Arquivo da categoria: Opinião

Os refugiados estão nos textos do Natal

Resultado de imagem para paulo rangel"

Paulo Rangel, PÚBLICO 24.dezembro.2019

A condição de refugiado está radicada e gravada no código genético do cristianismo, na “história de vida” de Jesus.

1. O tempo de Natal é (ou era) por excelência o tempo das narrações dos chamados evangelhos da infância (Mateus e Lucas). Aquelas histórias, já de si não históricas, eram largamente recriadas e acrescentadas no imaginário popular e no encantamento infantil. Hoje, véspera de Natal, em plena crise global de refugiados, vale a pena voltar a esses textos fundacionais e tentar perscrutar quão além vão da tradição e da imaginação e quão fundo interpelam crentes e não crentes.

2. Evoquemos a propósito o Evangelho de Mateus (Mateus 2:13-23), quando relata a ida de Jesus, Maria e José para o Egipto, fugindo à perseguição do rei Herodes. Não há como esconder ou desvalorizar: Jesus e a sua família foram verdadeiros refugiados; não migrantes, mas sim refugiados. Jesus, seu pai e sua mãe tiveram de se refugiar no Egipto por serem o alvo de uma perseguição e estarem em risco de morte. Parece certo, nas esparsas linhas do texto, que a notícia de que tinha nascido o Messias foi vista por Herodes como uma ameaça política, uma ameaça à sua legitimidade enquanto rei dos Judeus. Daí que tenha mandado matar todos os primogénitos até à idade de dois anos. Convergem, pois, aqui as dimensões política e religiosa: Jesus foi o alvo – o alvo directo – de uma perseguição político-religiosa, que obrigou a sua família a refugiar-se. Nesta narração, encontramos ainda uma última menção, assaz relevante para o tema. Efectivamente, quando José decidiu voltar a Israel, pretendia ir para a Judeia, mas, porque aí reinava Arquelau, filho de Herodes, resolveu afinal instalar-se em Nazaré, na Galileia. Pois bem, mais uma vez, a sua escolha não foi livre; foi politicamente motivada. A condição de refugiado está, portanto, radicada e gravada no código genético do cristianismo, na “história de vida” de Jesus.

3. Sabemos bem que os Evangelhos da infância, seja em Mateus, seja em Lucas, se inscrevem na tradição literária do “Midrash”, bastante comum na escrita hebraica. Não se cura, ao invés do que o público crente e não crente geralmente supõe, de um relato histórico, susceptível de suporte factual e documental. Não há nele qualquer preocupação de “fazer história”. Existe isso sim o desígnio de “fazer pedagogia”, de fazer uma narração exemplar, de contar “uma” história – de contar uma história, com todo o potencial heurístico inerente.

O episódio da fuga de Jesus para o Egipto apresenta Jesus como o novo Moisés, Aquele que refaz o caminho antes feito pelo povo de Israel. Há até um paralelo expresso com Moisés na saga da “morte dos inocentes”. Recordando episódios que hoje são menos retidos: o Faraó tinha ordenado a morte de todas as crianças judias, exigindo às parteiras que as matassem. Como estas acabaram por não o fazer, ordenou então que as crianças fossem lançadas ao rio. Com o intuito de o salvar, a mãe de Moisés põe-no no rio Nilo, mas dentro de um cesto. A irmã de Moisés vai alertar a irmã do Faraó para a necessidade de encontrar alguém disponível para amamentar a criança, indicando como ama a própria mãe de Moisés. É bom de ver que, na passagem de Mateus, Herodes assume a figura do Faraó e Jesus surge como o novo Moisés. O desígnio da narrativa é evidente: Jesus é o novo Moisés, o novo libertador do povo de Israel.

4. Não é, portanto, apenas o Novo Testamento que nos oferece uma história de migração e de refúgio; é outrossim o Antigo Testamento, que, de resto, nos apresenta múltiplas situações de perseguição, degredo e servidão do povo hebreu. A história deste povo – todos o sabemos – é uma história constante de fuga e migração. Neste contexto, vale a pena chamar a atenção para o versículo 22 do capítulo 2 do Livro do Êxodo, em que se diz, a respeito da mulher de Moisés: “Ela deu à luz um menino, a quem Moisés pôs o nome de Gerson dizendo ‘Sou emigrante em terra estrangeira’.” Ora, o nome Gerson significa peregrino, “de passagem”, alguém que é hóspede, que não está na sua terra. Tudo isto demonstra que há na cultura judaico-cristã um estatuto próprio para o migrante, para o estranho, o estrangeiro. Se Jesus foi um autêntico refugiado, Moisés será talvez um migrante de segunda geração (já nasceu no Egipto).

5. Em suma, há na Bíblia um fundamento próprio, uma fonte directa, para o acolhimento dos refugiados e dos migrantes. O acolhimento do estrangeiro, do que teve de deixar a sua terra é, pois, um carisma judaico-cristão. Não se compreende, por isso, a estranheza e desconforto com que tantos vêem o apoio incondicional que o Papa Francisco dá aos refugiados. E muito menos se compreende o ataque que, na política italiana, Salvini e os seus seguidores – que invocam fervorosamente os valores do cristianismo – fazem ao Papa Francisco. É uma ferida aberta por causa da questão migratória e pela posição firme da Igreja que, incondicionalmente, está ao lado e do lado dos migrantes e dos refugiados.

Quando pensamos no estatuto do migrante ou refugiado, não estamos a falar numa decorrência pura e simples do mandamento do amor ao próximo – embora essa simples inferência fosse mais do que suficiente. A verdade é que há fundamento específico e literal para fazer do acolhimento dos migrantes e refugiados uma causa primeira daqueles que se revêem na matriz cristã. Este fundamento não é apenas cristão, mas judaico-cristão. Não é, aliás, por simples casualidade, que, a propósito da saga do povo hebreu, falamos na diáspora. Os judeus, por natureza, estavam fora da sua terra. Há, assim, um mandato a partir dos textos sagrados para cuidar dos refugiados, dos deslocados, dos migrantes, dos que estão em fragilidade porque estão fora do seu ambiente natural. Neste sentido, a ideia de acolhimento, de hospitalidade, de asilo, de auxílio e de integração pertencem ao núcleo mais genuíno dos valores cristãos. A liturgia do Natal também serve para o recordar, para o trazer de novo ao coração.

Chuva

Resultado de imagem para valter hugo mãe

Valter Hugo Mãe, Jornal de Notícias 22.dezembro.2019

Íamos de galochas para a escola e lamentávamos os guarda-chuvas que perigavam no vento. Raros de nós tinham impermeáveis, chegávamos a deitar mão de sacos de plástico mas, à entrada da escola primária, ensopados, éramos um só lamento e a normalidade absoluta.

A sala aquecia com um mísero fogão a lenha, perto do qual deixávamos casacos e camisolas, às vezes os cadernos. Secávamos a roupa interior no corpo, brancos pijamas, enquanto tremíamos e medíamos a fúria do tempo pelas vidraças, ouvindo sobre matemática e palavras com mais de três sílabas. O temporal era o inverno inteiro.

