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Reflexão para o mês de setembro de 2023

Velha Infância

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

“Ele chamou um menino, colocou-o no meio deles e disse: «Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu.” (do Evangelho de São Mateus 18, 2-3)

Jesus responde à interpelação dos seus discípulos que estavam muito preocupados acerca de quem, de entre eles, seria considerado o maior, o melhor, o mais importante. Estavam tão cheios de eles próprios e tão inquietos acerca do lugar principal que seria dado a alguém que nem se aperceberam que a pergunta que fazem a Jesus estava cheia de orgulho, desejo de poder e hierarquias. A resposta que Jesus lhes dá é avassaladoramente simples ao dizer-lhes que só entrarão no Reino de Deus se se tornarem como as crianças. Nesta resposta há duas dimensões importantes: a condição de se ser criança e a referência ao Reino de Deus. Ser como as crianças é dar espaço ao que sentimos, ao que vivemos, ao que vem até nós, sem julgamentos nem preconceitos. Esta sugestão que Jesus nos faz nada tem a ver com a infantilidade ou com a imaturidade. Jesus pede-nos que sejamos como as crianças, pois estas estão abertas às suas emoções, sem usarem máscaras, sem se desculparem com medos, sem utilizarem receios. À humanidade de hoje Jesus continua a dizer que todos devemos permanecer como crianças no sentido de que é a simplicidade a chave que nos abre os olhos do entendimento, que desbloqueia preconceitos, que amplia horizontes. Ser crianças na arte do espanto, na arte de se alegrar com o que genuinamente importa.

Então, para sermos grandes temos de ser pequenos. E o que é isto de sermos pequenos? Somos pequenos quando nos deixamos envolver pela beleza, pela simplicidade. Quando nos deixamos fascinar pela vida e não nos deixamos manipular pelos porquês, pelas pedras, pelos obstáculos. Quando olhamos para a vida abraçando as dúvidas, as dores, as interrogações, persistindo e continuando caminho. Quando nos deixamos guiar pela sensibilidade, pela atenção, pela comoção. Quando aos olhos do mundo, muitas vezes, não cumprimos os requisitos de excelência, de sucesso, de carreirismo, mas acedemos àquela sabedoria maior que só pertence ao coração.

Jesus sugere-nos que permaneçamos pequenos para sermos cada vez maiores no espanto, na admiração, na entrega. Para que os nossos olhos continuem carregados de alegria e de simplicidade. Para não ficarmos doentes por carregarmos tantos “ismos” que a idade adulta parece acarretar – o pessimismo, o adultismo, o egoísmo, o individualismo, o materialismo, etc.

Só assumindo esta condição de crianças, poderemos aceder, compreender e viver o Reino de Deus. Este Reino anunciado por Jesus só se torna visível e concretizável quando nos permitimos a nós próprios querer vê-lo. E para ver este Reino temos de usar o coração e a vontade de querer vê-lo. Podemos usar a razão para tratarmos da questão de Deus, mas para termos uma relação pessoal com Ele precisamos de vivê-la e vê-la com o coração. Para conhecermos este Deus que nos ama é imprescindível deixarmo-nos comover, envolver, querer fazer parte. Deixar de lado os preconceitos, as reservas, os medos. Confiar. Ir. Contemplar a vida com o coração. Procurar permanentemente a beleza e a harmonia. Deixar que os nossos olhos sejam sensíveis à beleza que existe. Sermos pessoas maravilhadas, encantadas, rendidas à beleza da simplicidade, confiantes na harmonia, ou seja, sermos como as crianças são.

Nos Evangelhos, Jesus recorre, com frequência, à importância que deve ter preservarmos a essencialidade de sermos crianças. De facto, não há nada que tenha mais valor do que o olhar puro, o olhar de criança, o olhar de espanto. A riqueza a desejar não reside nem numas luxuosas férias nas Maldivas, nem nos carros ultramodernos, nem nas importantíssimas posições de chefia. Nada. Tudo isso passa, tudo é efémero, tudo se constrói e destrói. A  riqueza maior, a que nos salva, está no dom de nos envolvermos, na capacidade de nos comovermos, na propensão para sentirmos, na aptidão para estarmos atentos aos outros. Um olhar embrutecido impede-nos de saber contemplar a beleza da vida, de saber ver o que realmente importa, de conseguir escolher o que vale verdadeiramente mais. É muito fácil deixarmos que o nosso olhar se prenda na tristeza, no desânimo, na indiferença. É muito fácil tornarmo-nos as tais pessoas muito sisudas que ainda ontem mergulhavam em risos felizes nas lagoas em Caminha e hoje se deixam dominar por agendas repletas de compromissos muito sérios que lhes roubam tempo para fazer algo tão simples como olhar para as estrelas ou emocionar-se com um poema que é recitado. É muito fácil seguirmos esta corrente dos meros cumpridores de horários, das pessoas muito sérias, cheias de preocupações excessivas, de estatutos a exibir e que acham uma pobreza e um retrocesso existencial o deixarem-se envolver nas emoções e serem simples, como o são as crianças.

É por tudo isto que ser Cristão é uma verdadeira loucura aos olhos de um mundo que nos exige sucessos, conquistas, materialismos. É por isso que ver o Reino de Deus neste nosso mundo é uma tarefa que só se proporciona a quem realmente se dispõe e se propõe a vê-lo, com os olhos do coração, com a simplicidade das crianças, com a alegria que brota de quem encontra um feliz tesouro, a Eternidade do presente. E este Reino reservado aos simples é concretizável também na medida em que eu me deixo envolver naquilo que é a minha própria vida. Eu ligo-me emocionalmente aos outros através das experiências que vivemos em conjunto. Viver esta JMJ fez-me voltar a confirmar esta necessidade de envolvência e, sobretudo, de nos deixarmos envolver. Ou seja, de não sermos indiferentes à Vida e deixarmo-nos ser e estar em irmandade. O jornalista eufórico que gritou de alegria ao ver o Papa passar. Os jovens vindos do outro lado do mundo a cantar e a ser alegria nas múltiplas ruas de uma Lisboa jovem. As famílias que seguiram tudo e todos pela televisão. Os amigos que carregaram a cadeira do jovem Lourenço para que ele conseguisse ver o Papa. Exemplos tão bonitos do que é ser pequeno. É tão simples quando não nos permitimos ser complicados. É um mundo novo que é possível construir com tão pouco e, ao mesmo tempo, com tanto.

Ser como as crianças. Voltar à infância e recuperar o espanto, a admiração, a curiosidade, a busca. Numa entrevista dada à jornalista Anabela Mota Ribeiro, o Cardeal José Tolentino Mendonça chama a atenção para a importância de retomar essa arte do espanto: “A infância é uma máquina de espanto. Já todos passamos por essa máquina, mas é bom que a conservemos.” É imprescindível acolhermos a disponibilidade para aprender, para descobrir, para ver, para ouvir, para deixar-se encantar e olhar mais longe. A abertura é a condição do espanto. Permanecer em espanto toda a vida e deixar-se conduzir pela simplicidade foi a resposta que Jesus deu à interpelação dos seus discípulos. Busquemos nós, em cada dia, este grande tesouro da simplicidade. Larguemos os pesos da apatia, da indiferença, da superioridade, do materialismo. Saibamos cultivar aquela alegria das crianças com os olhos cheios de espanto e de gratidão pela vida. Escolhamos a pequenez grande que reside na beleza que nos rodeia e que, tantas vezes, não se mede em cálculos e valores. Abracemos a felicidade que a simples vida em comunidade de vidas nos traz e nos enche de significados. E que possamos ser sempre como as crianças para, juntos, vivermos esse Reino prometido.

Terá o Papa Francisco lido os nossos textos?

