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O luxo de pensar na vida

indice-dhjdhj Luís Pedro Nunes, E, Expresso, 17.9.2016

Setembro é o mês ideal para recomeços

Esperar é o novo luxo — anunciou-me pomposamente a revista que trazia a ilustrar três jovens “estilo Julio Iglesias meet Jud Law com banho hipsterismo”, rindo alegremente e com pouco ar de que estavam na seca do que quer que fosse. “A última tendência no mundo dos poderosos é exercitar a paciência, seja para conseguir uma roupa por medida ou uma mesa.” Hesitei se deveria ler. Já dissertei sobre esse luxo supremo que é poder usufruir do silêncio na vida quotidiana ou do poder não ter um telemóvel. Mas esperar? O termo equivale ao que nós entendemos como tal? Com tanta contradição em si (e dado que era a revista do “El País”, enfim, não era um pasquim), exercitei a minha paciência e decidi ler. Vamos lá ver que nova bizarria é essa dos tais ricos e poderosos na sua eterna capacidade de humilhar os mais fracos.

Eis o resumo: se esta sociedade está dominada pela gratificação imediata, o “maior dos luxos consiste, paradoxalmente, em querer aquilo que se faz esperar”. Ou seja: se o maralhal tem tudo na hora, os sacanas dos 1% querem coisas demoradas. Se consigo a antestreia, a cunha para o restaurante cheio, então… “eles” não. Isto não tem nada de inveja aspiracional, mas de reflexo sobre a nossa existência. Já lá vou.

Vejamos a moda. Antigamente havia várias coleções ditadas pelas estações do ano. Mas isto do imediatismo é tal que até já há marcas, como a Burberry, que na coleção apresentada a 19 de setembro — dada a hiperaceleração da vida moderna — acabou com a distinção de “temporadas de inverno ou verão”. Se tudo for “agora”, então não é preciso estações do ano. O agora é sempre. E o agora não tem data. Mas não pode ser amanhã, muito menos para a semana. Para o ano, então? Só um “rico e poderoso” pode esperar. Só ele tem os “meios” para esperar. Para poder fazer da “paciência” e do “esperar” sinónimos de luxo e experiência positiva. Os gajos parece que estão a gozar com a malta. Não sei se pensam nisto conceptualmente ou se é uma maldade no ADN.

Mas esperar o quê? Meses por um fato na Saville Road em Londres ou um lugar naquele restaurante que por mais dinheiro que tenha só aceita reservas para daqui a um ano? É o contraponto à nossa existência, dos banais. Esperar tornou-se um luxo, porque a nossa vida nem pode parar para que pensemos na nossa própria vida.

Não vale a pena perder muito tempo a falar sobre a perda dos marcos temporais que ritmavam o ano e foram desaparecendo (plantar, ceifar, rezar em dias certos, celebrar feriados), mas há de facto uma homogeneização da vida. Ou caos de significados. Não vale a pena referir a confusão que é entrar em meados de agosto numa loja e estar a exibir a coleção de inverno. O tempo vai ganhando uma certa linearidade, em vez do conceito circular que nos ajudava a reorganizar a vida. Já não regressam as frutas sazonais (há-as durante todo o ano). Não espero pelo próximo episódio da série (vejo a temporada toda de uma vez); o trabalho desestrutura-se ao longo da semana e do dia.

A tal “Geração Já” somos todos nós que achamos inaceitável que um filme leve 6 minutos a descarregar no PC, ou que o serviço do banco online — que uso em casa para pagar todas as minhas contas — esteja momentaneamente em baixo (onde é que já se viu?), quando ainda há uma década papava, sem reclamar, umas duas horas na fila da EDP quando me atrasava no pagamento?

Restam alguns marcos que usamos para estruturar as nossas vidas. E setembro, este belo setembro, na nossa cabeça, acaba por ser um segundo janeiro, naquilo que esse primeiro mês tem de bom. E sabemos isso sem o saber. Devíamos pensar melhor no assunto. É como se fosse uma segunda hipótese de refazermos os objetivos do ano ou, pelo menos, da vida quotidiana a curto prazo. E isso é essencial para reorganizarmos a vida.

Os tais ricos e poderosos podem achar que esperar é o que está a dar. Nós temos de ter objetivos e uma visão global da vida. Os investigadores chamam-lhe o “efeito nova oportunidade” (fresh start) e é dos últimos pilares temporais que — juntamente com janeiro — obriga a uma reflexão sobre a vida como um todo ou pelo menos a ponderar tomar iniciativas e modificar pequenas coisas.