Nunca me passaria pela cabeça, então, que alguém quisesse dar nome à chuva. Sabíamos bem do que se fazia dezembro ou janeiro. O fim de janeiro era o pior do ano, o monstruoso frio, a humidade, o vento que deitava sempre abaixo as árvores mais sozinhas. Àquilo tudo, tudo junto, chamávamos apenas inverno. Demorava meses e podia aparecer na televisão por haver acidentes de carros e voarem telhas das casas mais velhas. A televisão lamentava muito o azar e a pobreza, que pareciam inevitáveis. Falhava muito a luz elétrica. Algumas cidades adormeciam às velas, era frequente. Toda a gente guardava velas e fósforos. Nós tínhamo-las em cada canto para o susto de ficarmos às escuras constantemente. Refilávamos abreviados porque íamos dormir sem sono, muito mal conformados.

Os estrangeiros puseram-nos agora a dar nomes à chuva. Vem a Elsa ou o Fabien, como se alguém chegasse com o imenso tamanho do céu, se abatesse por toda a parte e tivesse culpa. A contemporaneidade é tão feita de um espírito ofendido que nem o inverno passa como antes. Passa acusado.

Prometeram, contudo, que vamos ter um Natal em sossego. Acalmará a intempérie e usaremos os nomes do costume, como se chovesse ou ventasse sem necessidade de acusações. Talvez aí nos deva arrepiar o peito, onde verdadeiramente importa medir a invernia. É o que me impressiona no Natal: essa oportunidade de nos avaliarmos e, em consciência, decidir melhor para depois. Isso mesmo vos desejo. Uma chuva sem nome, sem culpados, apenas a bravura de resistirmos no bom senso e na poderosa cordialidade. Não esqueçamos nunca que a mais preciosa conquista do Mundo é a paz. Boas-festas. Um muito bom Natal a todos.

Religião e Espiritualidade

Anselmo Borges, Diário de Noticias 25.agosto.2019

1. Não haja dúvidas. A religião, concretamente na Europa, também entre nós, está em queda. O número de agnósticos e de ateus aumenta, para não falar na chamada “prática religiosa”, que desce a olhos vistos. O padre José Antonio Pagola escreveu recentemente um texto com o título “Depois de séculos de ‘imperialismo cristão’, os discípulos de Jesus têm de aprender a viver em minoria”.

Significa isto o triunfo do materialismo crasso ou o que está em causa é mesmo a religião institucional, mas não a espiritualidade? O que é facto é que tenho encontrado cada vez mais grupos interessados na espiritualidade e no aprofundamento da vida interior. Multiplicam-se esses grupos e também a bibliografia sobre o tema. Por exemplo, com sucesso escreveu recentemente o teólogo Francesc Torralba uma obra: La Interioridad Habitada, onde se pode ler: “A educação da interioridade não é, em caso algum, um luxo nem uma questão menor, pois tem como objectivo final o cuidar de si mesmo, e, para isso, desenvolver todas as potencialidades latentes no ser humano, como a memória, a imaginação, a vontade, a inteligência e a emotividade, mas também o fundo último do seu ser: a espiritualidade, admitindo que esta pode adquirir formas, expressões e modos muito diversos em virtude dos contextos educativos e dos momentos históricos. No modelo da interioridade habitada reconhecem-se dois magistérios: o exercício do mestre humano que fala e actua a partir de fora e o do mestre interior que habita lá no íntimo.”

Wook.pt - A Biografia do Silêncio

2. Hoje, quero referir-me concretamente a Pablo D’Ors, padre e escritor. Numa recente entrevista a José Manuel Vidal, director de ReligiónDigital, disse: “As formas tradicionais da Igreja não respondem à sensibilidade e à linguagem contemporâneas.” Numa outra entrevista, a La La Razón, declarou: “Boa parte do descrédito da Igreja deve-se a ela sucumbir ao ritualismo.” Pablo D’Ors publicou um livro célebre do qual se venderam já mais de 150 mil exemplares, com o título Biografia do Silêncio. E é o fundador da associação Amigos do Deserto, que conta com uma rede de meditadores com mais de 500 membros, porque, como afirmou: “Há uma ânsia espiritual muito grande nesta sociedade secularizada.” Deixo aí, a partir destas duas entrevistas, pensamentos que julgo ser urgente meditar.

Porque é que o livro teve tanto sucesso? “Uma das razões do êxito é precisamente a sua oportunidade. Surgiu num momento em que aumentava claramente o interesse pela meditação. O seu prestígio construiu-se sobre o desprestígio da religião. O facto de muitas pessoas terem abandonado as formas religiosas não quer dizer que a sua sede espiritual esteja saciada ou se tenha anulado. Persiste e é preciso procurar novas formas de a alimentar. A meditação é uma delas. Costumo dizer que a religião é o copo e a espiritualidade é o vinho, e o que nos sacia verdadeiramente é o vinho. A religião tem de estar ao serviço de suscitar a experiência espiritual, e nós, os cristãos, contentámo-nos com o copo. As formas, para ir ao fundo da questão, deixaram de ser formas para o conteúdo e encerraram-se em si mesmas. O mal não está no rito, mas no ritualismo. As pessoas não sentem que isso as alimente. A isto junta-se que a linguagem tanto verbal como gestual do cristianismo não responde à sensibilidade nem à cultura contemporânea.” Não podemos esquecer de que tão importantes como o património que recebemos, o Evangelho, são o homem e a mulher de hoje. Por isso, “a nossa fidelidade não é só ao Evangelho, é a este homem e a esta mulher de hoje. Se estivermos longe deles, dificilmente entramos em relação”. Impõe-se que se perceba que “as formas têm de estar ao serviço do fundo, e muitas vezes as formas perdem-nos, pois ficamos no formalismo e privamo-nos de ir ao núcleo da questão. Qual é a urgência fundamental para a Igreja de hoje? Uma renovação espiritual; que estejamos verdadeiramente no nosso centro”.

Para Pablo D’Ors, o silenciamento interior é uma necessidade de primeira ordem. “A meditação é uma prática de silenciamento e quietude. É um trabalho que se faz com o corpo e com a mente e cujo propósito fundamental é o autoconhecimento.” Quando muitas coisas exteriores se foram afundando, ele descobriu a aventura interior, que é um processo de higiene da mente e do coração: “Normalmente temos uma grande confusão intelectual e sentimental. Criámos uma cultura da exterioridade, representada fundamentalmente pelo telemóvel. Quanto maior conexão fora, menor conexão dentro. Perde-se a dimensão interior, porque a nossa cultura nos impulsiona e estimula para estar sempre fora.” Então, nas crises existenciais, as pessoas ficam desamparadas por dentro, pois nem sequer sabem se há “um dentro”. Por isso, “boa parte do êxito de muitas escolas de meditação radica nesta busca. Hoje, não falamos tanto de espiritualidade como de interioridade, que é o modo laico de dizer o mesmo”.

Precisamos de arrumar o nosso interior, para que haja mais espaço, pois, desse modo, distinguimos melhor. É como quando numa casa repleta de coisas começas a tirar o não necessário e começas a ver. Daí surge, paradoxalmente, o segundo fruto: a humildade. “Saber quem és, ter uma visão realista de ti mesmo, essa humildade, esse saber qual é o teu lugar, isso é o que te dá a paz interior.”

