Pedro Mexia na E, revista do Expresso
A heresia cristã a que se chamou “novacianismo” deve a designação a Novatus, ou Novaciano, um teólogo do século III que chegou a ser proclamado Papa, numa eleição fraudulenta, depois invalidada. Novatus era um homem brilhante e culto, que tinha lido os estóicos. Pagão ou judeu, não se sabe, converteu-se, e submeteu-se a um exorcismo. Então caiu doente, e baptizaram-no in articulo mortis. Ele, porém, sobreviveu. E tornar-se-ia conhecido como proponente de uma tese radical que se pode formular assim: quem renega a fé não pode regressar, ainda que manifeste arrependimento. Isso aplicava-se até aos cristãos que cometiam apostasia para escapar às perseguições movidas pelos romanos. Para Novatus, um eventual retorno à Igreja desses relapsos dependia de um novo baptismo, de um começar de novo. O novacianismo, doutrina inclemente, acabou condenada pelo Papa e o seu inspirador excomungado.
É curioso que alguns sectores ditos ortodoxos da Igreja Católica contemporânea se comportem quase como seguidores dessa heresia arcaica de há dezoito séculos. Embora tenham deixado cair a exigência de um segundo baptismo, o neo-novacianos mostram-se mais ultras do que Novatus quando sugerem que não é sequer preciso abandonar a fé para ser posto à margem: basta cometer um pecado considerado grave. Pensemos, como exemplo, na controvérsia dos “divorciados recasados”. Trata-se da impossibilidade de os católicos que se divorciaram e que voltaram a casar civilmente terem acesso à comunhão. O matrimónio, tal como a comunhão, é um sacramento, ou seja, um sinal da Graça divina. E Cristo foi explícito quando afirmou “não separe o homem o que Deus uniu”. Argumentam alguns católicos que, sendo o vínculo indissolúvel, então todos aqueles se divorciam e voltam a casar afastam-se de tal modo da vontade divina que não se podem aproximar da comunhão, isto é, da intimidade com Deus. Mas quem se divorciou e se casou outra vez abandonou forçosamente a fé e a boa vontade? Ou debateu-se apenas com um fracasso pessoal e com uma tentativa de recomeço? O cardeal Walter Kasper, num encontro preparatório do sínodo sobre a família, cuja segunda etapa decorre agora no Vaticano, notou que há uma discrepância entre o ideal de família, às vezes irrealista e romântico, e as famílias tal como elas existem. Lembrou Kasper que até no Génesis o alegórico casal Adão e Eva tem desavenças profundas. Muita gente já experimentou, num casamento, a “expulsão do paraíso” e outras decepções, como aconteceu a essas duas personagens. Por isso, o cardeal alemão enfatizou a existência de um “realismo bíblico” matrimonial que não se confunde com um rigorismo insustentável nem com um laxismo fútil. Kasper defende que a doutrina da indissolubilidade não precisa de ser revogada. À luz do catolicismo, um casamento é indissolúvel perante Deus. Mas os laços humanos são frágeis e muitos casamentos acabam por fiasco relacional, não por colapso ético. Alguns dos católicos que se divorciam, e que tentam de novo, continuam empenhados numa vida cristã. E têm esperança de que não ficarão excluídos dos sacramentos quando deles mais precisam. Trata-se, nesta questão como em tantas outras, de não confundir o malogro com a maldade, um eventual pecado com uma condenação definitiva. A misericórdia não dispensa a norma. Mas o legalismo sem misericórdia é um cristianismo equivocado. Da actual assembleia de bispos não se espera uma abdicação, uma rendição ao ar dos tempos. Espera-se tão-só compaixão e sensatez. Espera-se que, parafraseando John Henry Newman, não se fale da fé sem ouvir os fiéis.
Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia