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Tudo começa pelo espanto

índiceJosé Tolentino Mendonça  na E, Expresso, 29.10.2016

Lembro-me muitas vezes de um ensaio da escritora italiana Natalia Ginzburg sobre aquilo que os pais transmitem aos filhos. E a opinião dela é que os pais parecem esgotar o seu papel no ensinamento das pequenas virtudes, e frequentemente se demitem de dizer uma palavra ou tomar uma iniciativa sobre as grandes. É como se todo o nosso sistema de valores educativos se restringisse à aprendizagem do que é o senso comum adquirido, aquilo que de uma forma ou de outra se respira no ar, escolhendo assim a estrada mais cómoda. O pior, porém, é o que, neste modelo educativo, se deixa a descoberto em termos da aventura humana como aventura de construção do sentido.

E Natalia Ginzburg dá exemplos. A relação com o dinheiro é um deles. Os pais sentem o cuidado de ensinar os filhos a poupar e a utilizar de forma parcimoniosa os recursos financeiros, mas sentem menos, como tarefa, o ensinamento da generosidade ou até da indiferença perante o dinheiro quando está em causa aquilo que nenhum dinheiro compra. Os pais investem na transmissão da prudência, mas falam pouco da coragem ou do desprezo pelo perigo. Relevam a astúcia e não tanto o amor pela verdade. A diplomacia no lugar do abnegado amor ao próximo. O desejo de sucesso em vez do desejo de ser e de saber. É evidente que este não é simplesmente um problema dos pais X ou Y, mas tem que ver com os modelos de felicidade que a nossa sociedade maioritariamente adota.

Ora, não quer dizer que as pequenas virtudes não sejam ferramentas de vida fundamentais. Não é essa a discussão. O ponto que precisaríamos de refletir melhor é o do nosso esquecimento das grandes virtudes, deixadas à geração espontânea e à música do acaso. Pode ser que um jovem chegue a elas por um encontro, pelo alvoroço de uma grande alegria ou de um demolidor sofrimento que, em arriscada contramão, lhes permitam fazer um caminho interior inesperado. Porém, o que distingue hoje as nossas sociedades em relação a outras, contemporâneas ou passadas, é que nesse caminho cada um estará muito mais só do que se escolhesse fazer da sua inteira existência um quintal para cultivar as pequenas e óbvias virtudes.

Uma das grandes virtudes que precisamos reencontrar é a arte do espanto, pois é verdadeiramente por aí que tudo começa. Espanto deriva do latino expaventare que descreve a forte impressão originada por uma coisa inesperada e repentina. Se procurarmos sinónimos, encontramos assombro, admiração, surpresa. É o contacto (consciente, fulgurante, desarmado, rendido) com a vida maior do que nós, a vida em aberto, não predeterminada. No espanto, a nova e surpreendente expressão da vida prende a nossa atenção à maneira de um relâmpago, de um rasgão imprevisível. Não a conseguimos encaixar no nosso quadro habitual, pois o seu carácter inédito torna inúteis todas as previsões, saberes, experiências, etiquetas, mapas, preparações.

Gosto muito da definição de espanto dada por Adorno: “Espanto é o longo e inocente olhar sobre o objeto”. É, de facto, um ‘olhar longo’ e isso talvez explique porque consideramos hoje tão pouco o espanto, num tempo que nos programa para olhares breves, relances, observações fugidias e utilitárias, cada vez mais simplificadas.

E é um ‘olhar inocente’, isto é, aberto à revelação do próprio objeto, ao que ele pretende de nós e não ao que imediatamente pretendemos dele. O espanto obriga-nos a uma revisão do que sabemos de nós próprios e do mundo. Obriga-nos a recomeçar, como se fosse um nascer. Certamente que, no seu processo, o espanto desarruma e dói. Mas o amor, o conhecimento, a poesia ou a santidade principiam com ele.