Pergunta-se se não há o perigo de estas correntes de espiritualidade serem um pouco individualistas, egocêntricas, ignorando a transformação do mundo. Responde: “Creio que a meditação autêntica não se afasta de Deus, mesmo que isso se não verbalize de maneira explícita. Quem verdadeiramente se conhece a si mesmo, mais cedo ou mais tarde, aponta para o mistério. Esse mistério poderá chamá-lo Deus ou não, mas Ele está lá. Em ti gerou-se uma atitude espiritual.” Quanto à denúncia e ao compromisso com a mudança das estruturas: sim, há o perigo de grupos espirituais caírem num espiritualismo desencarnado, mas a questão é de prioridades: “A justiça social, a denúncia, tudo isso, vem por acréscimo, é o fruto de estarmos centrados. Primeiro, vamos transformando a nossa própria vida. A oração, o nosso próprio espírito transforma-nos e, simultaneamente, vai transformando a vida à nossa volta, a vida familiar, a vida social, a vida do bairro. A vida da nação.”

Deve-se prescindir das religiões? De modo algum. “O mindfulness não é puramente laico, mesmo que os termos e as práticas se apresentem numa linguagem puramente secular. Isto é o que, modestamente, os Amigos do Deserto e eu queremos fazer com o cristianismo. Que seja uma tradução secular, para o mundo de hoje, da mensagem cristã. Para o Ocidente, a figura de Cristo é muito mais próxima do que a de Buda, e por isso o salto cultural que é preciso dar para ser meditador cristão é muito menor. Julgo que prescindir das religiões é um suicídio, porque isso significaria prescindir do nosso passado. Ora, quem prescinde do seu passado não sabe qual é o seu presente.” Não, não há o perigo de obsessão pelo “aqui e agora”. Porque “o sublinhado no presente não deveria fazer-nos perder de vista a importância do passado e do futuro. Recordar é passar a história pelo coração e ajuda-nos a compreender quem somos. Uma árvore sem raiz não se aguenta, o passado é a nossa raiz e é preciso cuidar dela. O mesmo digo do futuro. O homem não é sem projecção e projecto de si. A espiritualidade cristã sempre sublinhou o futuro, o horizonte, e a budista, o presente. Penso que estamos num tempo de síntese.”

A propósito, como se relacionam em Pablo D’Ors “o ego do escritor e o não ego do meditador?” “Devo dizer que para mim silêncio e palavra são duas faces da mesma moeda. O segredo da palavra é o silêncio e o do silêncio, a palavra. Uma palavra nasce matinal no coração do leitor na medida em que foi preparada no silêncio. Para que a palavra seja fecunda, tem de nascer do silêncio. Com o tempo, fui descobrindo que a minha dupla vocação, sacerdotal e literária, é a mesma.”

Então, não existe realmente o perigo maior, que consiste em ficar encerrado em si mesmo, no egocentrismo? “O ego (o eu), que não é outra coisa senão a tendência para auto-afirmar-se, é necessário para viver. Não se trata de matar o ego, mas de colocá-lo no seu lugar.” Por isso, quanto a escutar-se a si mesmo ou a escutar o outro, “é como perguntar o que é que é mais complicado: amar-se a si mesmo ou aos outros. É exactamente a mesma coisa. Por isso digo que a meditação é uma escola de escuta. Se aprenderes a escutar-te a ti mesmo poderás escutar os outros. Ninguém pode dar o que não tem.” Quanto ao egocentrismo: “Eu vejo-me agora a mim mesmo menos egocêntrico do que há uns anos. Mais magnânimo, com a alma maior. O critério para verificar que um caminho de meditação é autêntico é se te torna mais compassivo, mais justo e caritativo. Se o outro tem um papel mais importante na tua vida. A meditação corre o risco de perverter-te, se esquece a dimensão transcendente e se fica pela busca utilitarista de benefícios pessoais.”

O jornalista: “Chama-me a atenção que diga que é mais importante ser si mesmo do que alguém ‘bom’.” Pablo D’Ors: “Refiro-me a que o essencial é o indicativo da graça e não o imperativo moral. O decisivo para a construção de uma pessoa é experienciar o que é, e, na medida em que o fizer, comportar-se-á de uma maneira ou outra. Não temos de estar tão preocupados em ser bons, pela dimensão moral, como pela metafísica do ser. Sermos quem estamos chamados a ser. Se o formos, se na verdade fores tu, serás bom.” Objecção: “Haverá gente que seja ela mesma e seja egoísta.” Resposta: “Isso baseia-se numa visão do mundo, que é a minha, segundo a qual a luta entre a luz e a sombra não é paritária. O que há fundamentalmente é luz. Este ponto de partida não é subjectivo, é contrastável. Por exemplo, se contares quantos comboios descarrilaram hoje no mundo e quantos chegaram ao destino, verás que a imensa maioria chegou bem. Se fizermos o mesmo com tudo, vemos que o bem é significativamente mais. O que acontece é que os meios de comunicação social fazem-nos crer que o que existe é o mal, quando é o contrário. É como o céu e as nuvens: as nuvens podem tapar o céu, mas o que na realidade há é um céu. Estamos bem feitos.” Neste contexto, sobre a sua vocação: “Aos 18 anos. É como quando alguém se enamora e sabe que é a pessoa adequada quando a conhece. Foi uma experiência de encontro com o mistério, com a graça de Jesus Cristo. É uma sedução, um fascínio, um sentir que é o eixo vertebrador da tua vida, que lhe dá sentido, força. Foi a experiência do entusiasmo. Estar habitado pelos deuses, pelo espírito. A experiência de que havia algo substancial que tudo sustenta. Dessa experiência, a mais decisiva da minha vida, nunca duvidei.”

Qual é então o sentido da vida? “Redimir o mundo. Colocar luz onde há trevas, amor onde há desamor, esperança onde há inesperança e desespero, claridade na dúvida. Na medida em que fizermos isso, estamos bem e semeamos o bem.”

3. Está aí, bem à vista, a chave para entender a crise da religião e perceber a conversão de que a Igreja urgentemente precisa para ser o que Jesus quer. Ele passava noites na montanha a rezar e fez a experiência inexcedível do mistério de Deus como Abbá, Papá, querida Mamã. A consequência: amou a todos, por palavras e obras, a começar por aqueles e por aquelas que ninguém ama, porque Deus é o sentido último da existência, não caminhamos para o nada, porque Deus é Amor. Tomás Moro disse-o, numa síntese perfeita: “O fundamento da religião é o medo. O fundamento do cristianismo é o amor.”

Elogio do inútil

Anselmo Borges, Diário de Notícias 11.agosto.2019

1. Vivemos num tempo com algumas características deletérias. Por exemplo, não penso que seja muito favorável assistirmos em restaurantes a famílias inteiras a dedar num smartphone: o pai, a mãe, os filhos…, que quase se esquecem de comer e sem palavra uns com os outros. É bom estar informado, mas neste dedar constante perde-se o contacto autêntico da e com a família, esse estar presente aos outros mais próximos. E, com o tsunami das informações, incluindo as fakenews, fica-se sujeito ao engano, à confusão, e corre-se o risco de se estar a criar personalidades fragmentadas, alienadas, interiormente desestruturadas. E, ao contrário do que se pensa, dentro da conexão universal através das redes sociais, sofrendo uma imensa solidão.

