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O longo caminho para chegar a si

José Tolentino Mendonça, E, Expresso 29.setembro.2018

A palavra pessoa (persona), significa, na origem, máscara. E é através da máscara – isto é , da representação social, – que o indivíduo, pelo menos na construção ocidental que é a nossa, adquire um papel e uma identidade. Na Roma antiga, por exemplo, cada indivíduo era, tal como hoje, identificado por um nome que o ligava à sua gens, à sua génese, à sua estirpe. E esta estirpe, por sua vez, era representada plasticamente por uma máscara de cera do rosto do antepassado, que vinha fixada no átrio da casa das famílias patrícias. O que dava o nome, o que instituía o conjunto de membros de uma determinada família, era, assim aquela máscara. Ora, do termo persona ao termo personalidade, que refere o modo como cada indivíduo atua no intrincado do teatro social, com os seus ritos e práticas, vai um passo. A ideia de persona/máscara acabou rapidamente por englobar a capacidade jurídica e a dignidade politica do homem livre. Não de todos os homens, porque nem todos os homens eram considerados pessoa no mundo romano, mas apenas do homem livre. Considerava-se que o escravo, por exemplo, não possuía antepassados, a dita máscara, e por isso não era considerado pessoa. Dizia o direito romano: servus non habet personam. Na cultura contemporânea, o sentido de persona expandiu-se ainda para campos ulteriores referindo-se à dimensão moral, psicológica e estética. Tudo isto para recordar que, quando pensamos em nós, não pensamos imediatamente em nós e como seja preciso um longo caminho para chegar a si, para tocar a vida na sua nudez. Há aquela passagem do poema “Tabacaria”, da Álvaro de Campos, que funcionou como um grande retrato da experiência humana, e que diz a dado passo:

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdia-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
 
O jogo que os versos organizam traduz a realidade do sujeito, estrangeiro de si mesmo, perdido no labirinto fraturante das representações, incapaz de encarar ou de reencontrar a unidade do seu rosto. “Conheceram-me logo por quem eu não era e não desmenti, e perdi-me”… Por isso, precisamos tanto do auxílio da sabedoria, que deve ser buscada como um agricultor busca ferramentas para trabalhar a terra. A vida, no seu sentido profundo, também precisa de ser cultivada. E essa deve ser considerada a atividade primeira da nossa existência. O evangelho de Tomé, que possivelmente será o texto apócrifo mais próximo dos Evangelhos canónicos, conserva a memória seguinte. “Os discípulos perguntaram a Jesus: ‘Senhor, quando é que te manifestarás a nós a quando é que te veremos?’ Jesus responde, ‘quando estiverdes nus e não tiverdes vergonha disso’ (logíon 37). E penso também naquela história de Lanza del Vasto, ocorrida na sua primeira viagem à Índia. Ele conta que sentia, com um incómodo forte, que toda a gente pretendia alguma coisa dele. Cansado dessa perseguição, vai para um sítio distante e encontra uma lagoa. Finalmente pode estar em paz. Despe-se e mergulha naquelas águas. Quando sai, apercebe-se, com terror, que lha haviam roubado tudo, inclusive a roupa. Mas ele assegura no seu relato: “Foi quando me viram sem nada que a minha história na Índia começou, a minha história de hospitalidade e relação.” Não raro, só quando se consente na vulnerabilidade se começa verdadeiramente.

Uma espiritualidade do provisório

José Tolentino Mendonça, O pequeno caminho das grandes perguntas, Quetzal Editores

Muitas vezes parecemos estar suspensos, à espera de um sinal espetacular qualquer para tomar uma decisão de vida sempre adiada. E queixamo-nos de falta de meios para levar a cabo essa transformação que vemos como necessária. Contudo, as verdadeiras transformações inventam os meios próprios para se expressarem, e estes, regra geral, começam por ser espantosamente modestos. Idealizamos de tal maneira o que pode ser a vida que ela arrisca-se a perder o jogo por falta de comparência, sequestrada num plano cada vez mais mental e abstrato. Ora, se não estamos dispostos a aprender com a sabedoria dos pequenos passos e com a dinâmica do provisório, dificilmente alcançaremos o que buscamos.