Sem estes marcos, acabamos por perder memórias e a não parar para rever o passado e reprogramar o futuro. Setembro acaba por estar de alguma forma marcado em nós porque todos temos a ideia de ser um recomeço, à conta do regresso às aulas, e muitos de nós acabamos a projetar essa experiência dos nossos filhos em nós próprios. Para mais, tendo normalmente agosto e as férias sido um acumular de experiências (amores, viagens, etc.), há a necessidade desse “novo eu” olhar para a vida e repensar se aquilo que queria em julho é o mesmo que se quer em setembro. Este “efeito recomeço” tem a capacidade de tirar as pessoas do piloto automático, de as fazer questionar, de as colocar a fazer promessas tipo “vou deixar de fumar”. E quem não faz férias em agosto acha todo o mundo em setembro, com uma certa energia determinada para a mudança, insuportável.

E há quem se deprima em setembro. Não faça isso. É um recomeço. Uma primavera, sem a ansiedade do verão e com objetivos novos e vontade de mudar. Enquanto isso, os tolos dos ricos estão à seca e à espera de um fato que só está pronto lá para 2018. Coitados. Ainda bem que só são 1%.

Que fazer da missa?

indiceFrei Bento Domingues, Público 11.9.2016

1. Nasci e cresci numa aldeia onde toda a gente ia à Missa. Era obrigatória: faltar era pecado e matéria de confissão. Era dita em latim e de costas para o povo, com os homens à frente e as mulheres e as crianças atrás. Durante a homilia, os homens saíam para fumar um cigarrito. Da Missa, aproveitava-se a reza do terço. O padre, depois dos avisos, em português, voltava ao latim: ite missa est. Missão cumprida?

A palavra missa vem do verbo latino mittere, enviar, mandar, dispensar, mas também missão e míssil. Seja como for, o sentido das palavras depende do seu uso. A própria expressão Ite missa est já existia no latim profano antes de passar para a liturgia cristã. Como diz Ávito de Viena (470-518), essa fórmula era usada para terminar as audiências do paço e dos tribunais de justiça: “Nas igrejas e nas cortes do imperador e do prefeito dizia-se missa est quando o povo era despedido da audiência.”

Nos primórdios do Cristianismo, o culto era dividido em duas partes: a primeira, composta de orações, leituras, cânticos e a pregação, era aberta a todos; a segunda, a eucaristia propriamente dita, era reservada aos baptizados. Por isso, no final da 1ª parte, os catecúmenos também eram despedidos com o Ite, missa est, “Ide, a vossa celebração terminou”. É o que sugere Santo Agostinho: “Depois do sermão faz-se a missa, isto é, a despedida ou envio dos catecúmenos”. Pouco a pouco, a palavra foi-se aplicando ao conjunto da celebração. Já no século IV, na Peregrinatio Sylviae, é dito que “O sacerdote abençoa os fiéis e faz-se a missa, isto é, a despedida ou o envio”. Actualmente, em português, depois da bênção final, a despedida é feita com a fórmula: Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe (Ite, missa est).

Essa informação não me trouxe nenhuma alegria. Por outro lado, hoje, a Missa já não é em latim nem de costas para o povo, mas continua aborrecida e sem ter em conta a realidade daqueles que a procuram.

2. Repetiram-me, todo este Verão, que a Missa precisa de uma reforma profunda. Algumas queixas eram bem identificadas: três leituras e um salmo muito longe do nosso tempo, remetendo-nos sempre para um passado, que já não nos diz nada; as chamadas orações eucarísticas são pouco variadas e parecem existir apenas para enquadrar a chamada consagração do pão e do vinho, a matéria da comunhão, e um enigmático pedido de Jesus, fazei isto em memória de Mim.

Será que esses reformadores querem agora Missas à la carte?

A situação real é muito mais grave do que estas amostras de descontentamento podem sugerir. Repetimos, em todas as Missas, o pedido de Jesus. Essa repetição cumpre um desejo ou repete uma traição?

3. Será Jesus que precisa que nos lembremos dele ou seremos nós que, sem olhar para o seu percurso, nos tornamos incapazes de encontrar o nosso próprio caminho? Será Cristo que precisa da celebração da Eucaristia ou somos nós? Ele pede-nos uma fidelidade a um ritual ou exige que continuemos, com Ele, o Evangelho da Alegria para os dias de hoje? A missa é um encontro com o passado ou uma fonte de desassossego do nosso presente? Um despertador ou um calmante? Não celebramos a Eucaristia porque ela faça falta a Jesus, mas porque nos é fundamental.

Os liturgistas garantiram, nas celebrações da Eucaristia, a presença da memória do Antigo e do Novo Testamento, mediante uma distribuição abundante das suas leituras. O passado não falta. Mas a Eucaristia é só uma memória do passado? Um acontecimento do passado? Uma visita a esse grande museu literário?

Onde estão as narrativas da vida dos que participam nas celebrações? Essas são as páginas brancas do Evangelho de que falou o Papa Francisco na sua viagem apostólica à Polónia, no encontro com os sacerdotes, religiosos e seminaristas. Só vale a pena irmos à Missa para sairmos modificados.