Viagens pela JMJ, Lisboa 2023

Com um sorriso, esta pergunta surgia-nos à medida que ouvíamos as intervenções do Papa Francisco nesta JMJ Lisboa. De facto, quase tudo o que o Papa foi dizendo em jeito de observação, orientação e esclarecimento já por nós foi sendo escrito nas nossas reflexões mensais ao longo destes quase dois anos. É claro que o Papa Francisco não acompanha o nosso site. Como se explica, então, este “plágio” de muitas das nossas reflexões nos seus discursos nesta JMJ? A resposta é muito evidente. Conhecendo e partilhando a mensagem de Jesus Cristo, vivendo conscientemente o Cristianismo, estando atentos ao mundo que nos rodeia, estando disponíveis para o acolhimento e para a presença do Outro nos outros e escolhendo viver cada dia com as suas alegrias e tristezas, os seus desafios e assombros, de facto, só poderíamos usar todos a mesma linguagem, as mesmas palavras, as mesmas afirmações, não importando muito se somos uns simples leigos da vinha do Senhor ou um admirável Papa. Tudo o que o Papa Francisco foi partilhando na JMJ reflete claramente tudo o que nós também já pensamos, vivemos e acreditamos desde há muito tempo. Por isso, que bom sentir que estamos em sintonia! Que felizes somos ao vermos os nossos pensamentos nas palavras do Papa! Que alegria está em nós ao nos reconhecermos plenamente em tudo o que foi partilhado pelo Papa! Para quem anda mais afastado da Igreja, para quem está mais distraído, para quem não conhece o que este Papa vem dizendo há anos, tudo o que ele disse poderá soar a inovação, modernização, mudança de paradigma e até alguma contradição com a ideologia da Igreja. Contudo, tudo o que o Papa foi anunciando na JMJ não é novidade para quem vive a e em Igreja, pois é tudo o que Jesus Cristo já havia dito há mais de dois mil anos. Cabe-nos agora, nos nossos contextos e realidades, atualizar e continuar a praticar o que foi e tem sido dito.

Assim, partilhamos aqui algumas das frases proferidas pelo Papa Francisco durante a JMJ em paralelo com algumas das nossas frases dos textos de reflexão mensal.

Ana

Reflexão para o mês de agosto de 2023

Viagem

Texto de Jorge Ferreira, Comunidade Estrada Clara (este texto foi escrito pelo Jorge em julho de 2008)

Cada um de nós tem de fazer da sua vida uma viagem. E, muitas vezes, para nos descobrirmos e nos conhecermos, há momentos em que esta viagem tem de ser feita na solidão, na relação connosco próprios. Sabemos que para cada pessoa há uma viagem distinta a fazer, um caminho distinto a percorrer. A pessoas diferentes correspondem viagens e caminhos diferentes. Não podemos ter a vida que os outros têm nem eles podem ter a nossa. Somos únicos. Ninguém pode escolher por nós nem nós por os outros. A escolha é sempre nossa. Muitas vezes cedemos à tentação de nos deixarmos ir na corrente, de sermos cópias do que outros já são. Comportamo-nos como os outros para mais facilmente nos sentirmos aceites e não sermos alvo fácil da avaliação dos outros que, quase sempre, é atroz.

Percorrer esta vida sem respeitar quem eu sou significa não andar, não evoluir, estar parado. Parece-me que todos experimentam, numa ou noutra vez, ser diferente dos outros. Uns têm sucesso, evoluem e distinguem-se. Mas à maior parte das pessoas acontece não ter muito êxito na primeira experiência e desistem porque pensavam que se pode obter tudo logo na primeira investida. “É a vida!”, “Não se pode seguir os sonhos!”, “Tens de ser realista.”, “Esse curso não tem saída nenhuma!”, “Não percas tempo com o teu grupo de jovens, agora tens de ter uma vida séria.”, são apenas alguns exemplos ditos por quem passou a pertencer à maioria, à normalidade. Por aqueles que se inscrevem no clube Dia-a-dia, procuram outros iguais a eles, gritam pelo mesmo clube, passam a gostar de coisas que não gostavam, comem o que nem sonhavam existir e olham para as vidas dos outros como meta a alcançar, idolatrando-as. As suas próprias vidas começam a desaparecer. Vivem, mas não vivem. Entre festas e comida, empregos e carreiras, férias e filhos, lá vão andando e cumprem apenas os requisitos mínimos, esquecendo-se da dádiva de uma Vida maior.

Por isso, é-se diferente quando se decide caminhar, quando decidimos saber mais e melhor. É-se diferente quando aceitamos que não podemos ter tudo, mas o que temos, podemos capitalizar em energias renovadoras. É-se diferente quando aceitamos que não podemos ser como os outros, mas podemos valorizar os recursos que temos e começar daí. E ser diferente implica também aceitar que a nossa viagem, em certos momentos, pode ter de ser feita, muitas vezes, no silêncio e na solidão. Sim, sozinhos. Porque num dado momento podemos ter de perder um amigo que não escolheu o mesmo curso que eu, mas eu tenho de continuar. Ou porque não há ninguém que queira fazer comigo uma dieta para me dar força, mas eu tenho de a fazer. Ou porque ninguém quer ir passear comigo, mas posso ir eu. Estudar é um ato solitário. A solidão não é uma morte, mas um estado por vezes necessário ao ato do crescimento. E é deste tipo de solidão que todos fogem. Solidão que nos ensina a refletir e ser responsável. Ter medo deste tipo de solidão implica a pouca reflexão e leva à prática de atos instintivos. A solidão pode ser um momento de redirecionar a nossa vida. Abraão e Moisés ouviram Deus falar-lhes na solidão. Os relatos bíblicos apresentam-nos, cada um deles, em tempos diferentes, na busca de um sentido para a vida, refletindo sobre o seu verdadeiro significado. Abraão, na sua solidão, descobre que Deus não pode estar sujeito às disposições religiosas locais, mas que, a existir, deve ser imenso e estar em toda a parte e ser Um e único para todos os homens. Moisés, na sua solidão, descobre que Deus lhe confia uma missão, a de libertar os seus irmãos que sofrem no Egipto. E descobre que não pode ficar indiferente a esse chamamento. Verdadeiros milagres da solidão. Verdadeiros milagres para a história e para cada um de nós. A ação criadora tem origem na solidão, na quietude. Muitas decisões e mudanças nascem nestes momentos. É certo que o homem é um ser social e com os outros se realiza, mas o que acontece àquela vida que nunca para para refletir e ponderar? O que acontece a uma vida que não tem momentos calmos de contemplação? O que acontece a uma vida que não contempla o sagrado?

Gosto particularmente dos dias a seguir às festas. A seguir ao Natal, a seguir à Páscoa, a seguir às festas do futebol, às festas populares, ao S. Pedro, a seguir às férias. Gosto porque sinto que a vida continua indiferente às festas e enfeites dos homens. Festas, muitas vezes, vividas sem sentido, vividas só para o exterior, para mostrar que se está alegre e feliz. Numa sociedade cheia de barulho e apelos ruidosos, precisamos de encontrar um equilíbrio que nos dê serenidade, que nos faça por a render os nossos dons. Onde está o quadro que foi pintado no meio duma multidão? Onde está o livro que foi escrito no meio do barulho? Onde está a música escrita no meio de uma festa? Não existem. Onde estão as vidas feitas só de barulhos, de shoppings, de modas, de ídolos? Estão vazias.

É no silêncio que tantas vezes descobrimos os maiores significados da nossa vida. Tantos, que há coisas que nem sabemos revelar aos outros. Tão particular o que descobrimos, tão íntima a vivência que, por vezes, não conseguimos partilhar. E guardamos para nós. Ou para dizer noutra ocasião. E crescemos nesse momento. O silêncio não é um buraco onde tudo desaparece. É uma oportunidade de crescimento. O silêncio e a interioridade obrigam-nos a enfrentar e resolver os problemas que temos.

Nas nossas viagens, depois do entusiasmo inicial, depois de cantarmos, depois de conversarmos, de rirmos bem alto, há momentos em que todos se calam e se acalmam e simplesmente pensam. Momentos quietos, mas nos quais ninguém dorme. Momentos em que todos olham pela janela. Momentos em que vemos os pinheiros a andar para trás. E nós para a frente. A natureza tem este poder: o de chamar cada um de nós para aquela solidão preenchida, para o silêncio, para a interioridade, para esse lugar único onde cada um de nós consegue descobrir verdadeiramente quem é. Aquela tal viagem. A viagem.