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Meteorologia

índiceJosé Tolentino Mendonça  na E, Expresso, 22.10.2016

Se há coisa que aprendemos depressa é esta: todos queremos, precisamos, desesperamos por ser felizes. Mas cada um é feliz à sua maneira. Dentro da semelhança aloja-se, portanto, esta inultrapassável variação que torna a vida (ainda mais) complexa e fascinante. Por exemplo, uma das minhas amigas mais antigas adora a chuva e o frio. Eu, por mim, prefiro de longe o calor e o sol. A princípio nem percebia bem as lamentações dela quando a primavera se enrobustecia e tudo decididamente se ilumina. Com os anos habituei-me ao mau humor dela em relação ao verão, aos adjetivos resmungados contra as rotinas estivais, ao completo rancor com que ela olha a meteorologia desses meses seguidos que fazem a felicidade de tantos. Mas habituei-me também à alegria dela sempre que chove, às desculpas que engendra para desdramatizar os inverniços, à sua disposição de repente ensolarada só porque, em vez de sol, a manhã traz doses massivas de nevoeiro, geada e frio. Claro que o espanto persiste e ainda dou comigo a pensar perante uma tarde ensopada de água e de vento: “Como é que se pode gostar tanto disto?”, mas já não tento convencê-la, nem a contrario. Quando não consigo acompanhar o seu entusiasmo, deixo-me ficar calado a refletir nele, como uma hipótese curiosa em que não tinha pensado. Quem gosta do inverno ama os dias breves, a apagarem-se progressivamente. E esta minha amiga repete que os dias longos do verão são excêntricos e desregulados. Os dias certos são estes que se vão instalar para a semana, com a hora de inverno. Em Portugal sente-se um bocado a diferença, mas noutras geografias o choque é bem maior.

Lembro-me de quando vivia em Itália e começava a escurecer às quatro da tarde. Nos primeiros dias ficava completamente transido. O tempo parecia rasgado e em falta, com o seu quê de hostil. A habituação não era fácil. Para não falar já das peculiaridades ainda mais exigentes dos países do norte. Mas até disso nos aprendemos a rir. O relativismo não tem só coisas más. Ruy Belo, num daqueles poemas que nos descrevem dos pés à cabeça, deixou escrito: “É triste no outono concluir que era o verão a única estação.” Ora, para desmantelarmos o peso da tristeza que nos sequestra, é importante reconciliarmo-nos com as estações que nos são menos naturais. A vida hoje afastou-nos da natureza: as paisagens urbanas, com as suas florestas de vidro e betão, encerram a nossa existência entre paredes eficazes, que podem até ser muito cómodas. Mas o ar que respiramos, por alguma razão se chama “ar condicionado”. E vivemos de uma forma tão superprotegida que basta um aguaceiro ou um pé de vento para nos transtornar.

Lembro-me muitas vezes do chamado “Cântico das Criaturas”, composto por São Francisco de Assis, e que é consensualmente considerado o texto poético mais antigo da literatura italiana (datado de um período em torno a 1224-1226). São Francisco finaliza o poema já enfermo, na iminência da morte, quando praticamente havia deixado de ver. Esta sua situação de enorme vulnerabilidade não lhe retira a paz, pelo contrário: só adensa a espantosa sabedoria que os seus versos refletem. O poema é um dos grandes textos do cânone ocidental e desenha-se como uma oração de louvor ao “Altíssimo, omnipotente, bom Senhor”, a quem se faz chegar o integral louvor das suas criaturas, sem distinção. E estão lá todos os que, de uma forma ou de outra, se derramam sobre nós em cada estação: o “irmão Sol”, a “irmã Lua”, o “irmão Vento”, a “irmã Água”, o “irmão Fogo”, a “mãe Terra”, a “nossa irmã Morte”.

O Tempo como Dom

índiceJosé Tolentino Mendonça  na E, revista do Expresso 10.9.2016

Quando olhamos para um bocado de terra, apercebemo-nos de várias camadas geológicas e até somos capazes de dizer: esta levou mil anos a sedimentar, esta levou quinhentos, esta dez. Toda a realidade é lavrada pelo incomensurável efeito do tempo: seja a minúscula pedra ou a grandiosa montanha, tudo tem no tempo a sua chave indispensável. Somos trabalhados instante a instante pelos seus instrumentos. E por vezes o tempo passa por nós de forma tão delicada que nem damos por ele, e outras atormenta-nos, assedia-nos, convulsa-nos, com a sua voracidade.