Uma Igreja pode estar cheia de gente, sem gente. Como poderá acontecer a transfiguração da vida das pessoas da comunidade cristã se as pessoas não estão lá com a realidade complexa da sua vida de semana? É uma assembleia clandestina de si mesma. Só se ouvem as vozes do passado e o presente é confiscado pelo clero, o único que tem voz e vez.

Não é totalmente verdade. Conheço um clérigo, chamado Papa Francisco, que não falou aos jovens sem antes os ouvir e interrogar, de muitos modos. Não para os adular nem para receber o seu aplauso, mas para recolher as suas inquietações e lhes lançar novos desafios. Não quer jovens adormecidos, pasmados, entontecidos. Não viemos ao mundo para vegetar, para fazer da vida um sofá que nos adormeça. Viemos para deixar uma marca.

Quando se pergunta que fazer da Missa, não pode ser apenas, nem sobretudo, para lhe encontrar um ritual mais simpático, mais agradável, uma antologia de leituras mais encantatórias. A pergunta real é outra. Em que Igreja precisamos de nos transformar, para celebrar uma Eucaristia que nos responsabilize e nos faça sair para a transformação da sociedade?

Importa criar uma circulação permanente entre o que se passa no mundo e na Missa. Uma Missa sem mundo em transfiguração só pode gerar um mundo sem missa e sem o seu desejo.

Nem só de pão vive o homem

índiceManuela Ferreira Leite, Expresso

O recente êxito do futebol português no Campeonato Europeu reuniu um generalizado e consensual sentimento de genuína alegria e orgulho, dificilmente repetível a propósito de qualquer outro sucesso nacional talvez por este desporto ser provavelmente o maior fenómeno mundial de arrastamento de massas. Mas a intensidade da explosão das manifestações ocorridas também se justifica pelas nossas características. Nós temos uma imensa dificuldade em acreditar em nós próprios e nas nossas capacidades e raramente confiamos naqueles que ainda não foram  reconhecidos por terceiros, o que acontece em variados domínios. Qualquer sucesso é sempre uma surpresa, não uma certeza; é um milagre, não o resultado de um árduo trabalho. Assim, os festejos funcionam como uma catarse nacional, libertadora de receios e inseguranças acumuladas que minam a nossa autoestima.

Aprendamos a lição para nos habituarmos a valorizar os talentos e a estimulá-los desde o princípio, porque pior do que nos enganarmos na nossa percepção é desperdiçarmos valores porque não os descobrimos a tempo.

E, já agora, o que mais me incomoda é que nesta cultura do “útil” que nos rodeia, já se comece a ouvir falar do valor económico desta alegria, não sei se mensurável pelos litros de cerveja ou pelo número de comprimidos contra a rouquidão. Deixem-nos festejar sem preço.

A oração da realidade

índiceSusanna Tamaro, Avvenire, tradução de Rui Jorge Martins, Pastoral da Cultura

Entre as muitas tristezas espirituais do mundo contemporâneo está a incapacidade de saber ler na natureza que nos rodeia uma extraordinária oferta de Graça que se manifesta através da gratuidade da beleza.

Amedrontados pelo poder de tudo o que está vivo e foge ao nosso domínio, decidimos refrear também a Criação numa rígida ideologia. Todos nós queremos salvar a Terra – e é absolutamente justo fazê-lo –, mas no fundo não sabemos verdadeiramente porquê.

Recordo a visita, há alguns anos, de uma jornalista muito comproIMG_3426metida nas batalhas ecológicas. Quando a acompanhei na minha horta, conseguiu pisar praticamente todas as plantinhas que estavam timidamente a desabrochar. Continuava a falar desabridamente e quando a adverti – atenção às minhas cenouras! –, não baixou os olhos nem levantou o pé. Com o olhar obstinadamente fixo no horizonte, continuou a falar-me, imperturbável, das baleias. Defendia as baleias mas esmagava as cenouras!

Quantas vezes, para seguir uma ideia da nossa cabeça, não conseguimos ver a realidade que está debaixo dos nossos olhos. Essa realidade implora a nossa atenção, mas não somos capazes de ouvir a sua frágil e humilde voz.

E todavia, não é precisamente o assumir o cuidado por tudo o que vive e cresce à nossa volta, com a pressurosa atenção de uma mãe, a cura de todos os nossos males?