Reflexão para o mês de julho de 2023

Um tesouro terás

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro nos céus.” (do Evangelho de São Mateus, Mt 19, 21)

A passagem tão conhecida do jovem rico é a história de uma inquietação, de uma procura, de um desejo em busca de uma resposta, de uma insatisfação. É a narrativa de um homem que tudo tinha, mas que não era livre, precisamente porque estava totalmente preso àquilo que possuía, isto é, ele era dominado por aquilo que tinha. E aquilo que possuía, por si só, não era mau, mas impedia-o de se dar, de estar atento aos outros, de se multiplicar, de compreender a totalidade da vida e de aceder ao significado último da transcendência. Este jovem tinha tudo. Segurança financeira, posicionamento social, reconhecimento entre os pares. Ainda assim, havia algo que lhe faltava. E ele foi à procura. Foi ter com Jesus. Precisava de sarar aquele seu vazio existencial.

A inquietação deste jovem é também a nossa inquietação. Ele possuía todos os meios necessários para viver, mas não tinha encontrado os propósitos necessários para viver. Ele tinha com o que viver, mas não tinha pelo que viver. Aquilo que ele possuía também nós tantas vezes possuímos, não a riqueza material, mas sobretudo outras riquezas terrenas que carregamos no nosso coração e que nos impedem de darmos espaço ao que realmente importa. Aquele jovem sentia que algo lhe faltava. Cumpria todas as obrigações, respeitava todas as leis, seguia todos os preceitos. Mas algo lhe faltava. E num ato de coragem e de ousadia, vai ter com Jesus e questiona-o: “O que me falta ainda?”. Há aqui um grito de ajuda, um pedido de orientação e um reconhecimento de Jesus como pessoa de sabedoria. Então, Jesus diz-lhe algo que não voltou a repetir a ninguém: “Vai, vende tudo o que tens e distribui o teu dinheiro pelos pobres.” A Jesus não lhe interessava a riqueza material do jovem. A Jesus interessava-lhe conseguir mostrar ao jovem que a sua vida, da forma com ele a vivia naquele momento, estava limitada apenas ao material, à posse e que, no seu coração, faltava-lhe espaço para Deus e, consequentemente, para os outros. Jesus não condenou a riqueza do jovem; Jesus mostrou-lhe que para aceder à verdadeira riqueza, seria necessário deixar o que não interessava para trás. As palavras de Jesus revelam ao jovem que a sua vida estava totalmente preenchida com a efemeridade e, por conseguinte, ele sentia que algo lhe faltava.

A resposta que Jesus dá à interpelação do jovem é um hino à dádiva e à liberdade, não é uma condenação nem um julgamento. Jesus começa por dizer-lhe: “Vai, vende tudo o que tens”, isto é, desprende-te, torna-te livre, rejeita o que te diminui. E imediatamente a seguir, Jesus afirma: “Dá o que tens aos pobres e terás um tesouro no céu”, isto é, coloca a tua vida, os teus dons ao serviço dos outros, torna-te espaço de acolhimento, lugar de empatia, abraço de comunhão. Pratica a gratidão, a atenção para com os teus irmãos, dá-te em palavras, em gestos, em canções. Prepara o futuro com quem precisa de ti, constrói caminhos de partilha, encontra-te na relação. Só assim a vida é verdadeiramente vida. Só assim alcançaremos a vida eterna. Só assim compreenderemos o tesouro que nos aguarda. O que não se dá, perde-se. A vida partilhada, a comunidade, a dádiva são as grandes lições que Jesus nos deixou. Cada um de nós é sempre chamado a ser mais na relação que constrói com os outros. Ninguém é pessoa sozinho. Ninguém é cristão sozinho. Somos o que somos na relação, na entrega, no desprendimento de nós próprios.

Esta interpelação de Jesus ao jovem rico é de uma atualidade inegável. A propósito desta passagem do Evangelho de Mateus, diz-nos o Cardeal Tolentino: “Para eu escolher uma coisa tenho de deixar outras, não posso levar tudo. A vida espiritual não é um grande carro de mudanças, é uma bicicleta. O homem e a mulher espiritual andam de bicicleta, não andam de camião a querer levar tudo atrás de si. Nós temos de carregar connosco aquilo que cabe numa bicicleta, a vida mínima, o essencial.” A experiência da dádiva está condicionada por uma série de prisões que nós colocamos a nós próprios e que nos impedem, tantas vezes, de sermos livres. A própria sociedade, marcada pelo consumo e pelo défice ao nível da espiritualidade, rejeita este modelo de serviço, de oferta, de dom que Jesus nos propõe. Esta radicalidade saudável que Jesus nos urge a seguir é posta em causa pelas normas sociais e por uma sociedade que proclama, tantas vezes, a vitória do egoísmo acima do bem comum, deturpando aquilo que deveriam ser as nossas escolhas significativas. Não deveria ser mais fácil dizer sim a uma proposta de trabalho que fará de nós diretores de uma empresa do que dizer sim a um convite para um simples ensaio para animar uma missa. Não deveria ser mais aceitável possuir o último modelo de telemóvel do que usar uma parte desse dinheiro gasto para pagar a inscrição de um jovem nas Jornadas. Não deveria ser mais admissível faltar às aulas porque no dia anterior tivemos uma festa que acabou na discoteca do que faltar às aulas porque no dia anterior a nossa paróquia promoveu um Lausperene de 24 horas e o meu grupo foi o responsável pela atividade noturna. Não deveria ser mais percetível ficar mais de uma hora numa fila numa loja para comprar um produto exclusivo da moda recente do que estar quinze minutos em silêncio e em meditação. Não deveria ser mais compreensível emigrar para o estrangeiro para se trabalhar do que ir para aqueles países tão carentes de África para ajudar quem precisa. Não deveria ser mais claro gastar dias de férias para meu único proveito do que usar alguns desses dias para acompanhar os jovens num retiro ou num campo de férias. Não deveria ser mais óbvio obter “gostos” nas redes sociais com a publicação de textos de empoderamento e facilitismos do que com este texto que agora vos escrevo.

Há tanto que se perde nestas escolhas muito pouco comunitárias que se fazem. E há tanto que se ganha quando contrariamos a corrente de uma sociedade que promove apenas a satisfação individual, que valoriza o “eu” em detrimento do “nós”. O irmão Roger dizia, com toda a sua sabedoria, na última carta que deixou escrita, que nada de duradouro se constrói na facilidade. O papa Bento XVI também nos alertava de que o entusiasmo inicial é sempre o mais fácil. O Papa Francisco outra coisa não faz a não ser despertar a Humanidade para o cuidado com o tesouro que é a vida de cada um de nós. E com as escolhas que fazemos. Em cada dia.

A juventude é o espaço privilegiado do questionamento. Neste contexto, convoco aqui os nossos acantonamentos em São João d’ Arga, Caminha, uma das experiências mais gratificantes que pudemos viver e que pudemos proporcionar aos adolescentes e jovens que connosco vinham. Uma semana, sempre com uma média de 20 jovens juntamente com os seus animadores, num mosteiro degradado, sem luz elétrica, sem comodidades, mas rodeados de uma paisagem magnifica e brindados com um céu estrelado todas as noites. Nessa semana, havia lugar e tempo para conversas, para tarefas caseiras, para partilhas, para jogos, para passeios, para mergulhos nas lagoas, para orações, para refeições deliciosas, para trabalhos manuais. Nessa semana, os jovens viviam na simplicidade, desligados dos telemóveis, das distrações citadinas, das roupas da moda, dos jogos da playstation, dos horários repletos de escola, explicações e desportos. Havia espaço e tempo para se descobrirem, para fazerem o exercício de estarem consigo mesmos e com os outros, porque ninguém é pessoa sozinho. Penso muitas vezes que o jovem rico teria sido feliz com uma experiência destas, ele que tinha tudo e, ao mesmo tempo, tudo lhe faltava.

A mensagem de Jesus Cristo não nos vem aplanar o caminho, mas vem nos ajudar a compreender quando esse nosso caminho não é assim tão plano. A mensagem de Jesus Cristo não nos vem libertar das dúvidas, mas vem trazer-nos a serenidade necessária para as aceitarmos. A mensagem de Jesus Cristo não nos cura as doenças do corpo, mas cura-nos as doenças da alma. Os Evangelhos nada nos dizem se, tempos mais tarde, aquele jovem teria voltado. Se teria refletido acerca daquilo que Jesus lhe disse. Se teria até mudado de vida. Esta passagem do jovem rico mostra-nos que amar as coisas é uma capacidade humana, mas amar a Humanidade é um dom divino. E é sempre nossa a vontade e a decisão de querer viver com sentido, com coragem, construindo o futuro e dando futuro. Depende de mim, de ti, das minhas e das tuas escolhas. Cada um de nós é responsável por enfrentar, nos nossos contextos, o egoísmo, a indiferença, o materialismo que a sociedade nos quer impor. Que saibamos escolher sempre o Amor, sem cálculos nem provas. Que saibamos guardar o nosso coração para o que é amável, luminoso, maior. Que saibamos anunciar a gratidão, a esperança, a comunhão. Termino com as palavras sábias do nosso sempre querido Vergílio Ferreira: “O amor acrescenta-nos com o que amarmos. O ódio diminui-nos. Se amares o universo, serás do tamanho dele.”