A nossa sociedade é também avassalada pelo ruído e pela pressa. Toda a gente corre, sempre com a vertigem da pressa – para onde?, poder-se-ia perguntar. Para longe de si. Quando é que alguém está autenticamente consigo, sem narcisismo, evidentemente? E o ruído atordoador? Quem é que ainda consegue ouvir o silêncio e aquilo que só no silêncio se pode ouvir? A voz da consciência, a orientação para o sentido da vida, Deus? Quem se lembra do dito famoso de Calderón de la Barca, que escreveu que “o idioma de Deus é o silêncio”?

Parece que esta situação vem de longe. O dramaturgo Eugène Ionesco, já em 1961, se lhe referiu numa conferência, com estas palavras: “Vejam como as pessoas correm atarefadas pelas ruas. Não olham para a direita nem para a esquerda, preocupadas, de olhos fixos no chão, como cães. Caminham a direito, mas sempre sem olhar em frente, pois seguem maquinalmente um percurso já bem conhecido. Em todas as grandes cidades do mundo, é assim que acontece. O homem moderno, universal, é o homem atarefado, que não tem tempo, que é escravo da necessidade, que não compreende que uma coisa possa não ser útil; que não compreende sequer que, na realidade, o útil pode ser um peso inútil, opressivo. Se não se compreende a utilidade do inútil e a inutilidade do útil, não se compreende a arte; e um país onde não se compreende a arte é um país de escravos ou de autómatos, um país de pessoas infelizes, de pessoas que não riem nem sorriem, um país sem espírito; onde não há humor, não há riso, há raiva e ódio.” No mesmo sentido, chamando a atenção para “as ameaças que pesam sobre uma humanidade que não tem tempo para reflectir”, Ítalo Calvino escreveu: “Essas pessoas atarefadas, ansiosas, que perseguem um objectivo que não é um objectivo humano ou que é apenas uma miragem, podem de repente, ao ouvir o som de uma qualquer trombeta ou o chamamento de algum louco ou demónio, deixar-se arrastar por um fanatismo populista.”

2. Chegámos, deste modo, cavando mais fundo, à raiz da desorientação deste nosso tempo. Ela encontra-se na mercantilização de tudo, em função do lucro, na subordinação à lógica dos mercados. Afinal, como observou agudamente o filósofo Giorgio Agamben, “Deus não morreu. Tornou-se Dinheiro”. E Jesus já tinha prevenido: “Não podeis servir a Deus e a Dinheiro” (com maiúscula, como se fosse um nome próprio, um deus, Mammôn, em aramaico, a língua materna de Jesus). Como escreveu Nuccio Ordine, com a lógica do lucro, grande parte da Humanidade perdeu o direito de ter direitos, multidões morrem de fome; “transformando os homens em mercadoria e em dinheiro, este perverso mecanismo económico gerou um monstro, sem pátria e sem piedade, que acabará por negar também às gerações futuras qualquer forma de esperança”.

A citação recebo-a emprestada de Nuccio Ordine no seu livro A Utilidade do Inútil, um manifesto a favor do “inútil”. De facto, com a mercantilização de tudo e quando só vale o útil, o que serve na lógica do lucro, o que é eficaz e produtivo, a razão técnica e calculadora, tem sentido perguntar: o que vale a poesia, a grande literatura, a música, o saber pelo saber, as humanidades? É claro que neste universo utilitarista, “um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que um poema, uma chave inglesa mais do que um quadro, porque é fácil perceber a eficácia de um utensílio e cada vez mais difícil compreender para que servem a música, a literatura, a arte”.

Com a financeirização especulativa da economia, só ficam as leis cínicas do mercado e a aparente omnipotência do dinheiro. E a própria política fica reduzida a negócio(s). Já Rousseau tinha observado no seu tempo: “Os antigos políticos falavam sem descanso de costumes e de virtudes; os nossos não falam senão de comércio e de dinheiro”, como se tudo o que não dá lucro fosse supérfluo ou até perigoso. Mas, então, no quadro da lógica economicista do lucro, tem sentido perguntar: porque é que nos queixamos da teia infindável da corrupção?

Martin Heidegger chamou vigorosamente a atenção para os perigos do monopólio da razão técnica, instrumental. Porque a técnica não pensa, apenas calcula. E aí temos nós a razão que apenas se interessa pelo que se mede e calcula, pela quantidade, ignorando a qualidade. Mas, então, quem somos e o que é que somos, na abertura constitutiva à Transcendência? Pensando apenas nas “finalidades técnicas” e no “para que serve?”, pergunta-se: onde está a beleza de um pôr do Sol, para que serve a ternura de um beijo, o florir de um sorriso de criança, a honra, a dignidade, o pensamento crítico, a gratuidade, a filosofia, o estudo das Humanidades, o mistério do Ser e de se ser? Tudo isso é inútil? No entanto, como disse o biofísico e filósofo Pierre Lecomte du Noüy, “na escala dos seres, só o Homem executa actos inúteis”, acrescentando dois psicoterapeutas, Miguel Benasayag e Gérard Schmidt, que “a utilidade do inútil é a utilidade da vida, da criação, do amor”. No seu livro A Cerimónia do Chá (1906), o japonês Kakuzo Okakura intuiu que a passagem do bruto ao humano se deu com a descoberta do inútil: “O homem primitivo superou a sua condição de bruto ao oferecer a primeira grinalda à sua namorada. Elevando-se acima das necessidades naturais primitivas, tornou-se humano. Quando percebeu o uso que se podia fazer do inútil, o homem fez a sua entrada no reino da arte.” Kant apresentou o belo como o que agrada desinteressadamente; o belo tem a sua finalidade em si mesmo, não é para outra coisa, é “uma finalidade sem fim”.

Frente à desertificação galopante do espírito, impõe-se voltar à aparente inutilidade do “inútil”, ao “fascinante esplendor do inútil”, na expressão de George Steiner, que tem a ver com os valores irrenunciáveis da cultura e da educação livre, da grande música, da arte, do estudo dos clássicos e da filosofia, da dignidade livre e da liberdade na dignidade, do pensar crítico. Concluo, com Nuccio Ordine: “Se deixarmos morrer o gratuito, se renunciarmos à força geradora do inútil, se ouvirmos unicamente este canto das sereias que nos impele a procurar o lucro, só seremos capazes de produzir uma colectividade enferma e desmemoriada que, confusa, acabará por perder o sentido de si mesma e da vida.” E uma previsão que dá que pensar: cerca de um terço dos portugueses pode vir a ter perturbações de ansiedade. Um facto: está a aumentar o consumo de ansiolíticos, antidepressivos… Sem pôr em questão a imensa dívida para com a razão tecnocientífica, impõe

O Homem: trabalhador e festivo

Anselmo Borges, Diário de Noticias 4.agosto.2019

1. Andam enganados aqueles e aquelas que, no decurso do tempo, fizeram uma leitura literal do Génesis, o primeiro livro da Bíblia. Porque, concretamente nos primeiros três capítulos, não se trata de uma narrativa histórica, mas de um mito, uma estória. O filósofo Hegel, um dos cumes do pensamento, embora não fosse exegeta, viu mais, mais fundo e de modo mais penetrante do que muitos exegetas, quando leu essas primeiras páginas sobre a criação, Adão e Eva e o chamado “pecado original”.