Falhar melhor

índiceKatya Delimbeuf, E, Expresso

No início deste mês, um professor de psicologia da Universidade de Princeton (EUA) publicou na conta do Twitter o seu ‘currículo de fracassos’. Joannes Haushofer fê-lo com um objetivo claro: “A maior parte das coisas que tento fazer não vingam, mas esses fracassos costumam ser invisíveis – ao contrário dos sucessos”, explicava o professor. “Percebi que isso dava por vezes a impressão de que a maioria das coisas me corre bem. Mas a verdade é que o mundo é imprevisível, as candidaturas dependem da sorte, e os comités de seleção têm dias maus”, escreveu. O professor de psicologia inspirou-se num artigo divulgado na revista “Nature”, em 2010, da neurobióloga Melanie Stefan, da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Ela escrevia na altura: “Há que reparar que o seu currículo de fracassos será seis vezes maior do que o seu currículo normal.” Mas apesar de isso ser “totalmente deprimente à primeira vista, pode ser que inspire um colega seu a esquecer a rejeição ou insucesso, e a começar de novo”.

O tema pode parecer corriqueiro, mas a verdade é que saber enfrentar o erro e aprender a lidar com ele é parte essencial no caminho do sucesso. Os erros escondem oportunidades de crescimento que podem revelar-se essenciais. O psicólogo Paulo Gomes argumenta que ‘os fracassos’ são inevitáveis, mas que “isso é geralmente uma coisa boa!”, “O desenvolvimento raramente acontece em linha reta”, lembra, e a “forma de encarar o erro pode e deve ser trabalhada desde muito cedo”. Cita uma investigação divulgada em abril deste ano na “Psychological Science”, que dá conta que “a crença que as crianças têm sobre se a inteligência é fixa ou maleável é determinada pela visão dos pais sobre o fracasso – e não sobre a inteligência”. Quer isto dizer que há pais que olham para o fracasso como algo intrinsecamente negativo, enquanto outros se focam mais nos resultados e no processo de aprendizagem. “Esse tipo de mentalidade fixa estabelece-nos limites: passamos a evitar as dificuldades e os erros, e fracassos são encarados como catástrofes”, alerta Paulo Gomes. “Ao contrário, tendo uma adequada mentalidade face aos fracassos, podemos ver os erros como oportunidades de aprendizagem, e perceber que são inevitáveis no caminho do sucesso. “É importante, assim, que nos foquemos no processo – e não no resultado final. E “que se falhe muito e muitas vezes, afirma o psicólogo. “Se isso não acontecer, é porque provavelmente, não estamos a tentar a sério, não estamos a correr riscos e a testar os nossos limites.”

Não há ‘homem de sucesso’ que não tenha recebido nove negativas por cada dez iniciativas. O segredo está em ‘aguentar’ até à décima tentativa sem perder o sorriso. Faz parte da vida cair e tornar a levantar. Além disso, lembra Charles Dickens, “cada fracasso ensina ao Homem que tem algo a aprender”. Aprendamos pois, sem medo.

Sobre prisões

imagesTiago Bettencourt, Visão

Não quero falar sobre religião. Quero falar sobre a solidão de não haver mais nada para além de nós e deste egoísmo escondido que anda a atirar tanta gente para um buraco, buraco esse que visto de fora não deveria ser tão fundo como nos relatam os que lá estão dentro. Há este vazio nas pessoas, esta pergunta esquecida num sítio profundo demais para se poder ver. Há esta era em que não existe tempo para aprofundar seja o que for. Se olharmos, os sinais estão em todo o lado a apontar para a forma como não nos comprometemos e não nos aprofundamos: na casa que não se compra, no trabalho onde nunca estamos contentes, nos divórcios, na cultura “mainstream” oca, nas depressões, na busca tardia por uma espiritualidade imediata… Vive-se uma grande fatia de vida centrada em tudo o que é apenas humano: os estudos, o trabalho, a carreira, a casa, um “parceiro” para morar… até ao dia em que se tem tudo isso. Depois chega o fim de semana, do mês, do ano, e o vazio, que era tão pequenino que nem sequer se reparava, está de repente do tamanho de todo o tempo que se esteve sem olhar para ele. Depois choram, choram nos cantos sem saber porquê. Choram mais do que quando alguém lhes morre. Choram por falta de direção, falta de sentido. São pessoas com emprego, com estabilidade, com condições para serem felizes. Ouço estas histórias e não consigo deixar de pensar no outro lado deste manto negro que veste em segredo as camadas mais confortáveis da sociedade. Parece que na ausência de problemas de maior importância, na ausência de preocupações que os mantenham acordados à noite, surge este sítio parado no tempo, este sítio sozinho em que perguntam “e agora?”. Imagino o silêncio avassalador. Um silêncio humano, limitado, terreno.