Reflexão para o mês de junho de 2023

A ti, Esperança…

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Confia no Senhor, põe nele a tua esperança” (Salmo 37)

Para o padre Avelino, para a Rute e para a Sofia. Abraço-vos com este texto.

A semana passada foi dura, terrena, perturbadora. Um meu amado irmão de coração recebeu a dolorosa notícia da partida do Pai para a Eternidade. Uma estimada irmã na nossa comunidade soube que o Pai está a viver os seus últimos dias terrenos. Uma outra querida amiga está a viver uma situação difícil causada pela descoberta recente da doença da Mãe. Eu, que me julgava já doutorada em sofrimento e morte, senti-me abalada por estes acontecimentos. Há uma identificação e empatia imediatas. Encontro nas palavras destes meus amigos tantas das minhas próprias palavras. Vejo nos seus gestos de dor aqueles que foram os meus próprios gestos. Nas suas lágrimas o meu choro. Nas suas incompreensões as minhas questões. Nas suas dúvidas as minhas incertezas.

O sofrimento daqueles que amamos é, sem dúvida, a maior das nossas provações. A nossa resiliência, a nossa esperança, as nossas crenças são colocadas à prova. Vivemos a impotência, a incompreensão, a injustiça. Não é fácil passarmos a habitar em circunstâncias cruas e dolorosas e a ter de reconstruir projetos que até então julgávamos inabaláveis. Não se fica a mesma pessoa depois de experimentarmos a doença e a morte de quem amamos. Deixamos de saber como se contam os dias, os meses e os anos a partir de então, durante algum tempo passa-se a viver numa dimensão paralela, passamos a conviver com medicamentos e receitas, as tarefas práticas do dia-a-dia não se importam com a nossa vontade de quietude e passa-se a olhar para o mundo com um sentimento de desapego e de efemeridade. Mas é precisamente neste buraco negro de dor que Deus aparece para nos levantar. Parece contraditório, mas se nesses momentos de maior dor procurarmos este Deus que nos ama, acabamos por sentir uma força que é claramente inexplicável aos olhos humanos. No meio da morte, a vida é sempre mais. Sempre! Mais forte, mais soberana, mais dominante.  A vida continua a fluir e é possível viver esta força de Deus mesmo quando tudo à nossa volta parece ruir. Parece ser algo paradoxal, mas esses tempos duros que atravessamos vão permitir a reconstrução de quem seremos. O cuidado, a atenção, as preocupações reescrevem a nossa história de Amor.

Por isso, ter fé num Deus não nos liberta de preocupações, não nos poupa a situações difíceis, não nos aplana o caminho. Acreditar num Deus não nos resolve todas as questões, não nos livra das incertezas, não nos torna imunes ao sofrimento. Para quê então acreditar? Eu acredito porque seria inconcebível uma vida que fosse por si só limitada a um tempo e a um espaço. Eu acredito porque o Amor que sinto por aqueles que são meus é demasiado grande para não poder ser eterno e perdurar para além da morte. Eu acredito porque Deus continua a revelar-se de cada vez que eu o procuro nas palavras, na criação, na música, no encontro, na empatia, no espanto, na descoberta. Eu acredito porque, pela ressurreição de um Deus vivo, eu sei que Ele me espera numa Eternidade feliz. Eu acredito porque todo o sofrimento, dor e incompreensão que todos nós vivemos não têm a última palavra. Eu acredito porque só é possível viver assim.

O confronto com a finitude (nossa e dos outros) também nos impele a viver mais, a agradecer mais, a ser mais. A viver o presente que é o presente de cada dia. A bendizer o passado e a projetar o futuro. A não lamentar o que aconteceu e a não criar expetativas futuras ilusórias. Viver o presente do presente. Não podemos evitar a dor da morte e o sofrimento naturalmente inerente a estas tragédias. Mas podemos confiar. Acreditar. O Amor não morre. Vive em cada um de nós que o aceitamos. Vive quando escolhemos ser Luz!

Quem ama, sente. Chora. Entristece-se. Vive a dor dura e crua. Questiona-se. Mas quem ama, também acredita. Mesmo quando nada se vê. Quem se deixa levar pelo Amor, vê tudo. Porque o Amor vence tudo o que é limitado, confuso, incongruente. Porque o Amor é sempre mais forte do que todas as nossas incompreensões, interrogações, frustrações. Por isso, não nos deixemos ficar no desespero, na tristeza, na apatia. “O desânimo, o cansaço, a fatalidade, a desesperança, a desistência, isso não pode triunfar no teu coração” (Cardeal José Tolentino Mendonça in Homilia na Vigília Pascal). Ser cristão é confiar que, mesmo nas situações mais dramáticas da nossa existência, nós nunca estamos sozinhos. E confiar implica sempre querer ver o que não se vê para então se poder ver.

A dor não se ultrapassa porque não se trata de nenhum campeonato. A dor não se vence porque não se trata de nenhuma luta. Não há aqui um processo de vencedores nem vencido. A dor atravessa-se porque faz caminho connosco. A dor enfrenta-se porque a colocamos à nossa frente para poder transformá-la. Guardar rancores, lutos, sofrimentos durante muito tempo só tem como resultado um coração pesado, amargurado, duro. A dor acontece para ser reconstruída em algo maior, sereno, apaziguador. E embora seja um processo difícil, é um acontecimento possível e necessário para nos salvar. Só assim a dor nos salva, se lhe atribuirmos um significado que nos projete no futuro, que nos faça viver.

Como cristãos que somos temos de assumir o que somos, a nossa essência, a nossa identidade, o entendimento da vida enquanto passagem para uma vida maior. Como cristãos que somos, procuremos em nós essa esperança que nos faz seguir viagem por mais conturbadas que as circunstâncias possam ser. Como cristãos que somos, entreguemo-nos nas mãos e no coração de um Deus que só nos quer bem. Como cristãos que somos, sejamos ousados em testemunhar que só podemos viver a e na esperança! A esperança cristã não é um sentimento infantil, momentâneo, automático naquele sentido em que se diz, em qualquer circunstância e tantas vezes de forma leviana, “vai correr tudo bem”. A esperança não ignora o enigma e o absurdo da existência, mas antes integra em si a própria desesperança. A esperança cristã é a certeza de que, aconteça o que acontecer, há um Deus que nos acompanha e que, por isso, a vida que nos é dada viver é sempre maior! A esperança cristã entra, muitas vezes, em contradição com a realidade que nos rodeia porque a própria mensagem de Jesus Cristo é fonte de contradição para um mundo que se apresenta como terreno, limitado, egoísta, calculista e esquemático. A esperança cristã é um encorajamento dirigido a cada um de nós no meio das adversidades. É um desafio a transcendermos a nossa própria existência e a abrirmo-nos ao cuidado de Deus. Somos peregrinos de mãos vazias, mas de olhos erguidos para o Alto, vivendo esta esperança que nos libertará das nossas dúvidas, medos, ansiedades. A esperança cristã não se baseia em garantias, mas exige dos cristãos uma verdadeira radicalidade.