No princípio, Deus fez a Terra e os céus. E criou Adão e Eva, que viviam no Éden, o paraíso terreal. Não podiam comer da árvore que estava no meio do jardim, a árvore da ciência do bem e do mal. Comeram e foram expulsos do paraíso. O que aqui está, diz Hegel, é a passagem da animalidade à humanidade e à grandeza de se ser humano, mas também ao seu carácter dramático e mesmo trágico. Souberam que estavam nus. Comeram da árvore da ciência do bem e do mal e ficaram a saber que são seres humanos, portanto, conscientes de si mesmos, conscientes de que são conscientes, com consciência reflexiva, que os outros animais não têm. Essa é a nudez humana, na solidão metafísica: cada um está só, é si mesmo de modo único e intransferível.

Deus também tinha dito que, se comessem, morreriam. Comeram e souberam que o ser humano é mortal, o que o animal não sabe. Quando dizemos cada um e cada uma – “eu”, cada uma e cada um di-lo de modo exclusivo e único e sabe que há-de morrer e angustia-se face à morte: “Ai, que me roubam o meu eu”, gritava Unamuno. Esta é a constituição do ser humano. E não é possível voltar atrás, porque a entrada do jardim do Éden, símbolo da inconsciência animal, é guardada por querubins com a espada flamejante.

E o Homem também tem de trabalhar, disse Deus. O trabalho é constitutivo do ser humano. É transformando o mundo, mundanizando-se, que o Homem vem a si como sujeito e se humaniza. No mundo, está de algum modo fora do mundo; na natureza, está fora e acima da natureza. Pelo trabalho realiza-se e projecta-se e toma consciência de que é social, pois é em comum que nos realizamos, contribuindo para a obra comum que é o bem comum, na síntese de presente, passado e futuro.

Uma das minhas reflexões diárias, quando tomo o pequeno-almoço: estou ali, só, e com tantos! Quem semeou o trigo ou o centeio e cozeu o pão que estou a comer? Quem colheu o café, quem o transportou de partes longínquas, quem o preparou? E assim sucessivamente. Por exemplo, ensinaram-me a ler e pude ler obras da grande filosofia e da grande literatura, que outros, autores de há pouco tempo ou de há séculos, ergueram!!! E quem produziu os livros e quem traduziu essas obras? E assim sucessivamente…, desde o carro que me transporta da casa onde vivo e que eu não construí à cidade onde se encontra a minha universidade, que eu também não construí, passando pela auto-estrada que existe pelo trabalhos de tantos que eu não sei quem são… Estamos sempre unidos com tantos, com todos, pelo trabalho comum!

Mas o Homem não se define apenas pelo trabalho. Porque é igualmente um ser festivo. Até Deus se lembrou disso, também na Bíblia: que haveria um dia consagrado ao descanso e à festa: o Sábado, depois, o Domingo (o dia do Senhor e do encontro da família e da alegria).

O que fez Jesus durante a maior parte da sua vida? Trabalhou, e trabalhou no duro. Infelizmente, quase nunca se ouve falar disso nas homilias dos padres. Dizemos normalmente que Jesus foi, como o seu pai, José, carpinteiro: “Não é este o filho do carpinteiro?”, perguntaram os seus vizinhos de Nazaré, quando voltou à sua aldeia para anunciar a Boa Nova do Reino de Deus. Segundo os Evangelhos, escritos em grego, diz-se mais, pois escrevem que era tektôn, isto é, era o que se dizia antigamente: um “faz tudo”, que tanto era capaz de levantar uma casa como de preparar alfaias agrícolas. E pode ter trabalhado também na Decápole, sabendo, por isso, algo de grego e de latim, para lá da língua materna, o aramaico e o hebraico. Porque trabalhou, para ganhar a vida, ele sabia o valor e a importância do dinheiro, mas também o seu perigo, quando se faz dele o objectivo da vida e se explora: Jesus percebeu perfeitamente a relação que tão frequentemente se estabelece entre quem tem muito dinheiro e quer enriquecer a todo o preço, e os trabalhadores que são explorados. Por isso, pregou constantemente: “Não podeis servir a Deus, que é Pai e Mãe e cujo único interesse é o bem de todos os seus filhos e filhas, e a Dinheiro – não ao dinheiro, mas a Dinheiro, como se fosse um nome próprio, Dinheiro enquanto um deus ao qual se entrega vida e a quem se confia a existência e o seu sentido.

Mas Jesus também descansou, porque se deve ter sentido muitas vezes esgotado. Já durante a chamada “vida pública”, dizem também os Evangelhos, era tanto o trabalho e o cansaço, pois as multidões não o largavam, que convocava por vezes os Apóstolos para um lugar ermo, tranquilo, onde pudessem descansar e conversar sobre o essencial. E deslumbrou-se com a alegria da beleza: “Contemplai o esplendor dos lírios do campo e das searas!”. Alegrou-se em festas de casamento e dançou. E passava noites na montanha a rezar, na maior intimidade com Deus, a quem chamava querido Papá, querida Mamã. Exaltou-se com o milagre da vida.

Agora, estão aí as férias. E é preciso gozá-las com gáudio, de tal maneira que delas não se venha mais cansado do que quando se partiu para elas, que é o que tantas vezes acontece. É importante sublinhar, até do ponto de vista etimológico, o carácter festivo associado às férias e aos dias feriados. A palavra latina feria, no plural feriae, tem o sentido de “descanso, repouso, paz, dias de festa.” O mesmo se observa noutras línguas: vacances, vacaciones, em francês e espanhol, respectivamente, têm o seu étimo também no latim: vacatio, com o significado de isenção, dispensa de serviço. Os ingleses em férias dizem que estão on holidays, isto é, em dias santos. Os alemães têm duas palavras: Ferien e Urlaub, sendo o étimo da primeira feriae e a raiz da segunda, Urlaub, Erlaubnis, com o sentido de dias livres de serviço e trabalho.

Portanto, as férias não podem ser de modo nenhum um mero interregno no trabalho para, depois, repondo as forças, se poder trabalhar ainda mais. As férias têm o seu fim em si mesmas: retomar as alegrias simples e a experiência funda de que o ser humano é um ser festivo e fim em si mesmo. Então? Apanhar Sol na praia, no campo, na montanha, ler e escrever poesia, aventurar-se num grande romance da literatura, dançar, ouvir o silêncio e ouvir música, a grande música que nos remete para origens imemoriais, lá onde nunca estivemos, e para a transcendência toda, o lá onde verdadeiramente queremos estar, o indizível, lá onde verdadeiramente seremos nós. Reaprender a ver o Sol a nascer no oriente e a pôr-se no ocidente. E se for no oceano!… Contemplar e acolher o perfume de uma rosa, “que é sem porquê”, como observou o místico Angelus Silesius. Ter a alegria de estar com os amigos e a família, com o tempo todo, à volta de uma mesa. Dar-se conta do milagre do Ser e de se ser. Há maravilha que nos abale mais na raiz de nós do que esta? Antes de ser isto ou aquilo, professor ou médico ou operário, muito ou menos culto, mais baixo ou mais alto, com mais dinheiro ou menos dinheiro, eu sou. Eu.