A história de Taizé é um bom exemplo: uma minúscula povoação que fica a 390 quilómetros a sudeste de Paris, sem nada de especial que a recomende, veio a tornar-se um dos pulmões espirituais da Europa. Em 1940, era apenas uma zona de demarcação entre a França ocupada pelas tropas alemãs e a França livre. Precisamente nesse ano, desembarcava naqueles nenhures um jovem teólogo suíço, Roger Schütz, transportado por uma pergunta, que não o largava: qual seria a sua missão, a que devia ele consagrar a sua vida? Um elemento curioso – e que se liga à espiritualidade do provisório, que escolherá como caminho – é que a primeira vez que ele chegou a Taizé, fê-lo de bicicleta (e pedalar desde Genebra). Poderia ser só um passeio ou uma fuga improvisada. Taizé era uma espécie de ponto zero, uma estação de passagem. mas ele entendeu esse nada como uma oportunidade para reparar as suas feridas e as da humanidade. E decidiu que ficaria ali.

Esperar

José Tolentino Mendonça, O pequeno caminho das grandes perguntas, Quetzal Editores

Esperar não é uma perda de tempo

Damos por nós hipermodernos, polivalentes, aparelhados de tecnologia como uma central ambulante, multifuncionais mas sempre mais dependentes, perfeccionistas mas sempre insatisfeitos, vivendo as coisas sem poder refletir sobre elas, próximos da atividade extenuante e, no fundo, distantes da criação. Não temos tempo a perder. E, contudo, precisaríamos talvez de dizer a nós próprios, e uns aos outros, que esperar não é necessariamente uma perda de tempo. Muitas vezes é o contrário. É reconhecer o tempo necessário para ser; é tomar o tempo para si, como lugar de maturação, como história reencontrada; é perceber o tempo não apenas como enquadramento, mas como formulação em si mesma significativa.

Quem não aceitar, por exemplo, a impossibilidade de satisfação imediata de um desejo dificilmente saberá o que é um desejo (ou, pelo menos, o que é um grande desejo). Quem não esperar pelas sementes que lançar jamais provará a alegria de vê-las acenderem-se sobre a terra como milagre que nos resgata.

a possibilidade de Deus

José Tolentino Mendonça, O pequeno caminho das grandes perguntas, Quetzal Editores

Em Jesus de Nazaré, Deus vem dar-nos a possibilidade de nos tornarmos filhos de Deus. É isso que o prólogo do Evangelho de João explicita na fórmula feliz: “A todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus.” João 1, 12

Não há poder mais revolucionário nem mais fascinante colocado nas mãos do ser humano. Nem o acesso ao movimento das galáxias ou às órbitas das mais distantes estrelas e dos planetas. Nem os prodígios produzidos no laboratório complexo ou o deslumbramento interminável das múltiplas tecnologias. Nada se sobrepõe a esta capacidade que Deus dá a mulheres e homens imperfeitos, inacabados e incertos, como nós, de nos tornarmos seus filhos, de participarmos da vida divina. Por isso, cada vida, cada uma das nossas vidas, é uma história sagrada. É-lhe dado mais horizonte do que aquele que os observatórios espaciais contemplam. É-lhe dado mais infinito do que aquele a que qualquer astronave sideral pode aspirar.

Nas pequenas coisas que tecem a nossa existência, nesta teia humaníssima e quotidiana que nos urde temos  a possibilidade de transportar Deus, de espelhar o seu mistério, de traduzi-lo. Cada ser humano é uma possibilidade de Deus.

Parar

José Tolentino Mendonça, E, Expresso, 8.julho.2017

Que marinheiro se lança à aventura oceânica sem controlar se leva na embarcação, não só a vela e os remos, mas também uma âncora? Ou que caminhante enfrenta a sua jornada sem prever tempos e lugares de pausa, que lhe garantam a possibilidade de refazer-se, sentir o conforto de um abrigo e retemperar forças para poder continuar? A viagem não é só movimento, como a vida não é apenas o contínuo das suas atividades. A arte de parar é uma aprendizagem indispensável à sobrevivência, mesmo se isso vem frequentemente esquecido. Quem não sabe parar, não sabe viver, pois há uma qualificação da existência que provém daí, por muito que isso se tenha tornado difícil de efetivar ou nos obrigue a deliberar em contraciclo, mesmo em relação às idealizações que construímos sobre nós próprios. Precisamos de parar: por carência e necessidade, por chamamento interior e por escolha, por decisão e sabedoria.