Ser cristão é exigente porque sou chamado a trabalhar-me, a ir por caminhos por onde a maioria não vai, a ver com outros olhos uma realidade tantas vezes árdua e incompreensível. Mas ser cristão também é termos consciência do privilégio que é vivermos uma dor acompanhada por um Deus que nos abraça. Não somos fruto do acaso. Não somos acidentes de percurso. Não somos percalços da natureza. Somos, desde toda a eternidade, seres únicos na sua individualidade e amados por Deus. Tudo o que somos, o que escolhemos, o que nos acontece, o que experimentamos, o que rejeitamos, o que aceitamos faz parte da nossa identidade, da nossa história. O modo como eu lido com o que me acontece é o que me constrói. Por isso, como cristão, quero escolher ver e viver com esperança. Como cristão quero encontrar Deus nos momentos bons e menos bons da minha existência. Deus precisa do nosso testemunho de cristãos nas nossas circunstâncias mais desafiadoras, mais rigorosas, mais exigentes. É nesses momentos que Ele está mais presente e é, muitas vezes, aí que o podemos anunciar ao mundo com mais verdade, com mais plenitude, com mais concretude. Nos meses seguintes à morte do Jorge, enquanto eu e a minha comunidade nos íamos reconstruindo numa existência nova, numa das minhas meditações, surgiu-me a seguinte frase, que, hoje, muito a uso como oração diária: “Senhor, não sei o que me espera, mas sei que Tu me esperas sempre naquilo que eu não esperava.” Entreguemos a Deus tudo o que somos. Viver a esperança cristã não é não ter medo ou não o sentir. É antes aceitar essas dores e colocá-las nas mãos de Deus. E esperar contra toda a esperança, como nos diz São Paulo numa das suas Cartas. O Filho de Deus fez-se Homem para nos acompanhar em tudo, até mesmo nas nossas sombras e medos. Na sua morte na cruz está toda a dor que cada um de nós experimenta. Não estamos sozinhos. Mesmo na mais profunda das tristezas, há sempre aquela Luz que não se apaga. Essa Luz tem um nome – Jesus. Essa Luz tem um rosto – os nossos próximos (família, amigos, comunidade). Essa Luz tem uma força intensa – a do Amor. Essa Luz tem uma duração plena – a da Eternidade. “Confia no Senhor, põe nele a tua esperança”.

Reflexão para o mês de maio de 2023

Se acreditares…

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim também fará as obras que eu realizo.” (do Evangelho segundo São João – Jo 14, 12)

As palavras dos Evangelhos são verdadeiras pérolas de sabedoria. Creio que se os cristãos as conhecessem melhor, se lhes dedicassem tempo e pensamento, se as procurassem mais, melhor compreenderiam a vida e as suas circunstâncias. As palavras que os Evangelhos nos trazem traduzem-se em vida, em luz para as nossas sombras. Por isso, as circunstâncias alegres e dolorosas que todos nós, sem exceção, experimentamos adquirem um significado renovado quando são lidas e amadas à luz da mensagem de Jesus Cristo.

Este versículo, retirado do Evangelho de São João, é uma das promessas que Jesus nos faz. Todo aquele que acreditar será capaz de realizar as suas obras, ampliando-as no tempo e no espaço. A condição que Jesus nos apresenta para que tal se concretize é a de acreditar, a de querer construir uma vida de fé, a de querer estar disponível para o que o Espírito de Deus nos quer revelar e para os sinais através dos quais a vida nos fala. Esta condição de acreditar implica sempre colocar a nossa confiança em Deus, sentido e vivendo em nós tudo aquilo que Ele nos faz. Aceitando este estado de confiança e escolhendo vivê-lo no nosso quotidiano, seremos, então, seus discípulos, percorreremos juntos os seus caminhos e continuaremos as suas obras.

Quando aceitamos aceder a este nível de acreditar, conseguimos passar da morte para a vida. Quando escolhemos viver em nós este modo de acreditar, a vida volta a encontrar-nos, mesmo depois de a termos perdido. Quando assumimos, no nosso dia-a-dia, que queremos acreditar, surge então aquela alegria que nos salva e nos ressuscita.

Este modo de viver na e em confiança esteve presente nas primeiras comunidades cristãs descritas no Novo Testamento. No entanto, estes modelos de comunidade (com todos os seus defeitos e virtudes!) não são meras recordações do passado que servem apenas para lembrar o que já foi. Estas comunidades constituídas pelos seguidores da mensagem de Jesus Cristo continuaram a ser feitas ao longo dos tempos. Hoje, nas nossas circunstâncias, nos nossos contextos, nos nossos espaços, nós somos estes discípulos a quem Jesus faz uma promessa de eternidade plena. Sim, também nós faremos as suas obras. Sim, também nós concretizaremos, em gestos e ações, a mensagem de uma vida em Amor que Ele nos ofereceu. Sim, nós somos estes novos discípulos. Temos um nome, uma história, um lugar.

Deus deu ao Homem total liberdade de escolha, nunca impondo nada. Por isso, podemos escolher segui-lo e viver a sua mensagem de forma concreta ou não. Quando recusamos seguir os caminhos que Deus nos propõe, não há espaço para a presença de um Deus vingativo ou ciumento, castrador ou desrespeitador da liberdade humana. Deus só pode amar. Mas, sabemos que quando não vivemos estes seus caminhos de Amor, somos perdedores. Ficamos aquém do que poderíamos ser, compreender, viver. Somos menos cristãos. Somos menos espirituais.

A vida cristã é sempre uma construção. É um caminho que se vai fazendo e que tem por base este acreditar que precisa sempre de ser alimentado, cuidado, protegido e atualizado. Alimentado com a Palavra de Deus que é sempre fonte de vida para a eternidade. Cuidado através do Amor que escolhemos como nosso oxigénio. Protegido dos falsos deuses que tantas vezes nos atraem e nos fazem ser egoístas, indiferentes e ausentes. Atualizado na relação com os outros, na descoberta comum de propósitos de vida em abundância, no questionamento que nos faz crescer em fé.

Nesta promessa marcada nesta passagem do Evangelho de São João, Jesus refere-se às suas obras. Estas obras não são os grandes monumentos, as grandes conquistas. Nem sequer são as grandes visibilidades e honrarias que quem é figura pública adquire. Se assim fosse, a mensagem de Jesus seria seletiva e estaria destinada apenas a um reduzido número de eleitos, o que entraria em total contradição com o cerne cristão. Estas obras são, por conseguinte, tudo aquilo que cada cristão pode e deve fazer e que está ao alcance das suas circunstâncias. Por isso, estas obras são, tantas vezes, os gestos mais simples e acessíveis, que nos chegam através de um sorriso, de uma palavra, de um olhar.

As obras de Deus são a forma e o modo como nós agimos. Nós refletimos a divindade que Deus nos deu, somos portadores dessa essência e somos responsáveis por trazê-la a descoberto. Se a mensagem de Jesus Cristo, na qual dizemos acreditar, não afeta a maneira como vivemos a nossa vida, então estamos a negligenciar esta mesma mensagem. De nada serve dizer que Jesus Cristo é o filho de Deus se, com a nossa vida, não somos capazes de confirmar estas palavras.

À semelhança do que aconteceu com os seus discípulos, Jesus também nos escolhe a nós, também nos responsabiliza pela continuação das suas obras. E todos nós fazemos falta. Todos nós somos importantes neste projeto de Deus. Todos nós somos peças fulcrais e necessárias. Numa palavra dada, num abraço oferecido, numa mão que se estende. Num caminho que se escolhe fazer, num projeto em comum, num olhar de vida. Todos fazemos a diferença.

Ninguém é cristão sozinho. Ninguém vive a sua fé sozinho. Acreditar é ação, atitude, movimento. E o Amor é sempre a resposta a dar, mesmo quando as perguntas surgem difíceis, perturbadoras, duras. A grande história do Amor de Deus acompanha e está presente na história de cada um de nós. O Cristianismo diz-nos que cada ser humano traz dentro de si o divino e que, por isso, é sempre sinal de Deus no mundo. Deus vem habitar no meio de nós. Em mim, em ti. Na tua comunidade, na tua família. Nos nossos amigos e nos nossos projetos. Nas nossas obras. E estas obras são abraços dados, canções sonhadas, mensagens enviadas, tempo em comum, subidas às montanhas, silêncios falados, textos escritos, refeições partilhadas, lágrimas cuidadas, casas escolhidas, risos alegres. As nossas obras. Que são as de um Deus que nos quer bem. E nós só precisamos de acreditar. Querer confiar. Ir buscar aquela luz que é Jesus e que nunca se apagará. Iluminar a vida toda para toda a vida. E, então, as obras permanecerão. E a vida seguirá em direção à Terra Prometida.

Reflexão para o mês de abril de 2023

Quero é viver!