Deus sem mundo, mundo sem Deus

pe. Anselmo Borges, Diário de Notícias de 16.junho.2019

1. Segundo um estudo da Universidade de St. Mary, Londres (2014-2016), em 12 países europeus, a maioria dos jovens entre os 16 e os 29 anos admitem que não são crentes e que nunca ou quase nunca vão à igreja ou rezam. A República Checa é o país menos religioso da Europa: 91% dos jovens confessam não ter qualquer filiação religiosa. Seguem-se a Estónia, a Suécia, os Países Baixos, onde essa percentagem dos sem religião fica entre os 70% e os 80%. Também noutros países se nota a queda rápida da religião: na França, são 64% a admitir não serem crentes, na Espanha, 55% declaram que não confessam qualquer religião. Perante estes dados, o responsável pelo estudo, Stephen Bullivant, afirmou que “a religião está moribunda” na Europa.

Na Alemanha e em Portugal, a percentagem de não crentes desce para 45% e 42%, respectivamente. Entre os países mais religiosos estão a Polónia, onde só 17% se confessam não crentes, seguindo-se a Lituânia, com 25%.

Também a prática religiosa está em crise. Só na Polónia, em Portugal e na Irlanda, mais de 10% dos inquiridos admitiram que iam à missa pelo menos uma vez por semana. Mas no Reino Unido, na França, na Bélgica e na Espanha, entre 56% e 60% disseram que nunca iam à igreja e entre 63% e 66% que nunca rezam. Logicamente, na República Checa, 70% afirmam nunca ter ido a uma celebração religiosa e 80% nunca rezam.

2. Onde se encontram as razões para esta situação que caminha para uma Europa pós-cristã? As explicações são múltiplas. Mas chamo a atenção para a observação que o grande teólogo Yves Congar, primeiro condenado e, mais tarde, feito cardeal, teve já em 1935: “A uma religião sem mundo sucedeu um mundo sem religião.”

Outro grande teólogo, Philippe Roqueplo, demonstrou essa ausência do mundo na reflexão teológica e, consequentemente, na vivência da vida cristã. Fê-la no famoso e monumental Dictionnaire de Théologie Catholique, elaborado entre 1903 e 1950, em 22 volumes. Ele constatou que nesse dicionário, que deveria abarcar “todas as questões que interessam ao teólogo”, havia ausências de temas fundamentais para a existência humana. Assim, quando se procura amizade, o termo não consta; arte: um longo artigo sobre a arte cristã; beleza: nada; ciência: um longo artigo sobre ciência sagrada, ciência de Deus, ciência dos anjos e das almas separadas, ciência de Cristo, mas sobre a ciência como a entendemos, nada; economia: nada; emprego: nada; família: nada; história: nada; leigo e laicado: nada; mal: vinte colunas; mulher: nada; pessoa: remete para hipóstase; poder: um artigo com cento e três colunas sobre o poder do Papa na ordem temporal; política: nada; profano: nada; profissão: um artigo sobre profissão de fé; técnica: nada; trabalho: nada; vida: um artigo sobre a vida eterna…

3. Não há dúvida: Deus tem que ver com o sentido último e a salvação. Como escreveu L. Wittgenstein, um dos maiores filósofos do século XX, “crer num Deus quer dizer compreender a questão do sentido da vida, ver que os factos do mundo não são, portanto, tudo. Crer em Deus quer dizer que a vida tem um sentido”. Foi neste contexto que Nietzsche, sete anos antes de enlouquecer, escreveu a Ida, a mulher do amigo F. Overbeck, pedindo-lhe que não abandonasse a ideia de Deus: “Eu abandonei-a, não posso nem quero voltar atrás, desmorono-me continuamente, mas isso não me importa.” Numa longa entrevista concedida ao jornal Le Monde, em 2017, Edgar Morin, constatando que a humanidade se sente perdida, afirmou: “O mito da Europa é débil. O mito da globalização feliz está em zero. O mito da euforia do trans-humanismo só está presente entre os tecnocratas. Encontramo-nos num vazio histórico cheio de incertezas e de angústias. Só um projecto de via salvífica poderia ressuscitar uma esperança que não seja ilusão.”

4. A pergunta é: onde e como encontrar essa via de salvação? Todos, incluindo a Igreja, e a Igreja de modo especial, são convocados para encontrar a resposta a esta pergunta decisiva.

Sobre a marginalização da Igreja, concretamente na Europa, escrevia recentemente o teólogo José M. Castillo: “A sociedade “descristianiza-se” a uma velocidade e até a níveis que impressionam quem, pela idade e pelas recordações de família, tem a sensação de estar a viver numa sociedade que, há umas décadas, não podia imaginar.” Mas, afinal, porquê?, qual a razão? Não está a Igreja a ser marginalizada, porque ela própria vive à margem? Castillo acrescenta: “Uma Igreja, que vive à margem da sociedade, é uma Igreja que se não relaciona com a “realidade”, mas que se relaciona com a “representação da realidade”, que a própria Igreja elabora para si, segundo os seus interesses e conveniência. Se a Igreja se situou na “margem” da vida e da sociedade, pretendemos, a partir de fora da sociedade, influenciá-la?” “Se a Igreja não pôde assinar e fazer sua a Declaração dos Direitos Humanos, com que autoridade e com que credibilidade pode falar de amor à humanidade?”

5. Pensando nas relações entre Deus e o mundo, o mundo e Deus, o aquém e o Além, se se não quiser mentir a si próprio nem aos outros, é inevitável virem à ideia estas palavras célebres de Immanuel Kant: “A praxis deve ser tal que não se possa pensar que não existe um Além.”

Imagem Viva

Pedro Mexia, E, Expresso, 9.fevereiro.2019

A fé dos outros não me diz respeito; aquilo em que acredito ou não acredito já é um trabalho a tempo inteiro. Mas admito que me faz alguma impressão a total indiferença religiosa. Não a indiferença à fé ou às igrejas, mas ao sagrado enquanto facto antropológico e alegoria do humano. Entendo, e às vezes acompanho, as críticas às intolerâncias e iniquidades das religiões organizadas, incluindo as cristãs, mas sempre achei bizarro que alguém declare, por exemplo, que nunca leu a Bíblia porque é ateu, como se a Bíblia fosse imprestável para incréus.

Uma refutação veemente desse tipo de recusas encontrei-a num artigo que a escritora italiana Natalia Ginzburg (1916-1991) publicou no jornal comunista “l’Unità” a 22 de Março de 1988. Nascida numa família laica de origens judaicas, filiada no PCI, Ginzburg interveio inesperadamente na polémica sobre os crucifixos nas escolas. Não é a questão concreta que aqui me interessa, até porque defendo que num Estado não-confessional os edifícios públicos não devem ter símbolos religiosos; mas impressionou-me a valorização simbólica que a escritora faz da cruz de Cristo, que ela não interpreta exclusivamente como um artefacto religioso. Admitindo que, se fosse professora, preferia ter a cruz na sala de aula, Ginzburg assevera que “o crucifixo não gera nenhuma discriminação” E que é, bem pelo contrário, a imagem de uma revolução, a “revolução cristã que espalhou pelo mundo a ideia de igualdade entre homens”. E, então, pergunta: vamos negar que essa ideia mudou o mundo? E vamos negar que é justo celebrá-la?