Tendencialmente as nossas vidas têm-se tornado uma espécie de cidade que não dorme. O tempo parece-nos sempre escasso face ao programa que nos impomos. Desejaríamos que ele se desdobrasse, como que por magia, e fosse o que não é. Correndo ofegantes, num dia a dia saturado, não deixamos de sentir-nos ainda em falta com alguma coisa que muitas vezes não sabemos bem o que seja, mas que tem a forma de uma culpa que nos mói. A sensação crescente é de que o mundo nos ultrapassa e a perceção da nossa insuficiência deixa-nos devorados por dentro, em terra queimada. Por muito que façamos, as metas mantêm-se longínquas; nada nunca basta; a parte mais íntima de nós sente-se permanentemente irresoluta, em dívida e em perda.

E isto é assim, para nós, há muitos anos. Para o movimento tivemos mestres, a escola organizou-nos, a família tutelou de perto a nossa maturação. A pausa e o recreio foram confiados às regras do acaso, na suposição de que parar, brincar, repousar são uma ciência inata, coisa que — compreendemos dolorosamente depois — não é. Esse défice de competência fica em tantas vidas como um buraco do qual se foge, um vazio colmatado com múltiplas formas de evasão.

Muitas vezes dizemos que não paramos porque não podemos, pois, o mundo à nossa volta, o mundo que depende de nós, se bloquearia nesse instante. Ora, precisamos desconstruir esta ilusão. Os que se creem insubstituíveis padecem, não raro, de uma vertigem prometaica enganadora. É fundamental ganharmos um distanciamento crítico em relação ao nosso contributo, valorizando mais o trabalho de autonomização dos outros do que o tecer uma rede, mais visível ou impercetível, de dependência. Sem nos darmos conta, por trás de uma exagerada doação ou de um ativismo irreprimível, está uma insegurança profunda nos laços que estamos a construir.

Lembro-me que há uns anos, fazendo eu próprio os caminhos de Santiago, encontrei, logo no meu primeiro dia de peregrinação, uns brasileiros sentados na berma a tratar dos pés já meio-desfeitos. Eles devem ter-se apercebido do meu ar apavorado, porque um deles disse-me, com uma tranquilidade que me animou: “É bom gastar tempo a cuidar das próprias feridas.” Eu ainda não tinha compreendido que essa era uma das razões principais porque estava ali a enfrentar aqueles cento e tal quilómetros de estrada. Mas o mesmo se pode dizer do encontro (ou do desencontro) com os outros. Só encontramos verdadeiramente aqueles junto dos quais fundeamos a nossa âncora, empregando o tempo necessário à escuta, à atenção e à surpresa. O não parar é uma forma de fuga ao encontro mais profundo connosco mesmos e com os outros.

We’re off to see the wizard…

José Tolentino Mendonça, E, Expresso, 17.junho.2017

A aventura de não ir a parte nenhuma

Creio que levamos uma grande parte da vida a funcionar como nessa parábola que é “O Feiticeiro de Oz”. Vivemos aspirados por ciclones ou a desejar sê-lo; queremos voar para longe do sítio onde estamos; qualquer mapa que folheemos aparece-nos cheio de promessas encantadas; a felicidade define-se como um lugar que alcançaremos além do arco-íris. A vida comum assemelha-se a um inglório arrastar-se com sapatos de ferro, enquanto rebrilha nos nossos sonhos um extraordinário e levíssimo calçado de rubi. Sentimo-nos emparedados por um quotidiano que asfixia, quando poderíamos estar a trilhar um caminho de tijolos tão amarelos como o sol, na direção da cidade que refulge, e não do regresso previsível ao lugar cinzento que nos abriga. Desta maneira, o primeiro sinónimo que encontramos para a palavra aventura é evasão. E colocamos em cima dessa carta o nosso ouro.