Lembro-me que eu era mais forte, quando tinha fé. A questão é que me lembro de ter mais certezas, de haver uma resposta às perguntas, de não haver silêncio. Só o facto de saber que existia uma qualquer força superior à minha pequenez, à minha ignorância, fazia com que todo o meu ser se sentisse menos pesado, como se constantemente estivesse a andar lado a lado com a própria razão desse andar, e tudo fluía, os problemas eram abraçados em vez de lamentados até à exaustão, porque eram parte do caminho, como se houvesse um plano. Era tudo muito simples, e eu era mais livre. Sinto que esta ideia, que se espalhou pelo mundo intelectual de que a espiritualidade é uma prisão castradora dos nossos instintos, não fez mais do que criar outro tipo de prisão, invisível, silenciosa, ignorante, desorientada. E de repente temos todo um mundo de fugas, feitas de alucinogénios, de cocaína, de retiros que nos oferecem um pacote espiritual de fim de semana, como injeção que vai durar tanto quanto esses dois dias de emoção extrema “instagramada” ao minuto. Há este buraco fundo, há esta ausência de profundidade para o entender e a ausência de armas e tempo para o desvelar. Não sei o que é suposto dizer esta crónica para além de apontar para este vazio, porque à medida que os anos passam ouço mais histórias de gente a chorar sem razão. Sei que ler um bom livro é melhor que passar os olhos por um artigo de net sobre nada, que ouvir um bom disco é melhor que um “shuffle” pelos “hits” da semana, que ver um bom filme é melhor que o “diário da casa dos segredos”, que ir a uma boa exposição é melhor que um dia no “shopping”, e que ter tempo para perceber, a partir do nosso interior, o que existe para lá de nós é melhor que chegarmos ao fim do dia perdidos e acharmos que estamos sozinhos.

Amoris Laetitia

índicePe. Miguel Almeida, sj, no jornal Observador

O Papa Francisco publicou finalmente a tão esperada Exortação Apostólica Pós-Sinodal com o título Amoris Laetita (A Alegria do Amor).

Importa esclarecer que não se trata de uma exortação sobre a doutrina do matrimónio, mas sobre o amor. O amor na família. E esta tem que ser a chave de leitura de todo o documento. Não se trata de pôr em questão a doutrina da Igreja sobre o sacramento do matrimónio, mas precisamente o oposto: praticar a doutrina oferecendo a Alegria do Amor de que a Igreja é portadora. Não uma alegria qualquer, mas aquela que é fruto do Espírito Santo.

Uma questão que a muitos intriga refere-se ao facto de este Papa, que é direto e claro em tudo e com todos, aparecer aqui não tão incisivo. Porque não esclarece simplesmente se os católicos que se divorciaram e voltaram a casar civilmente podem ou não ter acesso aos sacramentos? É que, de facto, a Exortação parece poder dar azo a diferentes interpretações.

A razão é simples: Francisco não o diz porque não quer. E esta é, talvez, a mais profunda reforma que o Papa quer implementar na Igreja.

Esta reforma, talvez não sempre diretamente explicitada, mas presente em todos os escritos, gestos e palavras do Papa é a da descentralização. Profundamente conhecedor da Tradição da Igreja, e vindo “do fim do mundo”, como ele mesmo afirmou, Francisco sabe por experiência própria que a excessiva centralização nem sempre ajuda ao exercício da ação da Igreja. Deseja, assim, conferir mais autonomia às Conferências Episcopais e aos bispos locais para que a Igreja possa recuperar a proximidade às pessoas concretas de cada cultura, país e diocese. O desejo de descentralização do Papa é claro: “quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais” (AL3), já que, dada a diversidade das culturas, existem “maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela. Além disso, em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais” (ibid.).

Já no fim do documento, e fazendo eco da Relatio finalis do Sínodo, Francisco reitera que “os sacerdotes têm o dever de acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do discernimento segundo a doutrina da Igreja e as orientações do bispo” (AL300). Por isso, não se espere “desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canónico, aplicável a todos os casos” (ibid.). A recusa de legislar e verificar tudo a partir de Roma devolve ao bispo local um papel sempre mais relevante na saudável e coerente aplicação da doutrina universal à igreja da sua diocese. E dá à Igreja, não só a flexibilidade necessária para se aproximar das situações e pessoas concretas, mas dota-a daquela vivacidade com que Francisco sonha desde o dia em que foi eleito Papa.

O preço a pagar é o do discernimento, que se revela aqui a palavra de ordem. Certamente, há que evitar a todo o custo “o risco de que um certo discernimento leve a pensar que a Igreja sustente uma moral dupla” (AL300). Por isso, “este discernimento não poderá jamais prescindir das exigências evangélicas de verdade e caridade propostas pela Igreja” (ibid.), não fosse o caso de se veicularem “mensagens equivocadas, como a ideia de que algum sacerdote pode conceder rapidamente exceções, ou de que há pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores” (ibid.).

Francisco é ciente de que este tipo de exercício do Papado não agrada a todos. A atitude mais fácil seria a de decretar uma norma geral obrigando à obediência de todos os católicos. Por isso, explica que compreende “aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade” (AL308).