Pode contrapor-se que a cruz simboliza para muita gente alguns aspectos do cristianismo bem menos benévolos. Mas o argumento do artigo é que o crucifixo é igualmente um símbolo de todo o sofrimento humano. Os pregos e a coroa de espinhos e a cruz evocam a dor, a solidão, a morte, os males aos quais ninguém está imune. Quem é aquele condenado na cruz? Filho de Deus para uns, judeu perseguido para outros, é para tantos a imagem viva de um homem martirizado pelo amor a Deus e ao próximo. Esta ideia do “próximo” não pode ser indiferente nem a um ateu, muito menos a progressista. Jesus na cruz representa todos aqueles que sofreram e morreram pelos outros, escreve Ginzburg, e esclarece logo que não vê escândalo nenhum nessa afirmação: “Porque antes de Cristo ninguém tinha dito que todos os homens são iguais, e irmãos; todos, os ricos e pobres, crentes e não-crentes, judeus e não-judeus, negros e brancos; e ninguém tinha dito que no centro da nossa existência deve estar a solidariedade entre os homens. E ser vendido, traído, martirizado e morto por causa da fé é uma coisa que pode acontecer a todos. Acho que é bom que os rapazes, as crianças, aprendam isso nos bancos da escola”.

A autora de “Léxico Familiar” (Natalia Ginzburg, Relógio d’Água, 2019) diz que olhamos para o crucifixo como coisa muda que está numa parede ou faz parte da parede, mas que o crucifixo não é mudo nem inócuo: é um símbolo que traz consigo palavras. Palavras cristãs mas que há muito fazem parte da consciência colectiva, palavras como “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão saciados”. pergunta Ginzburg: “Como e onde serão saciados? No Céu, dizem os crentes. Enquanto os outros não sabem nem quando nem onde, mas estas palavras fazem com que sintam, sabe-se lá porquê, a fome e a sede de justiça de forma mais severa, mais ardente e mais forte”.

Pai Nosso para 2019

This image has an empty alt attribute; its file name is índice.jpg

Frei Bento Domingues, Público, 6.janeiro.2019

1. Dizem-me que ando distraído das estatísticas das religiões que, na Europa, manifestam um inquietante declínio. O cristianismo não revela qualquer estratégia adequada para inverter essa situação. A laicidade do Estado, mal entendida, teria conduzido a sociedade para os braços do maior adversário da fé cristã: a indiferença. O Islão aposta nesse vazio. Estaria, ao que parece, cada vez mais dominado pelas correntes e organizações islamitas, que, a bem ou a mal, pretendem ser a religião europeia do futuro. Por outro lado, invocar o nome de Deus em vão era considerado um pecado grave. Acaba de sagrar a tomada de posse do Presidente do Brasil. As chamadas “igrejas evangélicas” têm abundantes passagens do Antigo Testamento para apoiar a sua retórica banhada de propósitos guerreiros.

À primeira vista, violência e religião nunca deveriam poder andar associadas. A história mostrou e mostra que, por diversas loucuras, andaram e andam muito juntas.

A religião é, por natureza, a dilatação transcendente do ser humano. Mas também pode ser entendida como um mecanismo de autoprotecção. Um indivíduo ou um grupo sentem-se mais seguros se alguém superior – uma divindade, por exemplo – os proteger em todas as dimensões da vida: espirituais e materiais. Nesse sentido, defender a sua religião é defender todos os seus interesses. Quem a puser em causa ameaça toda a sua vida. Daí nasce o elo entre violência e religião: defender-se do inimigo. A melhor defesa é destruí-lo. Procura, por esse caminho, salvar a própria identidade. É uma explicação simples para a história da violência ligada ao fenómeno religioso e às suas expressões. Nessa perspectiva, a salvação de uns é a perda dos outros.

Não é inevitável que assim seja. A tolerância não é um desprezo pelas convicções de cada pessoa ou grupo. É a atitude de quem reconhece que não é dono da verdade, mas apenas um seu peregrino. Para erradicar as ligações entre religião e violência, o melhor é a promoção da liberdade religiosa para todos, menos para aquelas actividades que a procuram destruir.

Quem deseja a liberdade religiosa não é um apóstolo da indiferença perante os valores. Reconhecer o direito a ser ou não ser religioso é um apelo à seriedade na busca livre do sentido da vida. Procurar a verdade e testemunhar essa busca não tem nada a ver com a violência. Testemunha algo que é essencial à vida: nunca se acomodar aos passos já dados. O infinito não tem limites.

2. A oração é uma atitude comum a todas as religiões. A qualidade da oração diz muito acerca da natureza de uma determinada religião. Se à crença numa divindade está ligado o prémio e o castigo, tem de negociar com ela. Tem de evitar a sua ofensa e pedir perdão pelo pecado cometido. É uma transposição para o sagrado do que se passa nas relações humanas de inferior para superior. Em caso de muita incerteza, importa contar com bons intermediários. Como se diz, quem tem amigos não morre na cadeia.

Não vou apresentar uma tipologia de todas as formas de oração nas diferentes religiões ou das atitudes espontâneas de cada pessoa perante o mistério da história pessoal e do mundo. No plano cristão, a oração mais prestigiada e mais comentada é o Pai-Nosso. Costuma dizer-se que é a própria síntese do Evangelho de Cristo. Até está escrito que foi Ele que pediu para se rezar assim. Recomendo a consulta da tradução e das notas de Frederico Lourenço aos textos de Mateus e Lucas [1].

O Papa Francisco, na 2.ª catequese sobre o Pai Nosso [2], no seu inconfundível estilo, diz o mais importante: “Jesus põe nos lábios dos seus discípulos uma prece breve, audaz, formada por sete pedidos, um número que na Bíblia não é casual, indica plenitude. Digo audaz, porque se Cristo não a tivesse sugerido, provavelmente nenhum de nós — aliás, nenhum dos teólogos mais famosos — ousaria rezar a Deus desta maneira.”

“Com efeito, Jesus convida os seus discípulos a aproximarem-se de Deus e a confidenciar-lhe alguns pedidos: antes de tudo em relação a Ele e depois em relação a nós. Não há prefácios no Pai Nosso. Jesus não ensina fórmulas para adular o Senhor, aliás, convida a pedir-lhe abatendo as barreiras da reverência e do medo. Não diz para se dirigir a Deus chamando-lhe Omnipotente, Altíssimo, Tu, que estás tão distante de nós, eu sou miserável: não, não diz assim, mas simplesmente Pai, com toda a simplicidade, como as crianças se dirigem ao pai. E esta palavra Pai, expressa a confidência e a confiança filial.

3. O que talvez se esqueça, nos comentários ao Pai Nosso, é a raiz do contencioso de Jesus com a sua família de Nazaré, com a família dos discípulos e com o facto de ele nunca ter constituído uma família pessoal. Procurou fazer família com quem não era da família. Daí o escândalo que provocou.O Pai Nosso exprime o mundo por que lutou e a missão que deixou aos discípulos, a missão que nos cabe. Nada acontece de forma mágica. É uma forma de viver e de intervir em relação ao que ainda falta, ao advento do Reino de Deus no mundo.

Dizer o Pai Nosso e julgar que as pessoas passam, automaticamente, a considerarem-se como irmãs não seria milagre, mas um exercício ilusionista. O Pai-Nosso é um programa de missão para a Igreja e para todos os que trabalham por uma humanidade una, com os mesmos direitos. Por não se encarnar o Pai-Nosso como uma missão do dia-a-dia, semana-a-semana, ano-a-ano, uma ousadia pode tornar-se banalidade verbal.