Depois, demoradamente, à custa dos desencontros, passos em falso ou de tempo gasto com outras escutas, aprendemos o que a pequena Dorothy de “O Feiticeiro de Oz” conclui: “Se voltar a procurar os anseios do meu coração, não irei procurá-los além do meu quintal. Se não estiverem lá é porque realmente nunca foram meus.” A moral da história não é propriamente a dissuasão da viagem. É importante que os nossos olhos tenham contemplado tudo aquilo que lhes coube contemplar. E, como recomenda o poema “Ítaca”, de Constantino Kavafis, temos, de facto, de peregrinar a muitas cidades numa rota desejavelmente longa, vivida com euforia, contactando com empórios e sábios, arrematando mercadorias belas, madrepérolas e corais, âmbares e essências que fiquem, para sempre, a perfumar a vida. Mas as verdadeiras viagens são aquelas que nos entusiasmam e iniciam no regresso a nós próprios, sem o qual a viagem é só dispersão e em vez de conhecimento, um amontoar ruidoso e desconexo de experiências em vez de sabedoria. Não nos aconteça aquilo que vem ilustrado num velho relato islâmico: era uma vez um homem que tendo perdido a chave de casa, algures dentro do quarto, foi no entanto para a rua procurar a chave perdida, porque lá havia mais luz. Um dos maiores viajantes da literatura ocidental é Henry David Thoreau e os seus mais de vinte livros, muitos escritos numa solitária cabana nas margens do lago Walden, repetem o mesmo: a vida só tem sentido se for vivida de uma forma deliberada; e não importa por onde viajes ou quanta distância os teus passos alcançaram: a única coisa verdadeiramente importante é saberes quão vivo estás.

Uma vez ensinaram-me um provérbio que se repete na região de Quioto, no Japão. Diz o seguinte: “Não te limites a fazer coisas. Senta-te.” Na sua concisão esconde um programa exigente e cheio de possibilidades. Creio que nessa linha vai também o aforisma filosófico de Pascal: “Toda a infelicidade do ser humano nasce de um simples facto: não conseguir ficar quieto no seu quarto.” É claro que o quarto não é apenas o quarto, mesmo se muitas vezes não é mau começar por aí.

O verão sobrecarrega de atividade as agências de viagens, as redes sociais bombardeiam-nos com sugestões mirabolantes, as autoestradas e aeroportos bloqueiam-se com a nossa sofreguidão, os “ciclones” que fantasiamos durante o ano atiram-nos para paragens que supostamente cumpririam uma função compensatória ou supletiva em relação à vida ordinária. Há, porém, cada vez menos quem nos ajude a abraçar uma aventura só nossa, uma maravilhosa aventura necessária: a aventura de não ir a parte nenhuma.

Passemos à outra margem

José Tolentino Mendonça in “Avvenire”

O tempo constitui fundamentalmente uma espécie de coreografia interior. Dir-se-ia que a própria vida nos solicita a que a escutemos de um outro modo. É com este imperativo que cada um de nós é chamado a confrontar-se: a irresistível necessidade de reencontrar a vida na sua forma pura. Por exemplo: se a linha azul do mar nos seduz tanto, é também porque esta imensidão nos recorda o nosso verdadeiro horizonte; se subimos às altas montanhas, é porque na visão clara de cima se alcança do real, nessa visão luminosa e sem cesuras reconhecemos uma parte importante de um apelo mais íntimo; se vamos à procura de outras cidades (e, nessas cidades, de uma imagem, de um fragmento de beleza, de um não sei quê…), é também porque estamos em busca de uma geografia interior; se simplesmente nos concedemos uma experiência do tempo dilatada (refeições tomadas sem pressa, conversas que se prolongam, visitas e encontros), é porque a gratuidade, e só essa, nos dá o sabor prolongado da própria existência.

Tomemos esse verbo cunhado por Rainer Maria Rilke que diz: «Espero o verão como quem espera uma outra vida». Este verso não nos projeta para fora de nós, antes inicia-nos na arte da imersão interior. Verdadeiramente durante os longos invernos do tempo não é uma vida estranha e fantasiosa aquela que devemos esperar (e para a qual trabalhar!), mas uma vida que realmente nos pertença. É de um verão assim que Rilke fala, e que pode coincidir com qualquer estação: uma necessária oportunidade para nos imergirmos mais a fundo, mais dentro, mais alto, aceitando o risco de colher a vida integralmente e dela nos espantarmos. Na escassez e na plenitude, na dolorosa imprevisibilidade como na sabedoria confiante. Pensemos na proposta que, mais de uma vez, Jesus faz aos discípulos: «Passemos à outra margem» (Marcos 4, 35). Passar à outra margem não significa necessariamente a transferência para outro lugar, diferente daquele em que nos encontramos.