Quando se refere concretamente às situações mais complexas, de fragilidade ou irregulares, que não cumprem plenamente a norma doutrinal da Igreja, o Papa convida fortemente a acompanhar, discernir e integrar. O discernimento é essencial porque “uma vez que o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, as consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos” (AL 300). Ora, em clara oposição ao que aqui é afirmado, hoje, todas as pessoas que se divorciaram e voltaram a casar civilmente, sem exceção, estão impedidas de aceder aos sacramentos. Mas, de facto, uma pessoa que objetivamente não cumpre a lei “pode encontrar-se em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa” (AL301). Por isso, “um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações irregulares, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas” (AL305).

Mas Francisco vai muito mais longe: “já não é possível dizer que todos os que estão numa situação chamada irregular vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante” (AL301). Aliás, “é possível que uma pessoa, no meio duma situação objectiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja” (AL305).

Mas até onde pode ir esta ajuda? Até onde pode ir a integração dos recasados? Para responder, o Papa acrescenta uma nota de rodapé que não deixa margem para dúvidas: “Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso, aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor. E de igual modo assinalo que a Eucaristia não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos” (nota 351).

Por todo o processo sinodal e pelo que fica dito ao longo desta Exortação, revela-se claro o desejo do Papa Francisco acerca deste assunto. A Igreja, através das suas estruturas locais, deve fornecer instrumentos de acompanhamento, discernimento e integração das pessoas recasadas. E essa ajuda pode, nos casos em que o discernimento assim conclua, chegar ao acesso aos sacramentos. Esta é, aliás, a leitura que faz o Arcebispo Vincenzo Paglia, presidente do Conselho Pontifício para a Família, numa entrevista concedida ao Corriere della Sera (digital), no passado dia 9 de Abril. Com efeito, afirma o prelado que não passa a haver uma regra que permita os recasados comungarem. Objetivamente os recasados não podem aceder aos sacramentos. Mas, diz ele, “não está dito que subjetivamente seja a mesma coisa. Não existe a situação em abstrato; existem milhões”.

Por isso, “o bispo deverá ajudar os confessores e os padres espirituais a exercitarem a misericórdia conjugando-a com a gradualidade da pedagogia de Deus”. No caminho percorrido pelo discernimento, a participação dos recasados pode tornar-se plena. E à pergunta se esta “participação plena” inclui o acesso aos sacramentos, Vincenzo Paglia é claro: “Sim, a via sacramental está presente neste itinerário porque a lei suprema da Igreja é conduzir todos à salvação”.

Apesar de tudo, porque Francisco deseja uma Igreja realmente baseada e viva a partir das vidas concretas do Povo de Deus, caberá às comunidades e aos bispos locais discernir e decidir como dar seguimento à Amoris Laetitia. Será muito interessante verificar que tipo de recepção terá esta Exortação pelo mundo fora.

As tarefas complicadas

isabel-leal-rsh-2011-230Isabel Leal, psicóloga, CARAS

Vivemos tempos em que os modelos difundidos como sendo aqueles que temos de copiar ou seguir para termos sucesso, vivermos melhor, sermos mais felizes são, ou mais longínquos, ou muito exigentes. Exigem uma juventude que é demasiado rápida, uma beleza que espelha um gasto de produção dispendiosa de muitas maneiras, uma atitude de confiança que não se sabe bem onde adquirir, uma inteligência que não se compra em saldos e, genericamente, estilos de vida que parecem ser cada vez menos compatíveis com a realidade que é a nossa.

Tomamos a parte pelo todo num gosto desmesurado de metonímias e conseguimos chegar ao desconforto e à infelicidade quando damos conta que nos afastamos ponto por ponto, em quase tudo, dos modelos que num dado momento abraçámos como nossos, mesmo que sem grande entusiasmo ou convicção.

Refletindo por gosto, distração ou necessidade existencial sobre os processos que nos influenciam e nos tornam alvos, mais ou menos fáceis, desses e doutros modelos que acabam por nos empurrar em escolhas e decisões quase definitivas, chegamos frequentemente a uma zona de inquietante incredulidade sobre a nossa sanidade mental ou sobre a esperteza de que somos dotados.

Quando percebemos que o que somos e quem somos não nos chega e até nos embaraça e nos refugiamos, vezes sem conta, em papéis que pedimos de empréstimos, em gostos que não são nossos ou em escolhas que visam, sobretudo, granjear reconhecimento de conhecidos que não prezamos especialmente ou de audiências imaginárias que, de facto, sabemos que não temos, está na altura de começar de novo.

Começar, ou recomeçar, não exatamente uma busca de outros modelos que sejam menos frustrantes, mas a reconstrução de sentidos próprios que, infelizmente, não nos ensinaram em casa ou na escola nem nos é facilitada por um mundo rápido e pronto a servir, é uma tarefa complicada.