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Nós sabemos que passamos da morte para a vida porque amamos os irmãos. Quem não ama, permanece na morte.” (da 1.ª Carta de João – 1 Jo 3, 14)

As cartas de João são textos belíssimos que exaltam a identidade do ser humano enquanto filho de Deus. João aborda, em muitos destes seus escritos, o tema do amor ao próximo, anunciando a ideia de um Amor que nos torna divinos e nos salva da morte. Para João, o amor fraterno está no centro da oposição entre vida e morte. João parte da lei do Amor, proclamada por Jesus, e que é a maior loucura por Ele anunciada. Amar os inimigos, perdoar quem nos fez mal, dar uma nova oportunidade, vencer a morte com a vida. Tudo isto foi, na altura, – e ainda hoje o é! – visto como loucura, incompreensão. Traz dúvidas e incertezas. Muitas perguntas. E sempre muito espanto. Mas, sobretudo, traz consigo a chave da identidade cristã.

Só em Deus é possível aceder a esta compreensão de Amor maior. Só assumindo este amor ao jeito de Deus é possível ver e viver de um modo diferente, louco aos olhos do mundo, mas verdadeiro no coração da Eternidade. Enquanto não optarmos por viver esta dimensão divina, muito do que nos acontece permanecerá inaceitável, inatingível. É fundamental olharmos a vida, o mundo, os outros com os olhos de Deus para podermos passar a viver de um modo mais completo, mais íntegro, mais dimensional. Mais perto de Deus. Em Deus. Só assim avançaremos para a outra margem. Só assim subiremos à montanha. Só assim caminharemos pelas águas. Só assim passaremos da morte para a vida.

O Amor de Deus vai além do que nos é pedido. É feito sem cálculos, sem algoritmos, sem contratos. Sem dúvidas, sem trocas, sem imposições. É um Amor que acolhe, aceita, espera, acredita. Não é oportunista, mas oferece oportunidades; não impõe condições, mas é sempre incondicional; não é desconfiado, mas só vive da e na confiança. O Amor de Deus ultrapassa a simples esfera sentimental, romântica. O Amor de Deus é concreto, deriva em ação, é universal. Por isso, quando amamos verdadeira e genuinamente, estamos unidos a Deus e somos seus instrumentos. E nunca poderemos dizer que somos cristãos se não praticarmos (ou, pelo menos, tentarmos praticar!) este Amor fraterno.

O Amor cura-nos. Salva-nos. Liberta-nos. Afasta-nos do mal. Eleva-nos. Faz-nos sair do que é limitado, rasteiro, mortal. É no Amor que curamos as feridas abertas pela vida que nos acontece. É no Amor que somos salvos dos nossos abismos. É no Amor que recebemos a eternidade daquilo que seremos. É no Amor que compreendemos que a vida é sempre poderosa, sempre mais, sempre vencedora. E é no Amor que, tal como cantava Camões, nos vamos da “lei da morte libertando”.

Sabemos que somos mais quando amamos. Sabemos que crescemos mais quando ampliamos o espaço da nossa tenda para acolher aquele irmão que precisa de um abraço amigo. Sabemos que somos mais felizes quando retiramos de nós o peso do mal, da ofensa, da ingratidão. Sabemos que para sempre viveremos quando escolhemos amar. Jesus escolheu amar até ao fim. Escolheu morrer para nos mostrar que está connosco nos nossos sofrimentos, nas nossas dores, nos nossos abismos. Está ao nosso lado e diz-nos que com Ele, um dia, estaremos plenamente na manhã eterna da vida sem fim. A grande força do Cristianismo é esta aparente fraqueza humana, ou seja, a de escolher o Amor, a opção pela disponibilidade para amar, esta vontade de amar até ao fim.

Aceitar esta essencialidade do Amor de Deus implica escolher abrir-me a Deus e às possibilidades que Ele me oferece. Pede-me que, muitas vezes, assuma uma boa dose de loucura em relação àquilo que o mundo e a sociedade esperam de mim. Faz com que, tantas vezes, tenha de ir por outro caminho, aquele que só quem vive em Deus e por Deus conhece bem. Esta loucura de ser cristão está prevista naquela que Santo Agostinho considerou ser a página das páginas do Evangelho – as Bem-aventuranças, o programa, por excelência, da existência cristã. Jesus revela-nos que viver à moda de Deus é incompatível com a lógica dos vencedores e vencidos que o mundo nos oferece. Numa sociedade marcadamente baseada no egoísmo, nos interesses individuais, todos aqueles que vivem ao estilo de Jesus são incompreendidos. Se o mundo vive em função do poder e da ostentação, do lucro e dos juros, quem mostra que a vida pode ser vivida no dom e no serviço aos outros torna-se uma voz incómoda para o desenvolvimento do sistema capitalista.

Por isso, permanecemos na morte quando escolhemos a via do facilitismo, quando vivemos para o que é terreno, quando nos comprometemos com o que é finito. Permanecemos na morte quando não somos como aquele Pai misericordioso que prepara a festa para o filho que ele jugava perdido. Permanecemos na morte quando não somos como Zaqueu que tudo mudou em si para hospedar Jesus no seu coração. Permanecemos na morte quando não somos como aquele samaritano que tratou das feridas de quem tanto sofreu. Permanecemos na morte quando não somos como aquele bom Pastor que não descansou enquanto não encontrou a sua ovelha.

Vivemos por estes dias o final da Quaresma e o início do tempo Pascal. A morte e a ressurreição de Jesus trazem-nos uma mensagem clara: a vida eterna não é uma condição a que acedemos quando morrermos. Pelo contrário, a vida eterna pode ser vivida no presente, quando escolhemos existir numa comunhão constante com o nosso Deus e, consequentemente, com os nossos irmãos. A vida eterna é uma vontade nossa à qual podemos aceder através da escolha que fazemos – amar. O amor mais forte do que a morte é aquele que foi vivido por Jesus. E é a este nível de Amor que cada um de nós cristãos deve aspirar e, consequentemente, anunciar. É este Amor que nos ressuscita, que nos levanta, que nos faz sair dos túmulos onde tantas vezes nos encerramos.

A Fé não nos livra de uma morte física, mas para quem crê, a morte não é a última e definitiva realidade. A ressurreição de Jesus é a resposta de Deus à vida por Ele vivida, ao seu modo de viver no Amor até ao extremo. O Amor ensinado por Jesus é profecia e antecipação para todos nós, seus amigos, destinados, com Ele e por Ele, a esta mesma ressurreição. Que a Páscoa que celebramos a cada ano faça de nós, em cada dia, uma pessoa de passagem, em caminho, em andamento ao encontro da Terra Prometida. Que saibamos escolher sempre a via do Amor para a vida em Amor. E assim jamais morreremos. E assim para sempre viveremos.

No primeiro dia…

Reflexão para o mês de março de 2023

Que queres que te faça?

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Jesus parou e mandou que lho trouxessem. Quando o cego se aproximou, perguntou-lhe: «Que queres que te faça?» Respondeu: «Senhor, que eu veja!»” (Evangelho segundo São Lucas – Lc 18, 40-41)

O episódio do cego de Jericó é um dos muitos relatos de cura descritos nos Evangelhos. Estas recuperações milagrosas narradas pelos diferentes evangelistas nunca são apenas um mero tratamento físico que é dado aos vários doentes que se apresentam diante de Jesus. Estas curas vão para além disso e ultrapassam a noção redutora de biologia. Estas curas são sempre muito mais emocionais do que somente físicas. Cuidando-se do interior dá-se um novo impulso ao que é exterior.

Nesta passagem, o enfoque é dado à cegueira. Nos Evangelhos, a cegueira tem um significado espesso que importa acentuar. Esta cegueira refere-se, sobretudo, à parte emocional, ao bloqueio afetivo que, tantas vezes, nos impede de ver e, consequentemente, ser.  Quando os olhos da alma estão fechados, não conseguimos vislumbrar o que Deus tem para nos mostrar. Por conseguinte, não conseguimos ver a outra margem nem antecipar uma passagem. Só conseguimos ver o imperfeito, o erro, o inconveniente. Como é possível, então, começarmos realmente a ver? Ultrapassando esta cegueira emocional que consiste em não esconder o desejo de Deus que habita em nós e em não desprezar a nossa vontade de caminhar ao encontro de uma Vida maior.