Às vezes, tudo o que nos é preciso é habitar a vida de um outro modo. É simplesmente caminhar com um outro passo nas estradas que já percorremos a cada dia. É abrir a janela quotidiana, mas lentamente, nas consciência de que estamos a abrir. É reaprender uma outra qualidade para uma quotidianidade talvez demasiado abandonada às rotinas e aos seus automatismos. É, no fundo, saborear o gosto das coisas mais simples. Podemos fazer uma viagem inesquecível, fascinados pelo sabor do instante presente, pela contemplação da paisagem que nos é mais próxima, da sabedoria de uma conversa, do silêncio de um livro que já temos entre as mãos. Pensemos no que escreve Marcel Proust: «Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que passámos com um livro predileto». Que desafio, esta noção de «dias plenamente vividos», e como nos é necessário avizinharmo-nos dela! «Passemos à outra margem.» As viagens não são só exteriores. Não é simplesmente na cartografia do mundo que o homem viaja. Fazer uma deslocação comporta uma mudança de posição, uma maturação do olhar, abertura ao novo, uma adaptação a realidades e linguagens, um confronto, um diálogo, inquietante ou encantado, que necessariamente deixa impressões muito profundas. A experiência da viagem é experiência da fronteira e de novos espaços, de que o homem tem necessidade para ser ele próprio. «Passemos à outra margem.»

A viagem é uma etapa fundamental na descoberta e na construção de nós mesmos e do mundo. É a nossa consciência que caminha, descobre cada detalhe do mundo e tudo olha de novo como se fosse a primeira vez. A viagem é uma espécie de motor desse olhar novo. Por isso é capaz de introduzir na nossa vida e nos seus esquemas, na sua organização, elementos sempre inéditos que podem operar essa recontextualização radical que, com um vocabulário cristão, chamamos “conversão”. Muitas mudanças de paradigma epocais (também eclesiais) tiveram a ver precisamente com a aceitação de um olhar viajante sobre o nosso mundo habitual e as suas convenções. O escritor Bruce Chatwin utiliza, a esse respeito, a expressão «alternativa nómada», expressão secularizada mas que pode bem ser reconduzida ao campo teológico e bíblico.

Abraão é um errante. Moisés descobre a sua vocação e missão como mandato de itinerância. Muitos dos profetas de Israel, de Elias a Jonas, viveram como exilados e proscritos. Jesus não tinha onde pousar a cabeça e habitava, dando-lhe sentido, um trânsito permanente. Os seus discípulos são convidados aos quatros cantos da Terra. O cristianismo define-se assim através de uma extraterritorialidade simbólica, sem cidade e sem morada, que permite a fenda, a abertura à revelação de um sentido maior. «Passemos à outra margem», propõe-nos Jesus.

 Trad.: Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura , Publicado em 06.06.2017

Do bom uso do fracasso

José Tolentino Mendonça, E, Expresso, 29.abril.2017

Como chegamos a ser o que somos? Por um trabalho longo e paciente, que decorre entre muita incerteza. E vem-me à cabeça o exemplo de Cézanne. Oseu pai, um próspero banqueiro de província, opunha-se a que o filho seguisse a vocação de pintor, pois considerava que isso colocaria em causa o seu futuro e o negócio familiar. Diga-se que o próprio Cézanne hesitava também. Perguntava-se a si mesmo se teria o talento necessário. Valeria a pena arriscar tudo o que era naquele caminho? Para satisfazer o pai, conclui o bacharelato e estuda Direito, mas sem abandonar dentro de si o seu sonho. O romancista Émile Zola, um seu amigo de infância, protesta com Cézanne contra tanta indecisão e pressiona-o para que vá viver para Paris. Cézanne acaba por aceder e ir ao seu encontro. Mas ao fim de uns meses é recusado na Escola de Belas Artes. Os académicos parisienses acham-no um colorista exagerado e pouco promissor. A verdade é que não o entendiam. Regressa então à Provença, devastado por aquela reviravolta, e recomeça a trabalhar no banco do pai. Dá que pensar esta história, e a forma contraditória que toma o caminho de um artista que revolucionou a pintura moderna. Por alguma razão é com ele que a pintura deixa de ser histórica para se tornar pessoal e íntima, centrada na batalha solitária do artista com a própria obra.