De qualquer modo, se chegarmos a esse momento de necessidade e conseguirmos articular novas perguntas, tudo o que aprendemos, fizemos e sentimos ajuda-nos a chegar a outras respostas. Pelo menos fica a consolação de não sermos um desperdício.

Ultrapassemos os medos

1033438Irmão Alois, Prior da Comunidade Ecuménica de Taizé, no Público 25.02.2016

No mundo inteiro, há homens, mulheres e crianças que são obrigados a deixar a sua terra. A angústia que vivem cria neles a motivação de partir. E esta motivação é mais forte que todas as barreiras erguidas para lhes impedir o caminho. Posso dar testemunho disso por ter passado recentemente alguns dias na Síria. Em Homs, a extensão das destruições causadas pelos bombardeamentos é inimaginável. Uma grande parte da cidade está em ruínas. Vi uma cidade fantasma e ressenti o desespero dos habitantes do país.

Hoje são os Sírios que afluem à Europa, amanhã serão outros povos. Os grandes fluxos migratórios a que assistimos são invencíveis. Não nos apercebermos disso seria uma demonstração de miopia. Procurar regular estes fluxos é legítimo e mesmo necessário, mas querer impedi-los construindo muros de arame farpado é absolutamente inútil.
Perante esta situação, o medo é compreensível. Resistir ao medo não significa que este deva desaparecer, mas sim que não devemos deixar que nos paralise. Não permitamos que a rejeição do estrangeiro se introduza nas nossas mentalidades, pois recusar o outro é o germe da barbárie.

Numa primeira etapa, os países ricos deveriam tomar uma consciência mais clara de que têm a sua parte de responsabilidade nas feridas da História que provocaram e continuam a provocar imensas migrações, nomeadamente de África ou do Médio Oriente. E, hoje, algumas escolhas políticas permanecem fonte de instabilidade nestas regiões. Uma segunda etapa deveria levar estes países a ir além do medo do estrangeiro e das diferenças de culturas, colocando-se corajosamente a moldar o novo rosto que as migrações já dão às nossas sociedades ocidentais.

Em vez de ver no estrangeiro uma ameaça para o nosso nível de vida ou a nossa cultura, acolhamo-lo como membro da mesma família humana. E assim compreenderemos que, apesar de criar certamente dificuldades, o afluxo de refugiados e de migrantes também pode ser uma oportunidade. Estudos recentes mostram o impacto positivo do fenómeno migratório, tanto para a demografia como para a economia. Porque será que tantos discursos salientam as dificuldades sem dar valor ao que há de positivo? Os que batem à porta dos países mais ricos que o seu levam estes países a tornar-se solidários. Será que não os ajudam a tomar um novo impulso?

Gostaria de situar aqui a nossa experiência de Taizé. É humilde e limitada, mas muito concreta. Desde Novembro do ano passado, em colaboração com as autoridades e algumas associações locais, acolhemos em Taizé onze jovens migrantes do Sudão – a maioria deles do Darfur – e do Afeganistão, vindos da “selva” de Calais. A sua chegada despertou uma impressionante vaga de solidariedade na nossa região: há voluntários que vêm ensinar-lhes francês, médicos que os tratam gratuitamente, vizinhos que os levam a fazer passeios e a dar voltas de bicicleta… Rodeados por tanta amizade, estes jovens, que atravessaram acontecimentos trágicos nas suas vidas, estão aos poucos a reconstruir-se. E este contacto simples com muçulmanos muda o olhar das pessoas que os encontram.

Na nossa aldeia, os jovens também foram acolhidos por famílias de vários países – Vietname, Laos, Bósnia, Ruanda, Egipto, Iraque – que chegaram a Taizé ao longo de décadas e que fazem hoje parte integrante do nosso ambiente. Todos eles conheceram grandes sofrimentos, mas trazem à nossa aldeia muita vitalidade graças à riqueza e à diversidade das suas culturas.

Se uma experiência destas é possível numa pequena região, porque não haveria de ser numa escala muito mais ampla? É um erro pensar que a xenofobia é o sentimento mais partilhado, muitas vezes o que há é muita ignorância. Assim que os encontros pessoais se tornam possíveis, os medos dão lugar à fraternidade. Esta fraternidade implica pormo-nos no lugar do outro. A fraternidade é o único caminho de futuro para preparar a paz.

Assumindo juntos as responsabilidades exigidas pela vaga de migrações, em vez de brincarem com os medos, os responsáveis políticos poderiam ajudar a União Europeia a reencontrar uma dinâmica entorpecida.

Há toda uma jovem geração europeia que aspira a esta abertura. Nós, que acolhemos há muitos anos, na nossa colina de Taizé, dezenas de milhares de jovens de todo o continente para encontros internacionais de uma semana, podemos constatar isso mesmo. Aos olhos destes jovens, a construção europeia apenas encontra o seu verdadeiro sentido mostrando-se solidária com os outros continentes e com os povos mais pobres.