Nos nossos dias, estamos, muitas vezes, ameaçados pela cegueira do conformismo, da intolerância, da hipocrisia, do preconceito. Vivemos dominados pela cegueira da pressa que a sociedade nos impõe e pelo auto-centralismo. É preciso permitir que a Boa-Nova de Jesus nos retire as vendas e nos mostre o caminho de luz, onde poderemos ser homens e mulheres de olhos grandes que contemplam a vida na sua vulnerabilidade, profundidade e existência. Todos nós precisamos desta cura do olhar. Todos nós precisamos que Jesus nos faça ver de um modo diferente, precisamos que Ele nos permita aceder a uma visão nova da realidade. Um modo de entender para além dos preconceitos, das parcialidades, dos julgamentos.

Em várias passagens do Evangelho, encontramos a importância do olhar, do ver, do observar. Deste ver com o coração, do aprender a ver para além das evidências, do ver o que não se vê. E não se trata de nenhum truque mágico, pois se assim fosse estaria ao nível do impossível, do irrealizável, do distante. A perspetiva com que vemos a vida é determinante para a sabermos viver. Jesus ensina-nos a ver a vida para a vida viver. Um olhar novo, puro e límpido faz-nos ser de forma mais plena, mais íntegra, mais contemplativa. Aprender a ver de uma nova perspetiva traz-nos uma maior espiritualidade para a nossa vida quotidiana. Faz-nos ler os acontecimentos diários com uma luz diferente, com uma confiança serena, com uma certeza de um Amor sempre maior.

Aparentemente banal, mas inegavelmente extraordinária é a questão que Jesus coloca àquele cego. “O que queres que te faça?”. Esta pergunta é também para nós, hoje, no nosso mundo, nos nossos quotidianos. “O que queres que te faça?”. Sim, porque a escolha é sempre nossa. Deus nunca se impõe. Ele apenas se disponibiliza. Sou eu que digo sim à construção de uma relação plena, amadurecida e trabalhada com Ele. “O que queres que eu te faça?”. Responder a esta questão implica-nos, traz-nos responsabilidades, faz-nos assumir o leme da nossa embarcação. Ao dar uma resposta, eu penso-me, eu vejo-me, eu conheço-me e, assim, vou crescendo na minha relação de fé adulta e construída. “Uma pergunta é uma máquina de fazer ver.”, diz o Cardeal Tolentino. De cada vez que nos questionamos, de cada vez que procuramos saber mais, de cada vez que nos expomos ao pensar, estamos a encontrar uma nova forma de ver, de conhecer, de viver. As perguntas sobre a vida não nos livram de todas as dúvidas nem nos fazem encontrar todas as repostas que desejaríamos, de imediato, obter. Mas são estas questões que nos encaminham, que nos despertam, que nos abrem horizontes. A vida é sempre mais feita de perguntas do que de respostas precisamente porque cada dia é um momento de temporalidade e de infinito.

A resposta daquele cego é a nossa resposta. O seu pedido é o nosso pedido, é o grito de uma vida nova, é expressão de um desejo de um começo novo dirigido a Deus. E este grito lançado traz consigo novas questões. Querer ver implica sempre confiar no que não se vê para, então, se conseguir ver. E o que é que eu escolho ver? Como perspetivo eu a minha realidade, o meu dia-a-dia, aquilo que eu sou e como sou? Ver implica aprendizagem, construção, busca.

Aquele cego em Jericó pediu a Jesus, “Senhor, que eu veja”. Que seja também este o nosso pedido. Senhor, que eu te veja sobretudo quando a tempestade aparece, quando o medo me domina, quando a morte se instala. Senhor, que eu veja a tua Luz que não se apaga e que brilha desde o início da vida. Senhor, que eu te procure como te procurou aquele cego, mesmo sem te conseguir ver.

“Senhor, que eu veja”. Ensina-me a ver, a saber ver, a aceitar o que estou a ver, a ver na tua presença e com a tua presença. Ajuda-me a compreender que tudo o que me acontece faz parte do meu processo de vida, da minha história, da minha identidade. Senhor, que eu saiba viver através do que me é dado acontecer. Que eu te encontre sempre no que me acontece. Que eu veja a vida dinâmica, orgânica, edificada em ti.

“Senhor, que eu veja.” É este o pedido diário de cada cristão. Uma prece para todos os dias. Para todos os dias em que a vida acontece, recomeça, segue viagem. Senhor, que eu te veja porque tu tornas a minha vida maior, tu amplias as minhas possibilidades, tu acolhes os meus desafios. Tu fazes da minha vida uma história de amor, uma viagem interior, um anúncio de possibilidades infinitas.

No primeiro dia…

Reflexão para o mês de fevereiro de 2023

Uma Luz que não se apaga!

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

“Assim deve brilhar a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai que está nos Céus.” (Evangelho segundo São Mateus – Mt 5, 16)

“Estórias Abensonhadas” é o título de um livro do criador de palavras e escritor Mia Couto. Considero esta expressão muito feliz e muito verdadeira. Somos, de facto, este misto de bênçãos e de sonhos, somos “abensonhados”. E a nossa vida, com todas as suas alegrias e tristezas, avanços e recuos, risos e choros, é um conjunto de histórias que reflete esta inegável variedade. Em todos os tempos, Deus escolhe-nos, chama-nos pelo nosso nome e conhece quem somos.

Nesta passagem do Evangelho de São Mateus, Jesus reforça-nos esta bênção. Somos feitos de Luz. Jesus diz-nos que nós já somos esta Luz. E Ele confia em nós, nunca o deixando de o fazer em momento algum. Jesus encoraja-nos a tomar consciência disso mesmo, ao procurarmos ser e viver essa Luz. Ser esta luz através das nossas obras, dos nossos movimentos, das nossas idas e vindas. Todos nós cristãos somos chamados a agir de um modo comprometido. Jesus convida-nos a segui-lo e espera que este nosso seguimento se manifeste num estilo de vida. Anunciamos Jesus através daquilo que somos, de quem somos, daquilo que vivemos e escolhemos.

Por isso, não pode existir um cristianismo que não esteja envolvido nos desafios atuais que a nossa sociedade apresenta. O cristão deve estar onde a dignidade é ameaçada, onde a injustiça quer dominar, onde os irmãos são rejeitados. Ser cristão não é nunca viver à parte. Ser cristão é fazer parte da parte, de todas as partes. O cristianismo autêntico, real, concreto vive-se, mostra-se, apresenta-se. Por isso, a vida do cristão é sempre a sua primeira mensagem. O cristão humaniza os ambientes, os contextos em que habita. O cristão torna visível, com a sua vida, a profundidade das coisas, o mistério de Deus.

Todos nós temos essa luz que atrai quem nos rodeia. Felizmente, não faltam exemplos de pessoas que fazem da sua vida um hino à bondade, ao altruísmo, à relação. Mas aqueles que acreditam que esta nossa luz vem de Deus, sabem que esta luz é mais verdadeira, mais universal, mais comunitária. A luz do cristão nunca brilha sozinha. A luz do crente nunca existe no singular. Não é a minha luz, é a luz de Deus para o mundo. Através do meu caminho, das minhas escolhas, eu deixo que Deus venha ao mundo. Deus diz-se presente no mundo atual através daquilo que o cristão é. Por isso, a nossa tarefa enquanto discípulos de Jesus é deixar transparecer essa luz que em nós habita, é ser sinal da sua presença divina no meio dos homens.

A missão do cristão é manter esta luz acesa quando, tantas vezes, é mais fácil diminuí-la ou até mesmo apagá-la. E não precisamos de culpar os outros, as circunstâncias, o mundo. A responsabilidade é, muitas vezes, apenas nossa. Quando deixamos de falar em esperança, quando vivemos a indiferença, quando não sabemos ser gratos, quando silenciamos a vontade de pertencer, quando fazemos cálculos em vez de amar. De cada vez que esta luz se apaga, deixamos que a aridez da nossa alma cresça. Tornamo-nos profissionais da tristeza, da negatividade, do desespero. Tornamo-nos menos quando não nos permitimos ser mais. Assim, o maior projeto humano é não deixar que o mundo, tantas vezes agreste, nos seque, é não permitir que os incêndios quotidianos nos queimem a vontade de sonhar, é não possibilitar que o fim da linha faça parte do nosso desenho.