Há aquela misteriosa frase de T. S. Eliot: “Por vezes, ser um homem fracassado é em si mesmo uma vocação”. Pensamos pouco nisto: que papel na vocação de cada um de nós está reservado ao fracasso? Um dos livros mais extraordinários do cânone ocidental é consensualmente “Moby Dick”, de Herman Melville. O escritor escreveu-o aos trinta anos e foi um fracasso de tal ordem que ele se viu obrigado a pôr fim às suas expectativas literárias. “Moby Dick” foi declarado ilegível. Tinha uma arquitetura narrativa estranhíssima: tanto era uma aventura marítima, como um relato científico sobre baleias ou um tratado metafísico transbordante de pormenores e erudição. Mesmo para os leitores ingleses parecia uma floresta impenetrável, pois descrevia com um vocabulário rigoroso, assumidamente técnico, cada uma das partes de um barco e de toda a vida náutica. Não admira que os leitores, exasperados, se afastassem. E, contudo, nessa imensa catedral de palavras que é o romance “Moby Dick”, Melville reconfigurava a própria existência da linguagem e construía uma radical demanda interior. Aconteceu com ele o que frequentemente acontece connosco: a sua obra-prima começou por ser o seu maior fracasso.

“Estás a ouvir? — perguntou o principezinho. — Acordámos o poço e ele pôs-se a cantar…”. Não se espera que existam poços num deserto. O pequeno herói de Saint-Exupéry garante, porém, que “o que torna belo um deserto é que ele esconde um poço em algum lugar”. Resmungamos com a vida. Falta-lhe alguma coisa, nunca nada é perfeito, nada está acabado ou resolvido. É como se estivéssemos a jogar um jogo insolúvel: se temos o poço, falta-nos a corda; se temos a corda, falta-nos o balde; se temos a corda, o balde e o poço, falta-nos a força de ir até ao fundo da nascente buscar a água que nos dessedente. “O Principezinho” declara que não nos falta nada. Cada um de nós tem tudo o que precisa para experimentar a alegria. Não é um problema de conhecimento, é uma questão de olhar. Olharmos para o que somos e para o que nos rodeia com um coração simples, capaz de perceber o dom que nos habita. Pois, se encostarmos o ouvido até mesmo junto das nossas maiores derrotas compreenderemos que a nossa vida canta!

Jesus

José Tolentino Mendonça, E, Expresso, 23.12.2016

Jesus permanece para nós um desconhecido, e em muitos sentidos. Ao pensar nele assalta-nos o mesmo desconcerto dos seus concidadãos que o viram largar, ali diante dos olhos de todos, o ofício de artesão que exercia e abraçar um ministério de ensinamento e sanação, para o qual não o consideravam qualificado. Ele era apenas um deles, naquela aldeia que não excederia os seiscentos habitantes, a maior parte ocupados no cultivo do trigo e da oliveira, outros de cerâmica para uso doméstico, outros ainda, como ele e a sua família, dependentes da carpintaria, atividade necessária à manutenção do povoado. Não reconheciam naquele conterrâneo alguém capaz de anunciar o Reinado de Deus e ainda menos de alargar a compreensão sobre as suas implicações históricas. Mas resistindo à oposição dos mais próximos, Jesus tornou-se, de facto, um pregador itinerante que percorria a Baixa Galileia em torno ao ano 30 do século I, anunciando a consolação divina nos conglomerados da região, como cumprimento das promessas do Deus de Israel. Eram cerca de quinze as aldeolas onde ele concentrou a sua itinerância, evitando as pujantes cidades helenísticas da região: Tiberíades e Séforis, por exemplo.