Nós somos duração (ou, pelo menos, “duro desejo de durar”, como Paul Éluard defendia). Quer dizer, trazemos em nós a memória e a presença de tempos muito diversos e isso, por muito que nos custe, é um dom. Conhecer-se é tomar consciência desses tempos que coexistem em nós, mesmo no seu contraste. Gostaríamos que a vida fosse mais linear e harmoniosa, não tivesse a marca daquele solavanco ou daquela ferida, não tivesse atravessado aquele estremecimento. É verdade, para bem e para mal, aquilo que Camus escreveu: “O homem é o único animal que se recusa a ser o que é.” Mas em nós coexistirão sempre o breu e a lâmpada, o tesouro e o barro, e a atitude não é mudar aquilo que não podemos mudar, mas perceber que a ambivalência, em certo grau, também é uma respiração que nos pertence. Bem desejaríamos poder travar ou modificar o tempo. Porém, o importante não é ser perfeito: o fundamental é ser inteiro. Trata-se, assim, de integrar, na composição que fazemos da existência, a diversidade, a fragmentação e o contraste. E os pequenos triunfos dão-nos fortaleza para olhar as grandes humilhações, e as dificuldades vividas oferecem-nos sabedoria para olhar de outra maneira para tudo o resto. As experiências de liberdade ampliam a capacidade e a esperança para suportar os momentos em que a perdemos; e as experiências em que nos sentimos aprisionados consolidam a resistência, a força e até o sentido de humor para vivermos os tempos de liberdade. Há, portanto, que afastar a tentação do cinismo e aceitar que somos feitos efetivamente destes materiais tão diferentes e que tudo isso é matéria de vida e de dádiva. Escreve Rainer Maria Rilke nesse mapa indispensável que são as “Cartas a um Jovem Poeta”: “o tempo não é uma medida, um ano não conta, dez anos não representam nada, ser pessoa não significa contar, não se trata de contar o tempo: trata-se sim de crescer como a árvore que não apressa a sua seiva e resiste serena.”

Normalmente, quando vamos de um lado para o outro conhecemos o motivo. Mas — temos de reconhecê-lo — uma viagem assim é demasiado curta. A viagem que se faz sabendo os motivos não é a viagem. A verdadeira viagem é aquela que dura tanto que já não se sabe porque se veio ou porque se está. As perguntas sobre o que fazemos já não interessam. Estamos, ponto final. Viemos. Não é o saber ou a utilidade que definem a vida, mas o próprio ser, a expressão profunda de si.

Por exemplo: olhamos para um jardim, gostamos, não gostamos, intervimos, cortamos, cerceamos e, de repente, temos um jardim obcecado por figuras geométricas, recortado pela ânsia de alcançar formas reconhecíveis ou perfeitas. Contudo, é bom saber que o nosso desejo de arrumação pode ser enganador, porque a vida é viva, e nada se sobrepõe a essa verdade. Creio, por isso, que temos sim de desejar os nossos canteiros bem ordenados e floridos, e neles a maturar a vida que controlamos. Mas não podemos deixar de desejar, e de desejar ardentemente, que flores selvagens, flores de que não conhecemos o nome, venham também florir à nossa porta.

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Espaço para a profecia

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Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XIII do Tempo Comum, homilia

Queridos irmãs e irmãos,

A Palavra de Deus também funciona como um espelho. Como um espelho onde nós encontramos histórias com as quais nos podemos identificar, histórias que trazem uma profundidade de sentido até à nossa vida, nos colocam perguntas, colocam-se a conversar com aquilo que somos, aquilo que vivemos, aquilo que trazemos dentro de nós. É uma espécie de mosaico. É sempre uma narrativa muito ampla, muito aberta mas capaz de tocar pontos concretos do itinerário que cada um de nós, cada um de nós sem exceção, está a fazer. Este conjunto de histórias, à maneira de um repositório, acaba por traduzir de forma muito concreta aquela que é a vontade de Deus inspirar a nossa vida, transformar, transfigurar, iluminar, reconciliar profundamente a nossa vida.

A primeira história é aquela do profeta Elias e do profeta Eliseu. É muito belo porque o profetismo não tem a ver com a família, o profetismo acontece de surpresa, Deus manifesta-se na vida de forma surpreendente. E é importante estarmos abertos para as surpresas de Deus. O modo como Deus vai entrar na vida de cada um de nós é um modo único, é um modo diferente. É importante cada um de nós estar aberto para essa surpresa.

Eliseu estava com os seus bois e o seu arado a trabalhar na terra, as expetativas dele seriam continuar ali, e passa o profeta Elias e tira-lhe a capa. Isto é, desafia-o a começar um destino novo com o qual ele não contou. E então, Eliseu faz um gesto de grande beleza: mata as juntas de bois e com a madeira do próprio arado faz um banquete para os seus e despede-se, e começa um tempo novo de vida.

Mas, ele quer começar esse tempo novo de vida com um momento de dádiva, transformando aquilo que tem numa dádiva, numa oferta aos outros. Isto para nós é um desafio muito grande, porque nem sempre aquilo que temos nós conseguimos transforma-lo em dádiva, conseguimos transforma-lo em oferta, em lugar de encontro, em potenciador da relação. Mas, o que temos são apenas coisas, são apenas bois e são apenas arados. Ser capaz de transformar os bois e arados numa festa é alguma coisa para a qual Deus desafia cada um de nós. No fundo, o que é que fazemos com aquilo que possuímos? E como é que sentimos que estamos a ser chamados?