Nesta passagem do Evangelho, não é por acaso que Jesus refere, quase em simultâneo, luz e mundo. Isto acontece porque não se pode dissociar estas duas realidades. Um cristão precisa do mundo e Deus desafia-nos a abraçá-lo, a acolher as suas circunstâncias e a viver de um modo íntegro neste lugar de tanta contradição. O cristão não é uma realidade abstrata ou inconcreta. O cristão é chamado a exercer, com a sua luz, um poder modificador. Este é o maior tesouro que Deus nos dá. Podermos ser, com Ele e por Ele, Luz para um mundo novo. Por isso, devemos perguntar-nos: o que faço com esta luz que me é dada? Como pode a minha vida refletir esta luz que me foi oferecida?

A nossa luz brilha sempre que os nossos olhos não se fecham, sempre que continuamos a caminhar até à Terra Prometida, sempre que decidimos seguir viagem. Esta Luz é vida que vive em cada dia nosso. Vivermos em relação é condição fundamental para descobrirmos em nós luzes que levávamos e não víamos. Todos temos esta luz. E temos escolhas. Podemos esconder esta luz e fingir que não é nosso o papel de fazer do mundo um lugar de gratidão. Ou podemos revelar esta luz e iluminar os dias que nos são dados, mostrando ao mundo como é possível fazer caminho em paz, fraternidade, comunidade.

Deus chama-nos a todos a sermos esta luz, sem condições ou restrições. A todos nos é oferecida esta possibilidade, a de sermos luz. É desafiante? Muito. É exigente? Tantas vezes. É caminho de vida? Sempre. A essencialidade do nosso ser humano só se completa quando aceitamos dar a vida pela vida desta luz. É sempre dando que recebemos. É sempre iluminando que somos iluminados. Que possamos ser, em cada dia, a Luz que vem de Deus, esta luz que nunca se apaga em nós. Que a nossa Luz brilhe sempre entre nós.

No primeiro dia

Reflexão para o mês de janeiro de 2023

A melhor parte!

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

“Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada’” (Evangelho segundo São Lucas – Lc 10, 41-42)

Agora que o ano civil chegou ao seu final, costuma ser este o tempo propício para a sociedade fazer os seus balanços e avaliações, idealizando e enumerando projetos futuros. É também por estes dias que muito se fala em escolhas e opções. Em várias etapas da nossa vida somos confrontados com escolhas importantes. A escolha de um curso, de amizades e amores, de um sítio para viver. Também nos deparamos com outras escolhas bem mais banais, a escolha de uma peça de roupa para usar numa festa, a escolha de um filme para ver, a escolha da ementa diária. A sociedade prepara-nos – ou tenta preparar-nos – para sabermos fazer as escolhas mais compensadoras, mais enriquecedoras, em que cada um sai sempre a ganhar. Há cursos para tudo, para que nada falhe, ninguém se confronte com o erro, tudo seja perfeito. Ora, acontece que a vida tem sempre formas de nos dizer que nós somos um processo, um caminho feito de avanços e recuos e que é tantas vezes na fragilidade e no erro que encontramos a possibilidade de descobrir o nosso ser, de saber quem somos.

No Evangelho de Lucas, quando se reúne com as irmãs Marta e Maria, Jesus menciona “a melhor parte”. O que significa escolher a “melhor parte”? Parece óbvio que todos nós aspiramos a esta escolha, a optar pela melhor parte. Ninguém quererá, com certeza, escolher a pior parte. Contudo, muitas vezes, a pior parte acaba por ser mesmo a nossa escolha, precisamente porque não sabemos bem o que significa, para nós, a “melhor parte”. Ao contrário do que a sociedade nos diz, escolher a melhor parte não é querer ter mais, querer comprar mais, querer ser superior aos outros. Escolher a melhor parte implica uma visão mais humanizada, mais empática, mais comunitária. Escolher a melhor parte é, tantas vezes, fazer menos, dizer menos, ser o último, aparentemente escolher a perda, optar pelo que é mais fraco, mais frágil, mais simples. Jesus faz-nos uma promessa, dá-nos uma esperança que não morre ao dizer-nos que “a melhor parte” nunca nos será tirada porque é eterna, porque é caminho infinito, porque não está sujeita à sucessão dos dias e das horas nem à erosão do material. Por isso, a melhor parte raramente será a do sucesso, a das vitórias, a do materialismo, a dos prémios. A melhor parte será sempre aquela em que eu consigo ser mais comunitário, mais presente, mais irmão. A melhor parte é sempre uma possibilidade em cada dia que nos é dado.

Nesta passagem do Evangelho, ao referir-se à “melhor parte”, Jesus chama também a atenção para a nossa essencialidade, para a importância que damos à nossa dimensão espiritual. Estaremos nós ocupados com esta nossa essência? O que fazemos para cuidar do nosso lado espiritual? Como tratamos daquela nossa dimensão que tantas vezes permanece oculta e é aparentemente ausente de valor? Que espaço damos ao cuidado para com aquela nossa vertente que não se encaixa nos estudos, nas profissões, nos sucessos sociais? Como cuido eu de mim quando não sou a profissional, a mãe, a irmã, a dona de casa? Esta passagem do Evangelho de Lucas tem sido, muitas vezes, injustamente mal interpretada, pois tem sido vista numa dualidade antagónica entre a boa pessoa, Maria, e a outra a quem Jesus repreende, Marta. Ou então, entre o favorecimento dado à oração em detrimento da vida ativa, como se fosse possível estancar estas duas vertentes, a da vida orante e a da vida mundana. Na nossa comunidade, nós sempre procuramos que essa separação entre a nossa vida de prática religiosa e a nossa vida como cidadãos do mundo não existisse. Nunca nos vimos como umas pessoas ao fim de semana (na catequese, nos encontros, nas eucaristias) e outras durante a semana (profissionais, membros de uma família, cidadão). Somos sempre um todo, somos um conjunto de tudo o que vamos escolhendo, vivendo, sentindo. O ser humano acaba por sofrer porque vive precisamente esta incoerência, porque se compartimenta em dimensões múltiplas, porque é um quando está a trabalhar, porque é de outra forma quando está em família, porque é ainda de uma outra maneira quando vive os seus ditos tempos livres. Somos todos muito mais completos e verdadeiros se escolhermos ser os mesmos em todas as dimensões da nossa vida. Ser cristão é, antes de mais, querer ser uma testemunha de Cristo, um mensageiro da sua Palavra de Amor, um anunciador de que a Vida é sempre mais. Ser cristão é escolher sempre a melhor parte, o que implica trazer a vida de Jesus para a nossa própria vida. Ser cristão é ser coerente todos os dias. Só assim encontraremos a tal “melhor parte”.

Jesus não condena a irmã que está atarefada a preparar a casa para o receber, mas chama a atenção para o excesso de preocupação que ela parece sentir. Quantas vezes isto nos acontece! Preocupamo-nos tanto em ter tudo preparado, tudo perfeito, para que ninguém nos possa criticar ou para que não haja nenhuma falha e nem nos apercebemos que o momento pelo qual aguardávamos já está agora a acontecer. E acabamos por perder a oportunidade de o viver em serenidade. Saber escolher a melhor parte é sabermos estar disponíveis para o encontro, é sabermos estarmos próximos, é relativizar as pressas e as preocupações, é sentir quando é importante estar, simplesmente estar. Tudo na vida de Jesus nos mostra que não é na perfeição que a vida nasce, não é quando temos tudo preparado que a vida acontece, não é quando dominamos as circunstâncias que a vida se faz vida em abundância. Há que saber acolher e aceitar o que a vida nos dá, o que não é perfeito, o que não dominamos, o que nos parece diferente do que idealizamos, pois é tantas vezes nesses momentos que verdadeiramente encontramos o que andávamos à procura. A tal “melhor parte”. Aquilo a que podemos chamar a nossa sorte grande.

A melhor parte. Saber estar presente. Saber estar perto. Acolher este Jesus Salvador que vem até nós, sem se impor, sem se tornar dominador. Somos nós que fazemos esta escolha. É sempre nossa a liberdade de o escolhermos. Somos nós que lhe damos espaço na nossa vida para Ele nascer a cada dia connosco. Somos nós que abrimos os olhos do nosso coração para o vermos nascer em nós e por nós. E para, como Maria, nos sentarmos com Ele e sentirmos que, com Ele, viveremos sempre a melhor parte. A nossa melhor parte. A nossa sorte grande.