O Cristianismo está a morrer?

José Tolentino Mendonça, Expresso

Um artigo de Guido Ceronetti nas páginas do “La Repubblica” reacendeu a questão, pelo menos entre alguma intelligentzia católica: “O cristianismo está a morrer?” Ceronetti não tem dúvidas e vê os seus sinais por toda a parte, mesmo se a “anestesia total” e mque vivemos nos traga alheados do alcance desta “enorme amputação”. Segundo ele, não está longe o dia em que se verifique na Praça de São Pedro o que Ingmar Bergman filmou em “Luz de Inverno”, onde o pastor Ericsson aparece a celebrar missa numa capela completamente esvaziada de fiéis. O cenário, o rito, o oficiante estarão, como ali, presentes: as multidões é que já não.

Qual o motivo? Guido Ceronetti não hesita em relembrar um sibilino aforisma de Emil Cioran: “O cristianismo morreu quando deixou de ser monstruoso.” Que o cristianismo tenha perdido a sua monstruosidade é, para Ceronetti, um facto de certa maneira inevitável, pois todos os monoteísmos caminham para a sua falência (e ele aproveita a oportunidade para prever, por exemplo, depois da morte do cristianismo, a agonia próxima do Islão). A questão não é, portanto, essa, mas sim o que a tornou tão premente nos tempos que correm. O que é que acelerou a morte do cristianismo? E a resposta que ele dá, sendo extraordinariamente sedutora para os que cultivam a religião como a guloseima requintada que acompanha o chá, e da qual Marcel Proust falava com a maestria que sabemos, não deixa de ser de um simplismo inusitado em termos de leitura da realidade. Para ele, o catolicismo deixou de ser monstruoso (leia-se, impressivo, loquaz, divino) quando os papas colocaram de lado os tronos gestatórios e a retórica visual do poder; quando as liturgias adotaram os vernáculos; quando, com o Concílio Caticano II, prevaleceu uma visão pastoral e dialogante da relação de Igreja com o mundo; ou, mais recentemente, quando o papa Bento XVI decidiu resignar.

É curioso constatar que, para os profetas da morte do cristianismo, este seja no fundo uma realidade medieval, inseparável do poder do Estado e, inclusive, dominando-o, constituindo o padrão único de conduta e de aspirações de uma sociedade tendencialmente homogénea, e capaz de impor-se a toda a linha: individual e coletiva, cultual e cultural, ética ou estética. Esquecem-se que o cristianismo nasceu de uma dúzia de discípulos hesitantes à volta de um pregador perseguido; que a relação com as multidões e com os aparelhos do poder foi tudo menos linear e pacífica; e que a primeira, e mais estrondosa, catedral cristã foi (e continua a ser) a memória de um sepulcro vazio, no meio de um jardim. O debate a fazer em torno do cristianismo não é certamente o da sua agonia, mas o da recomposição em que ele hoje vive. É precisamente por estar vivo que o cristianismo se reconfigura, desloca os seus âmbitos, procura e tansmite outra perceção de si. O estremecimento inegável que atinge a esfera do religioso explica-se não tanto pela expressão de Ceronetti, “monoteísmos em agonia” quanto por aquela outra, proposta pela socióloga Danièle Hervieu-Léger, a de “religiões em movimento”.

Pois, o que será o cristianismo do futuro? O teólogo Karl Rahner escreveu, como uma espécie de testamento, três coisas que fazem pensar: 1) o cristianismo voltará a ser formado por pequenas comunidades, mas vivendo com maior entusiasmo e simplicidade a sua fé; 2) a adesão à crença não acontecerá por pressão sociológica, mas por um caminho pessoal, livre, maturado e esclarecido; 3) o cristianismo perderá relevância politica e estratégica, mas reganhará espaço para afirmar o santo poder do coração.