Nós somos um povo de profetas. Então, na vida de cada um de nós tem de haver espaço para a profecia. Não são apenas: ah, a madre Teresa de Calcutá é uma grande profeta, Jean Vanier é um grande profeta. Sim, sem dúvida são vozes proféticas mas o que Deus quer é um povo de profetas. Isto é, cada um de nós, no seu espaço, no seu território existencial possa fazer acender a profecia. Como é que nós fazemos acender a profecia? A profecia é sempre um gesto disruptivo, é sempre um gesto novo, é sempre um gesto capaz de trazer a força do Espírito Santo.

Outra imagem muito forte, e ao mesmo tempo de grande realismo, é aquela que nos é oferecida por S. Paulo na Carta aos Gálatas. S. Paulo explora aqui uma coisa que ele vai trabalhar muito também noutras epístolas, que é esta: cada um de nós experimenta princípios contraditórios dentro de si. Que ele resume em dois: o princípio da carne e o princípio do Espírito. O princípio da carne leva-nos para um lado, aquilo que é o Espírito em nós leva-nos para outro, e cada um de nós experimenta o conflito, experimenta a dificuldade de ser. Tanto assim que S. Paulo noutra carta vai dizer isto: “Quem me libertará deste corpo de morte? Porque eu não faço aquilo que acredito, mas acabo por fazer aquilo que odeio, aquilo que não quero.” E nós sabemos que é assim. Tantas vezes não fazemos aquilo que achamos que é o bem, aquilo que acreditamos que é o bem e acabamos por ficar escravos apenas da nossa carne e da nossa vontade e vivemos esta contradição interna. S. Paulo dá-nos este retrato. Quer dizer, Deus sabe aquilo que nós vivemos, Deus sabe o que está em cada um de nós, Deus conhece-nos a fundo. E, nesse sentido, esta contradição humana, esta dificuldade de viver, de ser, que cada um de nós experimenta é mesmo assim. Contudo, a palavra de Paulo é esta: “Não podemos desistir de dar na nossa vida prioridade ao Espírito. Não podemos desistir de fazer experiência de liberdade.” E às vezes para nós a liberdade mais difícil é a liberdade face ao nosso “eu”, face ao nosso ego. Porque o nosso “eu”, às vezes, tem exigências tirânicas; o nosso “eu”, às vezes, é uma prisão que nos prende. Nós temos de ouvir a voz do nosso eu, mas ao mesmo tempo não podemos ficar submissos a essa voz. Temos de ter uma liberdade, temos de experimentar um desapego face às exigências do nosso eu, na nossa vontade, nas nossas necessidades. Experimentar uma liberdade, um espaço de liberdade. E é essa liberdade, esse desapego, essa relativização de nós mesmos que também cria espaço para a liberdade do Espírito, para a criatividade do Espírito na nossa vida.

O Evangelho de hoje também é uma sucessão de imagens com as quais nos temos de confrontar. A primeira é esta: Jesus ia a passar na peregrinação de Jerusalém, os discípulos vão preparar-lhe um lugar na Samaria, mas como os samaritanos odeiam os judeus quando sabem que Jesus vai para Jerusalém fecham-lhes a porta. E os discípulos dizem: “Senhor, queres que mandemos cair fogo do céu para queimar esta gente dura de coração?” E Jesus diz: “Não, vamos para outro lugar.” Reparem a forma como Jesus ultrapassa o conflito. Às vezes nós ficamos presos a lutas que não vão a lado nenhum, às vezes nós ficamos a combater por causas que só aumentam a violência, que já não dão possibilidade de encontro e o que é belo é esta sabedoria do Evangelho que diz: “Não, vai para outro lugar. Vai-te embora, desiste disso. Tu não vais mudar a rixa, o conflito entre os samaritanos e os judeus. Começa uma outra coisa, vai para outro sítio.” E este ir embora é, no fundo, também uma possibilidade de começar uma coisa nova.

