Luís Pedro Nunes, E, Expresso, 17.9.2016
Setembro é o mês ideal para recomeços
Esperar é o novo luxo — anunciou-me pomposamente a revista que trazia a ilustrar três jovens “estilo Julio Iglesias meet Jud Law com banho hipsterismo”, rindo alegremente e com pouco ar de que estavam na seca do que quer que fosse. “A última tendência no mundo dos poderosos é exercitar a paciência, seja para conseguir uma roupa por medida ou uma mesa.” Hesitei se deveria ler. Já dissertei sobre esse luxo supremo que é poder usufruir do silêncio na vida quotidiana ou do poder não ter um telemóvel. Mas esperar? O termo equivale ao que nós entendemos como tal? Com tanta contradição em si (e dado que era a revista do “El País”, enfim, não era um pasquim), exercitei a minha paciência e decidi ler. Vamos lá ver que nova bizarria é essa dos tais ricos e poderosos na sua eterna capacidade de humilhar os mais fracos.
Eis o resumo: se esta sociedade está dominada pela gratificação imediata, o “maior dos luxos consiste, paradoxalmente, em querer aquilo que se faz esperar”. Ou seja: se o maralhal tem tudo na hora, os sacanas dos 1% querem coisas demoradas. Se consigo a antestreia, a cunha para o restaurante cheio, então… “eles” não. Isto não tem nada de inveja aspiracional, mas de reflexo sobre a nossa existência. Já lá vou.
Vejamos a moda. Antigamente havia várias coleções ditadas pelas estações do ano. Mas isto do imediatismo é tal que até já há marcas, como a Burberry, que na coleção apresentada a 19 de setembro — dada a hiperaceleração da vida moderna — acabou com a distinção de “temporadas de inverno ou verão”. Se tudo for “agora”, então não é preciso estações do ano. O agora é sempre. E o agora não tem data. Mas não pode ser amanhã, muito menos para a semana. Para o ano, então? Só um “rico e poderoso” pode esperar. Só ele tem os “meios” para esperar. Para poder fazer da “paciência” e do “esperar” sinónimos de luxo e experiência positiva. Os gajos parece que estão a gozar com a malta. Não sei se pensam nisto conceptualmente ou se é uma maldade no ADN.
Mas esperar o quê? Meses por um fato na Saville Road em Londres ou um lugar naquele restaurante que por mais dinheiro que tenha só aceita reservas para daqui a um ano? É o contraponto à nossa existência, dos banais. Esperar tornou-se um luxo, porque a nossa vida nem pode parar para que pensemos na nossa própria vida.
Não vale a pena perder muito tempo a falar sobre a perda dos marcos temporais que ritmavam o ano e foram desaparecendo (plantar, ceifar, rezar em dias certos, celebrar feriados), mas há de facto uma homogeneização da vida. Ou caos de significados. Não vale a pena referir a confusão que é entrar em meados de agosto numa loja e estar a exibir a coleção de inverno. O tempo vai ganhando uma certa linearidade, em vez do conceito circular que nos ajudava a reorganizar a vida. Já não regressam as frutas sazonais (há-as durante todo o ano). Não espero pelo próximo episódio da série (vejo a temporada toda de uma vez); o trabalho desestrutura-se ao longo da semana e do dia.
A tal “Geração Já” somos todos nós que achamos inaceitável que um filme leve 6 minutos a descarregar no PC, ou que o serviço do banco online — que uso em casa para pagar todas as minhas contas — esteja momentaneamente em baixo (onde é que já se viu?), quando ainda há uma década papava, sem reclamar, umas duas horas na fila da EDP quando me atrasava no pagamento?
Restam alguns marcos que usamos para estruturar as nossas vidas. E setembro, este belo setembro, na nossa cabeça, acaba por ser um segundo janeiro, naquilo que esse primeiro mês tem de bom. E sabemos isso sem o saber. Devíamos pensar melhor no assunto. É como se fosse uma segunda hipótese de refazermos os objetivos do ano ou, pelo menos, da vida quotidiana a curto prazo. E isso é essencial para reorganizarmos a vida.
Os tais ricos e poderosos podem achar que esperar é o que está a dar. Nós temos de ter objetivos e uma visão global da vida. Os investigadores chamam-lhe o “efeito nova oportunidade” (fresh start) e é dos últimos pilares temporais que — juntamente com janeiro — obriga a uma reflexão sobre a vida como um todo ou pelo menos a ponderar tomar iniciativas e modificar pequenas coisas.
Sem estes marcos, acabamos por perder memórias e a não parar para rever o passado e reprogramar o futuro. Setembro acaba por estar de alguma forma marcado em nós porque todos temos a ideia de ser um recomeço, à conta do regresso às aulas, e muitos de nós acabamos a projetar essa experiência dos nossos filhos em nós próprios. Para mais, tendo normalmente agosto e as férias sido um acumular de experiências (amores, viagens, etc.), há a necessidade desse “novo eu” olhar para a vida e repensar se aquilo que queria em julho é o mesmo que se quer em setembro. Este “efeito recomeço” tem a capacidade de tirar as pessoas do piloto automático, de as fazer questionar, de as colocar a fazer promessas tipo “vou deixar de fumar”. E quem não faz férias em agosto acha todo o mundo em setembro, com uma certa energia determinada para a mudança, insuportável.
E há quem se deprima em setembro. Não faça isso. É um recomeço. Uma primavera, sem a ansiedade do verão e com objetivos novos e vontade de mudar. Enquanto isso, os tolos dos ricos estão à seca e à espera de um fato que só está pronto lá para 2018. Coitados. Ainda bem que só são 1%.