Foi o que o Papa Francisco afirmou na quarta-feira passada: “Quantas vezes vemos o escândalo dessas pessoas que passam o dia na igreja, ou que lá vão todos os dias, e depois vivem a odiar ou a falar mal dos outros.” Nesse caso, “o melhor é nem ir à igreja”. “Se vais à igreja, então vive como filho, como irmão, dá um verdadeiro exemplo.” Os hipócritas rezam “para serem vistos pelas pessoas”. “Os pagãos acreditam que se reza a falar, a falar, a falar. Eu penso em muitos cristãos que acreditam que rezar é falar com Deus, salvo seja, como um papagaio. Não! Rezar faz-se com o coração, a partir do interior.”

Começamos um novo ano. Os interesses dos cristãos de todo o mundo, para além do que as ciências, as técnicas, a economia, as políticas e as criações artísticas prometem, não podem esquecer a alma de tudo espelhada na oração que o Senhor nos deixou. Um programa de vida a inventar como o pão nosso de cada dia.

[1] Mt 6, 5-15; Lc 11, 2-4. Ver também Xavier Léon-Dufour, Dictionnaire du Nouveau Testament, na entrada père.
[2] Audiência de 12.12.201

Um telemóvel com quatro anos é velho?

Resultado de imagem para henrique raposo

Henrique Raposo, Expresso  9.Novembro.2018

Insisto nesta tecla: não entendo a forma como os média glorificam de manhã o capitalismo das Websummits e das Apple para depois criticarem à tarde as velhas indústrias; qualquer erro ou escândalo na indústria automóvel é amplificado enquanto crime ambiental. Ao mesmo tempo, encolhe-se os ombros ante a fraude intrínseca do mercado de telemóveis que leva o consumidor a comprar um aparelho novo a cada dois anos. Há maior crime ambiental do que a obsolescência programada que é a base do enriquecimento deste sector?

O meu telemóvel só tem quatro anos e as poucas aplicações que tenho já me dizem que não podem atualizar isto e aquilo; para descarregar a distinta aplicação da Web Summit, fui obrigado a apagar o Whatsapp. A mensagem é clara: compra um novo, compra um novo, compra um novo. O fetichismo da mercadoria, o comprar por comprar, nunca foi tão aberrante. Os média falam imenso da necessidade de não gastarmos os recursos do planeta, mas calam-se perante este fetichismo. São os próprios jornais que glorificam cada reencarnação do iPhone, por exemplo. É estranho. Um motor a diesel de um Volkswagen que dura uma década é o fim do mundo (e ainda bem), mas as baterias dos telemóveis já não são um problema. De onde vem o minérios da bateria? E para onde vai a bateria depois de o telemóvel cair em desuso um ano ou dois depois? Porque é que se criou esta ideia de que o novo capitalismo “geek” é mais verde do que o outro?

Além da poupança do planeta, fala-se muitas vezes da necessidade da poupança financeira das famílias. Mas como é que isso é possível num sistema em que um telemóvel de quatro anos é velho? Ou seja, a economia representada pela Web Summit torna impossível a poupança do planeta, por um lado, e poupança da nossa carteira, por outro. O fetichismo da mercadoria nunca foi tão perigoso, porque as pessoas assumem que trocar de telemóvel é um ato da natureza.

Zona de silêncio

http://images-cdn.impresa.pt/visao/2016-02-03-Goncalo-Cadilhe/1x1/mw-300

Gonçalo Cadilhe, Visão 31.10.2108

É talvez o mais surreal sinal de trânsito que alguma vez verás na tua vida. Um encapuçado de perfil com o dedo esticado à frente dos lábios. O encapuçado não representa um algoz ou um clandestino. A vestimenta que ele usa seria quase universalmente reconhecida como a de um religioso, de um despojado por livre-arbítrio, a roupa de um homem de Deus. O hábito do monge. O gesto que ele faz também seria quase universalmente reconhecido: o gesto a indicar silêncio.

A estrada estreita, escavada na montanha, a pique sobre o abismo, em curva e contracurva; e a vegetação cerrada e escura que não permite ver para lá da curva e da contracurva, transmitem a sugestão permanente de perigo na condução e o mais sensato seria avisar com umas boas buzinadelas a quem vier em sentido contrário que estou aqui. Mas o sinal de trânsito não o permite. “Zona de Silêncio.”

A estrada conduz a um parque de estacionamento ao lado de um edifício sóbrio e solene. Saindo do automóvel, percebes melhor a configuração da zona de silêncio. É um vale profundo e apertado, coberto de um manto denso de bosque impenetrável e para cima das colinas verdes, quando a inclinação já não permite mais árvores, erguem-se falésias brancas, verticais, majestosas, mas também intransponíveis. Ninguém vem parar por acaso a este vale, só uma determinação de ascetismo e isolamento conduziriam um ser humano aqui.

Ainda faz calor mas sente-se já na humidade da terra e na inclinação do sol que em breve chegará o tempo do frio. E frio, aqui, significa frio. Tal como o silêncio, aqui, já percebeste, significa silêncio. Entro no edifício. Neste, posso entrar: é o museu, aberto a turistas, do mosteiro da Grande Chartreuse. Mas no corpo central do complexo monástico, dois quilómetros mais para lá, por uma estrada semeada de sinais de trânsito “Zona de Silêncio”, não é permitida a entrada a nenhum de nós que chegamos da vida real, do mundo exterior, dos tempos modernos. É um dos poucos mosteiros de clausura que ainda resistem no planeta. Um testemunho anacrónico de uma opção existencial que até há bem poucas décadas era bastante comum no cristianismo. Imagina-te a tomares a decisão de te retirares para um mosteiro no meio dos Alpes, coberto por neves permanentes durante meses seguidos, dedicado a uma vida de oração, contemplação, trabalho manual e silêncio. Para sempre. Imagina-te a chegares a casa e anunciares aos teus pais, ou à tua mulher, ou aos teus amigos de copos e futebol: “Vou viver para um mosteiro de clausura. Adeus.” Não é um “até qualquer dia, até breve”. A clausura é para sempre.

O mosteiro foi fundado em 1084, dando início à Ordem dos Cartuxos que, nos séculos, se espalharia pelo mundo inteiro. Este mosteiro é, ainda hoje, a casa-mãe da ordem. No seu apogeu, só aqui na Grande Chartreuse terão vivido uns 200 monges. Hoje, a ordem toda, no mundo inteiro, conta com pouco mais de 300. No mosteiro, resistem 30 homens.

Subo pelo trilho que permite ver o complexo desde o alto, inserido no meio desta paisagem extraordinária, serena, agreste. Lá em baixo, imenso, arranjadinho, delicado como um kit para crianças, estende-se a Grande Chartreuse. Mas só vejo os telhados, o resto está encoberto, reparado de olhares indiscretos. Imagino claustros limpinhos, jardins geométricos, sebes aparadas, lenha cortada toda igual, celas luminosas mas isoladas. Lá em baixo, oração, trabalho manual, contemplação.

Regresso ao carro rodeado de um silêncio imóvel e infinito. Um corvo grasna no céu. O vento sibila entre as árvores, a água de um riacho gargareja. Um sino toca, algures. Sons que, aqui, fazem parte do silêncio.