Aquele discípulo que vem dizer: “Senhor, seguir-te-ei para onde quer que fores.” E Jesus diz-lhe: “As raposas têm as suas tocas, as aves os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça.” Isto é, nós seguimos Jesus, cada um de nós segue Jesus mas não é para chegar a um lugar, não é para ter um prémio, não é para entrar num parque de estacionamento, não é para ficar parado, não é para ficar seguro. A religião não é uma seguradora, não é a ‘Fidelidade’, não é a ‘Tranquilidade’, não é uma seguradora. A religião é um clube de risco, é para quem, de facto, quer arriscar. E, muitas vezes, precisamente os crentes, precisamente aqueles que se abandonam, aqueles que aceitam Deus têm de viver no nada, no Deus dará, no Deus dará. Têm de fazer a experiência da Providência, têm de sentir que Deus não está a por a mão por baixo, têm de sentir o silêncio de Deus. Têm de sentir que a vida é um risco, é um acreditar. E o acreditar não é: eu somo dois mais dois e então percebo que é assim. Não, eu não consigo somar nada, mas acredito que é assim. Este atirar a vida para diante é a confiança daqueles que seguem Jesus.

Aquela palavra daquela pequena história é uma palavra que para nós nos desassossega porque aquele homem veio dizer a Jesus: “Senhor, eu sigo-Te mas deixa-me primeiro ir despedir-me dos meus pais.” É um pedido honesto, é um pedido certo, até o profeta Elias permitiu que Eliseu se fosse despedir da sua família. Mas porque é que Jesus diz: “Não, não deixa lá isso. Quem coloca as mãos na charrua não pode olhar para trás senão deixa de ser digno de Mim.” Há aqui um paradoxo claramente, Jesus usa também metáforas paradoxais. Mas o que é que Jesus nos quer dizer? Nós temos de ser capazes de experimentar na nossa vida a prioridade de Deus, a prioridade do Reino de Deus. Porque é muito difícil amar a Deus sobre todas as coisas, é muito difícil. É muito difícil colocar Deus em primeiro lugar na nossa vida. Porque é que é difícil? Porque há tantas coisas que são importantes, há tantas coisas igualmente necessárias. E às tantas nós vivemos a adorar tantos deuses, nós vivemos presos a tantas coisas sem a capacidade de perceber qual é a coisa mais importante, qual é o passo que nós temos de dar. Por isso, Jesus diz: “Quem tiver lançado as mãos ao arado e olhar para trás não serve para o Reino de Deus.” Isto é, temos que nos projetar para diante, temos de acreditar que aquilo que o Senhor pede a cada um de nós é, de facto, aquele lugar de encontro e de reencontro. Mesmo que nós não estejamos a ver como é que as coisas se vão passar, como é que vão ocorrer. Maria também não sabia quando o anjo veio ter com ela. Mas, Deus pode, Deus faz, Deus é capaz, a Deus nada é impossível. E é nesta Palavra, é nesta experiência que nós temos de ancorar a nossa vida.

Vamos assim aceitar receber esta Palavra, expor-nos a ela e que este conjunto de histórias correspondam a outros tantos desafios concretos capazes de dialogar com aquilo que nesta hora nós estamos a viver.

“Vede como eles se amam”

índicePe. José Tolentino Mendonça, Domingo V da Páscoa, homilia

Queridos irmãs e irmãos,

Em cada Páscoa nós celebramos a verdade central da fé cristã. Essa verdade é esta e muito simples: o Espírito de Jesus ressuscitado habita no meio de nós. Como é que nós sabemos que Ele está vivo? Como é que nós O reconhecemos presente no Emaús da nossa vida e da nossa história? Sabemos porque o Seu Espírito está derramado em cada um de nós. Nós somos, hoje, o Cristo ressuscitado, nós somos o Seu Corpo Místico, nós somos a Sua presença no mundo. Porque Ele ressuscitou e está vivo, porque de junto do Pai Ele enviou o Seu Espírito, derramado, infundido em cada um de nós, para que em cada um de nós Jesus continue presente ao mundo e à história. Por isso, é na nossa vida, são nos nossos membros, nos nossos gestos, nos nossos desejos, nos nossos projetos que nós somos chamados a reencontrar Cristo.

Onde é que O encontraremos? Não é longe daquilo que somos e daquilo que vivemos. Mas nós temos de reencontrar Cristo no estilo da nossa vida, na gramática com que organizamos a nossa vida, nos valores que são o núcleo fundamental das nossas convicções. Aí nós temos de reconhecer Cristo, e Cristo ressuscitado, e temos de abrir mais e mais o nosso coração para que Ele Se torne presente. Ele deixou-nos um mandamento, um mandamento que é absolutamente insólito porque todos os mandamentos e toda a lei chega até um certo ponto.