Segundo o testemunho da mais antiga das narrativas evangélicas, o seu primeiro gesto público é de natureza cultural e já em rutura com o modo estabelecido: um rito de imersão praticado segundo o programa de um pregador apocalíptico e fora de formato, João Batista. Ao fazer-se batizar assim, Jesus partilha a aspiração à mudança disseminada nas margens do judaísmo do seu tempo e assume a crítica que muitos faziam ao templo e ao sistema alojado em Jerusalém. Com o desenvolvimento da sua missão, isso só se irá sedimentar. Não passará muito tempo para o vermos protagonizar, com todos os riscos inerentes, a releitura inovadora das instituições que deram identidade messiânica a Israel: não só o templo, mas também a terra e a lei. Algo de inédito começava. Não admira que a questão que persegue Jesus, do princípio ao fim, seja a da origem da autoridade com que ele ousa divergir do status quo.

As suas palavras e ações, seguidas não só por multidões de curiosos, mas por um bando que passa a acompanhá-lo para toda a parte, pedem para ser lidas como manifestação da presença compassiva de Deus: “O Espírito do Senhor está permanentemente sobre mim, pois me ungiu para evangelizar os pobres. Enviou-me a curar os quebrantados de coração, a pregar liberdade aos cativos, a restauração da vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos, a anunciar o ano aceitável do Senhor” (Lc 4,18-19). Jesus vinha colocar em perspetiva a realização da salvação de Deus, salvação que, segundo ele, atuava já no presente: na dignificação da vida para todos e na capacidade de reconciliar os distantes (doentes, endemoninhados, pecadores, estrangeiros…), esse coral de segregados das várias culturas inscritas naquele pequeno território (a cultura judaica, a helenística, cananeia e romana). O constante retrato que os evangelhos dão de Jesus como comensal e amigo dos pecadores assinala essa vontade firme de cruzar as fronteiras, que eram morais e de etnia, género, cultura ou de classe. Todas estas escolhas ficam bem patentes nas suas parábolas, a forma de comunicação por ele privilegiada. Essas curtíssimas narrativas, entre o enigmático e o poético, colocam em crise a imagem ordinária e convencional do mundo, fazem irromper novas possibilidades em situações supostamente encerradas, reinventam a vida.

a Alegria

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III do Advento, homilia, Capela do Rato

Queridos irmãos e irmãs,

Celebramos hoje o Domingo Laetare, o domingo da alegria, o terceiro domingo do Advento. Os que caminham experimentam a alegria contemplando, mesmo que ao longe, o lugar para onde se dirigem.

No caminho para Santiago de Compostela há um momento, uma parada, uns 20 Km antes, onde os peregrinos lavavam as suas roupas, robusteciam-se para entrar na cidade de Santiago e dar o abraço a Santiago não como uns mendigos cheios da poeira e do cansaço das estradas, mas renovados e em festa. É essa alegria de uma meta próxima, de um porto, de um abrigo que o nosso coração adivinha que nos faz estar em sobressalto.

E o que é a alegria? O Ricardo Araújo Pereira, que é um especialista na alegria, e temos também de o ouvir, conta muitas vezes que começou a descobrir o humor e o riso em criança, como vêm as grandes vocações, e porque estava em convívio com uma avó muito deprimida. O que ele faz é tentar fazer rir a avó. Cada riso da avó era para ele uma vitória. E como é que ele entendia o riso? Como a capacidade que um corpo tem, sem tocar no outro, de despertar uma reação bonita, feliz no outro.

Então, a alegria não é uma coisa vaga. A alegria é, e os Evangelhos contam isso de forma concreta, um estremecimento. A alegria é uma emoção que nos percorre, a alegria é alguma coisa que nos toca, que nos transforma.

A alegria neste Domingo Laetare também não é uma alegria vaga, uma alegria abstrata. Nós sabemos porque é que experimentamos uma alegria. E esse saber vem da pergunta que João Batista manda fazer a Jesus. A situação é impressionante, João Batista está preso e sabe que a sua morte está próxima, mas manda perguntar a Jesus: “És Tu Aquele que há de vir? Ou devemos esperar outro?” É interessante a palavra em grego porque é um particípio presente: o erchómenos, “tu és Aquele que vem?” E este “o erchómenos”, “Aquele que vem”, é uma espécie de senha para falar do Messias escatológico, do profeta do fim dos tempos, Daquele que havia de vir consumar, dar um sentido pleno à história e à vida. Por isso João Batista manda perguntar: “Tu és Aquele que vem ou devemos esperar outro?” A resposta de Jesus é espantosa, porque não é um “sim” ou um “não”, é uma resposta narrativa: “Ide contar o que vedes e ouvis.” E então o que é que se vê? Vê-se o impacto messiânico na vida concreta daquelas pessoas, vê-se o impacto da chegada de Jesus naqueles corações, e de repente esta liberdade, esta libertação: os cegos veem, os coxos andam, os mortos ressuscitam, a Boa Nova é partilhada com os pobres. Isto é, a história está a ser transformada e isso é uma fonte de alegria, e isso confirma que o erchómenos, aquele que está para vir verdadeiramente chegou.

