações, como testemunham tantos monumentos às “Alminhas” espalhados pelas estradas do nosso país, como marca de uma profunda religiosidade popular.

Mas, de facto, purgatório não é substantivo; é adjetivo. É o encontro de amor com Deus que é purgatório. A entrada na comunhão plena com Deus purga-nos. Se formos minimamente honestos, todos reconhecemos que há sempre algo na nossa vida a purificar. Todos nós sabemos o bem que queremos mas tantas vezes fazemos o mal que não queremos (Rm 7,19). Até no bem que fazemos, tantas vezes (sempre?) as intenções não são totalmente puras. Por isso, a imagem do fogo é sugestiva. Simboliza fortemente o ardor de coração que se purifica pelo amor de Deus, tal como o ouro se liberta das impurezas através do fogo. Não por acaso o nosso poeta diz que o amor é fogo que arde sem se ver. O purgatório não é uma questão de tempo (eternidade não é tempo sem fim, mas ausência de tempo), mas de intensidade do encontro com o Amor em Pessoa.

Para quem tem fé, a morte não pode amedrontar. Teria Jesus Cristo morrido e ressuscitado em vão? Se tememos a morte, quão longe estamos da “querida irmã Morte” de S. Francisco de Assis ou do “morro porque não morro” de Sta. Teresa de Ávila!

Mas não, estas expressões não são apologia da morte. Porque não há duas vidas, uma antes e outra depois da morte. A pessoa é a mesma, a sua vida é que se transforma em plenitude de alegria e amor – no fundo o que todos desejamos no nosso íntimo. Por isso, quem não tem medo da morte, geralmente é porque ama profundamente a vida.