A lei manda-nos ser justos, manda-nos ser corretos uns para com os outros. E nenhuma lei do mundo pode pedir que nos amemos uns aos outros, nenhuma lei. O amor não cai sobre a alçada da lei. Cai o respeito, cai a tolerância, cai a compreensão, cai a justiça no trato com os nossos semelhantes, mas o amor ninguém nos pode pedir, ninguém nos pode ordenar o amor.

É interessante que mesmo da chamada herança tricolor – liberdade, igualdade, fraternidade – as nossas sociedades liberais continuam o ideal da liberdade e da igualdade, entre aspas, mas o ideal da fraternidade caiu completamente. É como se as nossas sociedades achassem que era um ideal impossível de alcançar. Já não queremos ser irmãos uns dos outros. Queremos ser livres, queremos ser mais indivíduos, queremos ter mais espaço para nós próprios, mas a fraternidade é um ideal completamente em derrota, completamente para trás.

Contudo, Jesus dá-nos um mandamento nessa linha e um mandamento ainda mais exigente: “Amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei.” Isto dá muito que pensar, porque muitas vezes nós achamos que devemos amar os outros como amamos a nós próprios. E por isso é muito importante amarmo-nos a nós mesmos para podermos amar os outros. Não está mal pensado. É importante que nos amemos a nós próprios, que nos encontremos, que tenhamos connosco mesmos uma relação equilibrada, amável, cordial para podermos amar os outros. Freud há décadas que nos veio também lembrar isso de outra forma e noutra linguagem.

Às vezes pensamos que temos de amar os outros como o outro me ama. E isso nós vemos no amor maternal, no amor paternal, como o amor incondicional que recebemos do outro tantas vezes é o modelo de amor – aprendemos a amar, aprendemos a retribuir. Então, o amor é uma espécie de resposta amorosa ao amor que nós recebemos, o amor é uma forma de retribuição. Mas não é nem de um nem de outro amor que Jesus fala. Jesus diz: “O Meu mandamento é este: amai-vos uns aos outros como Eu vos amei. Então, sabereis que sois Meus discípulos.” A medida do nosso amor, o modelo do nosso amor, o paradigma do nosso amor é o próprio Cristo. E nós temos de aprender a amar como Ele amou, com aquela disposição, com aquela liberdade, com aquela gratuidade, com aquela capacidade de ser dom, com aquela disponibilidade para ir até ao fim, para dar tudo sem limites. Nós temos de aprender esse amor.

A grande força da identidade cristã está sempre aqui. E este tempo, o tempo da Igreja, é para nós um tempo de aprendizagem. Nós somos aprendizes, estudantes, discípulos de um amor assim. Aquilo que é o nosso móbil, o horizonte de sentido da nossa vida é podermos alcançar um amor assim. E sentimo-nos felizes e sentimo-nos livres e sentimo-nos autênticos e sentimo-nos cristãos quando, às vezes por momentos, por um momento, por um dia feliz nós somos capazes de um amor assim, quando em pequenos ou em grandes gestos nós somos capazes de repetir a lição amorosa de Jesus Cristo: “ É este o mandamento que vos deixo.”

Queridos irmãos, a herança de Jesus é esta: é nos dar como tarefa o amor, como mandamento o amor. Aquilo que nenhuma constituição, nenhuma lei, nenhuma ordem nos pede é o que Cristo exige, reclama do nosso coração. Por isso, nós somos um povo mobilizado para o amor, e para um amor que tem a sua medida no amar sem medida, na capacidade de doação, na capacidade de entrega. Será que nós vivemos isto? Será que nós estamos disponíveis para isto?

A grande aventura cristã não é uma aventura ideológica. Os discípulos não tinham muito para dizer. Imaginemos Pedro: Pedro fez aquele caminho com Jesus, mas aquele pobre pescador, do lago de Tiberíades, o que é que ele tinha para dizer aos atenienses que sabiam muito mais de filosofia do que ele? O que é que ele tinha para dizer aos mestres judeus que tinham lido mil vezes a Bíblia mais do que ele? O que é que ele tinha de dizer aos Romanos que inventaram o direito e que eram uma civilização muito superior? O que é que ele tinha para dizer? Não tinha nada. Para dizer verdadeiramente, para anunciar uma novidade excitante de pensamento não tinha nenhuma. A única coisa que ele trazia era este mandamento: “Eu dou-vos um mandamento novo.”