A razão da nossa alegria não é uma ideia vaga, não é uma expectativa sem rosto, sem nome que cada um de nós alimenta um bocadinho às cegas dentro de si. Não, a nossa alegria brota daquilo que somos capazes de contar uns aos outros, das histórias que somos capazes de narrar. Isto é, da vida multiplicada, da vida acontecida, daquilo que em nome de Jesus continua a acontecer nas nossas histórias, daquilo que a fé em Jesus é capaz de despertar, é capaz de fazer irromper como sobressalto, como emoção, como irradiação de vida em cada um de nós. É isto que contamos uns aos outros, e é isto que dizemos àqueles que estão presos, é isto que dizemos àqueles que aguardam com expectativa a vinda de um sentido, a chegada de uma luz, é isso que nós temos a missão de contar. Isto que vemos e ouvimos.

Queridos irmãs e irmãos, o tempo do Advento é um tempo muito comprometedor, porque é o tempo do Messias. Nós vivemos a nossa vida muitas vezes como se não esperássemos nada, como se tudo estivesse realizado, como se tudo estivesse consumado, como se só contássemos apenas com as nossas forças, com aquilo que trazemos para explicar o enigma da história. Muitas vezes nós fechamos a nossa porta e fechamos mesmo, fechamos o nosso coração e trancamo-lo mesmo, e não contamos com mais nada. Acreditamos em Deus mas isso é uma crença, é uma convicção, não é um poder transformador das nossas vidas. Ora, o tempo messiânico é habitar a tensão do Messias que vem, é não contar só com as pedras que temos na mão, não contar só com as nossas forças, mas contar com aquilo que Ele nos traz. Não apenas contar connosco mesmos, com a nossa fragilidade ou o nosso voluntarismo, mas contarmos com a energia salvadora, transformadora do próprio Jesus. É esse rasgão, essa abertura, essa hospitalidade que fazemos ao Deus que vem que nos sobressalta, que nos enche de alegria, que nos dá razões para acreditar, para festejar.

Queridos irmãos, o Natal não está arrumado numa caixa que nós abrimos anualmente e tiramos de lá os ornamentos, as musiquinhas e as luzinhas, e pomos tudo a piscar e a construir como um teatrinho anual que fazemos uns aos outros para nos consolarmos daquilo que não somos. Não, o Natal é um berço, o Natal é uma manjedoura, o Natal é a possibilidade da mulher e do homem que somos nascer verdadeiramente. E nascer porque Deus vem, Ele é o erchómenos, nascer porque Ele nos levanta. Nascer porque Ele nos faz ser, nos faz ser, nos faz ser!

O Natal não é um símbolo, o Natal é alguma coisa que está a acontecer. É como uma gargalhada que nós damos, como um sorriso que nós damos, forte e que altera o nosso corpo. O Natal também nos altera. E altera-nos não na epiderme, não na superfície, altera-nos profundamente porque Ele está connosco, Ele é o Emanuel, Ele passa a ser o companheiro das nossas vidas. Não contamos apenas com aquilo que trazemos, com aquilo que conseguimos, colocamo-nos por inteiro nas mãos Dele. E isto faz toda a diferença.

Queridos irmãs e irmãos, vivamos o Advento nesta profundidade que Ele nos pede. É tão fácil distrairmo-nos nestes dias que são muito curtos para tudo aquilo que são as obrigações sociais, familiares, culturais, profissionais – temos de estar com isto e com aquilo e mais a pensar no outro. É muito fácil pensar em tudo e deixar de lado o essencial. Por isso, há aqui uma sabedoria, há aqui um alerta, há aqui uma chamada profética a dizer: “Concentra-te, abre os olhos, abre o coração, compromete-te.”