Há muitos jovens europeus que não conseguem compreender os seus Governos quando estes manifestam vontade de fechar as fronteiras. Pelo contrário, estes jovens pedem que a uma mundialização da economia seja associada uma mundialização da solidariedade e que esta se expresse em particular através de um acolhimento digno e responsável dos migrantes. Muitos destes jovens estão dispostos a contribuir para esse acolhimento. Ousemos acreditar que a generosidade também tem um papel importante a desempenhar na vida urbana.

Lembra-te que és pó

Pe. Miguel Almeida, sj, no jornal Observador

Lembra-te que és pó e ao pó voltarás! Esta é a frase que nos é dita a nós, cristãos que vamos à Missa na Quarta-feira de Cinzas. Num ritual simples que inicia a Quaresma, ao ouvirmos a frase do Livro do Génesis e ao sermos marcados com a cinza imposta sobre a nossa cabeça, recordamos algo difícil de aceitar: somos frágeis como o pó.DSC_4105
Depois das máscaras de carnaval, que tantas vezes apenas exageram as máscaras que usamos quotidianamente diante dos outros, somos chamados à realidade. Tira as máscaras que usas diante de ti mesmo, diante dos outros, diante de Deus e aceita-te como és: criatura frágil e mortal. Este é, sem dúvida, um discurso do qual fugimos a sete pés. Somos educados e, a cada momento da vida, convidados a mostrar precisamente o contrário. O poder (económico, social, ou outro), a imagem, o sucesso, o controlo, não passam, afinal, de máscaras que escondem a nossa fragilidade. Não, não somos autossuficientes.
Basta um pingo de honestidade connosco próprios para reconhecermos que, juntamente com muita generosidade, altruísmo e preocupação com a justiça, no nosso coração convivem excessivas preocupações com a autoimagem, mesquinhezes, egoísmos, mentiras e injustiças. Impor cinza na cabeça, ajuda a reconhecer essa nossa pequenez necessitada de conversão. Quem não precisa de converter nada na sua vida, está no Céu, morreu e ninguém lhe disse.
Mas há uma fragilidade especial que nos habita a todos, mesmo aos arautos da autonomia absoluta. Temos um ponto fraco que se revela a nossa maior força: o amor. O que mais desejamos no íntimo de nós mesmos, é amar e sermos amados. E o nosso maior (único?) medo é não sermos amados. Chamamos-lhe solidão.
Lembra-te de quem és, lembra-te que és pó. E sabes que mais? Não faz mal seres frágil! Porque, paradoxalmente, este ponto fraco revela-se a força mais profunda e potente do ser humano. É a debilidade do amor que nos permite abrirmo-nos aos outros. É o amor, esse poder frágil, que impede de nos encerrarmos no poço da nossa pretensa autossuficiência. Se a morte é a evidência última da finitude humana, o amor é a única força que a vence. Mas não sai ileso. Leva a sua marca. Porque quem ama sofre. Porque amar não é gostar.
É dramática a imatura não distinção entre o amar e o gostar, tão própria da nossa cultura. Posso gostar ou não gostar, gostar mais ou gostar menos. Mas não posso não amar. O gosto encontra-se ao nível do sentimento; o amor ao nível da vontade. Os sentimentos vão e vêm, tantas vezes sem controlo da nossa parte. Mas a vontade tem a ver com a decisão. Nenhum casamento dura uma vida inteira porque marido e mulher gostam um do outro 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano. Um casamento (qualquer relação) dura porque ambos decidem que dure. Sim, porque se amam, mesmo que haja dias em que seja difícil gostarem um do outro.
Jesus Cristo não nos manda gostar de ninguém. Nem podia fazê-lo, porque não é sempre possível gostar dos outros. Jesus manda amar. Manda mesmo amar os inimigos. Não é possível gostar do inimigo. Mas, mesmo que não gostes, ama! Tão contrário é o discurso do mundo. Essa palavra gasta já não quer dizer entrega, serviço, ou desejo que o outro cresça como pessoa. A palavra amor agora significa um sentimento lamechas e egoísta que me faz crescer o umbigo e que dura enquanto eu gosto.
A cruz de Jesus continua a ser a grande parábola real da vida. Ali se revela o Deus escondido do amor e da entrega até ao fim. E daquela trave, que tinha tudo para ser uma maldição, nasce uma vida nova, um novo amor, um sonho de eternidade. Afinal, as dores de Jesus na cruz eram autênticas dores de parto. É esse amor que se celebra daqui a quarenta dias, na Páscoa. Que bom seria se conseguíssemos ver e viver as cruzes que a vida nos oferece ou impõe como dores de parto, não nos encerrando em nós mesmos, mas gerando mais vida à nossa volta.