É essa a grande novidade, é isso que é inédito na história do mundo, na pequena história de cada um de nós: recebermos este mandamento e fazermos dele o ponto de partida da nossa vida, o ponto de mudança, o ponto de radicação do nosso viver, podermos acreditar que é aí que se joga verdadeiramente a nossa felicidade. E o que nós vemos de extraordinário no Cristianismo das origens é como isso toca verdadeiramente, por isso as multidões diziam: “Vede como eles se amam.” Porque é esse amor que se torna o distintivo cristão. Por isso, um homem como Paulo de Tarso é capaz de chegar àquelas cidades helenísticas romanas e começar a criar comunidades que são absolutamente inéditas, absolutamente insólitas, porque são comunidades formadas por homens e mulheres, por judeus e gentios, por escravos e por homens livres, por ricos e proletários, todos juntos numa comunidade a escutar a palavra e a celebrar a eucaristia.

O mundo grego, na perfeição que é – o Fernando Pessoa dizia: “nunca mais nos livraremos dos gregos” e é verdade no sentido da dívida que temos para com eles – no auge da sua imensa sabedoria e criatividade, não foi capaz de criar uma comunidade assim. O mundo romano, no seu saber – e nunca mais nos livraremos deles porque eles criaram um instrumento tão extraordinário como o Direito, por exemplo, para lá da língua – não foi capaz de criar um mundo assim.

Quer dizer, toda a cultura, toda a riqueza, todo o engenho, toda a arte não foi capaz de criar uma comunidade de homens e mulheres indistintos que se juntam à volta de uma mesa e se amam, e se consideram irmãos. Agora a pergunta é: a nossa sabedoria para que é que nos serve? A nossa riqueza para que é que nos serve? Aquilo que temos, aquilo que trazemos, aquilo que construímos para que é que nos serve? Para que é que nos tem servido? Para que é que nos tem servido se não for para juntarmos à volta da mesa do amor, à maneira de Jesus Cristo, os nossos irmãos? E quando se diz: “Os nossos irmãos” em linguagem cristã diz-se “qualquer um, qualquer uma”. Isto é, quando formos capazes de amar qualquer homem, qualquer mulher como um irmão nosso, aí nós sentimos verdadeiramente que a lição de Jesus Cristo se torna efetiva em nós. Para que é que nos serve a nossa vida, as nossas batalhas, as nossas conquistas, o que sabemos e o que ignoramos, o que temos e o que não temos se não for para isso? “Deixo-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros como eu vos amei, nisso reconhecerão que sóis Meus discípulos.”

A arte de corrigir

índiceJosé Tolentino Mendonça  na E, revista do Expresso 2.4.2016

Vivemos hoje em plena era tecnológica, o triunfo da correção automática. Telemóveis, iPhones, iPads… Os teclados colocados à nossa disposição são tão ágeis que nem precisamos de olhar para eles. Podemos digitar uma mensagem a uma velocidade recorde, sem especiais preocupações, pois o automatismo do dispositivo vai alterando e (supostamente) corrigindo os nossos erros de escrita. A publicidade, cada vez mais agressiva, explica que o corretor automático tem a enorme vantagem de nos fazer poupar tempo. Mas tempo para quê? Nas relações interpessoais existe também a tentação da correção automática. Quando, por exemplo, nos agarramos como a um totem à letra da lei, ao ditado de uma tradição, aos escritos de um ponto de vista sem olhar a mais, como resolução para todos os problemas que surjam. Ou quando desatamos a corrigir os outros por tudo e por nada. Nem precisamos de olhar para as pessoas. Basta-nos citar maquinalmente o número da regra que estão a infringir naquele momento, ou a nossa prescrição avulsa que resolve tudo. Sem dúvida que dessa forma se poupa tempo. Mas sabemos que a vida não é assim. A vida é uma construção paciente. A sua maturação, não só a externa mas também a interior, segue um processo delicadíssimo. Os seus fios são ténues e frágeis mesmo quando parecem longos e indivisíveis. Se quisermos chegar à fonte escondida de um coração, temos de aceitar andar muito devagar. Pode ser um exercício extenuante, mas não há outra forma. O termo que mais vezes vem utilizado para designar o ato de correção, tanto no grego clássico como nos textos cristãos das origens, é noutheteîn, que significa literalmente pôr no coração, colocar na sua mente, prestar atenção a. O contrário, portanto, da indiferença ou do confronto impreparado e prepotente, que são as nossas patologias mais frequentes na relação com os outros e com as suas fraquezas. Platão, no diálogo denominado Eutidemo (248e), assina a frase seguinte. “Amo-te, mas corrijo-te com amizade”, o que já de si é um programa. O termo será depois muito utilizado por São Paulo e pelo ambiente paulino como palavra que deve reorientar, mas sem esmagar ou exasperar, aquele que a recebe. É, por exemplo, interessante olhar a sucessão de verbos que nos surge em 1 Tessalonicenses 5, 14: exortar, corrigir, encorajar, amparar e suportar. Estes verbos iluminam-se e explicam-se mutuamente.

Por sua vez, o termo latino corrigere (cum-regere) significa reger, governar, inspecionar juntamente, acentuando assim a dimensão relacional que deve estar presente na experiência da correção. O ato de corrigir implica necessariamente afeto, atenção, cuidado, relação. É alguma coisa que se faz a par. A correção não é, por isso, monopólio de ninguém. É uma ferramenta para construir vida, e vida qualificada. Para corrigir é preciso este conhecimento empático e franco, esta benevolente abertura ao outro, esta sabedoria que não sublinha a falta ou a fraqueza mais do que a dignidade da pessoa.

A correção, portanto, não só não é automática como não deve ser espontânea. Não é uma descarga emocional que mistura impaciência e frustração. Não é uma explosão de humor. A correção supõe uma aprendizagem. Seria, por isso, absurdo considerar a correção como um fim: ela é uma mediação colaborativa, um suporte para a construção esperançosa. Ajuda a ser. Nada mais. Corrigimos melhor quando encaramos de forma solidária a dificuldade em jogo e apostamos com confiança na superação da prova. E temos sempre de evitar que a correção seja a única forma de relação que temos com alguém. Quem só corrige não corrige.

o céu e o inferno

índiceJosé Tolentino Mendonça  na E, revista do Expresso 5.3.2016

Esta não é uma crónica sobre topografia teológica, embora esse possa ser, como é sabido, um motivo cultural fascinante. Mas interessou-me um outro aspeto: a constatação perturbadora, por nós todos experimentada, de que, na prática, as polaridades representadas pelo céu e pelo inferno não são afinal opostas, como se esperaria. Com algum desconcerto descobrimos, vida fora, que elas são, ao contrário, terrivelmente semelhantes. A forma com que nos aparecem as possibilidades de bem e de mal não são tão diferentes assim. O que as separa, explicava já o célebre rabino Soloviel, é muitas vezes o inaudível som de uma gota de chuva a cair no mar. Apenas isso. De tal modo que os que se quedam por infernos não podem argumentar que não conheceram o céu e os que se aventuram pelos céus não podem pensar que nunca enfrentaram a possibilidade do inverso. Em resumo, a ética da existência não implica talvez que façamos coisas diferentes, mas sim que realizemos as mesmas coisas de maneira diferente. Dou dois exemplos, culturalmente distintos, mas suficientemente incisivos para nos colocar a pensar. O primeiro é uma história zen e conta o que se segue. Houve um dia em que um discípulo interrogou o seu mestre: “Mestre, qual é a diferença entre o céu e o inferno?”
E o Mestre elucidou-o, explicando. “A diferença é muito pequena, e tem, contudo, enormes consequências. Imagina uma grande quantidade de arroz preparado como alimento. E imagina também que ao redor dele, paradoxalmente, estão muitas pessoas prestes a morrer de fome. A razão é que possuem longos garfos de dois a três metros de comprimento. Apanham o arroz, mas não conseguem levá-lo à própria boca, porque os grafos revelam-se demasiado longos para o manejo das mãos. Assim, famintos e solitários debatem-se com o drama irresolúvel da fome diante daquela fartura inesgotável. Isto é o inferno.”
“E o que seria o céu?” – atalhou logo o discípulo. “Imagina agora outra grande quantidade de arroz preparado como alimento. Ao seu redor, pessoas esfomeadas mas, neste caso, cheias de vitalidade. Elas também não conseguem aproximar-se do alimento. Os longos garfos, de dois a três metros de comprimento, apanham o arroz, mas são demasiado longos para o manejo das suas mãos. Porém, em vez de insistirem em levá-los à própria boca, aqui as pessoas dão de comer umas às outras, numa espécie de grande roda fraterna. Isto é o céu.”
Nelson Mandela referia-se frequentemente à sabedoria ubuntiana. Ubuntu, na cultura subsaariana significa. “Eu sou porque nós somos.” É uma prática ética focalizada nas relações recíprocas entre as pessoas. Indica “benevolência para com o próximo” e constitui uma regra de vida baseada na compaixão. Para descrever o Ubuntu, também se narram histórias. Como esta: um antropólogo propôs um jogo às crianças de uma tribo africana. Colocou um cesto de frutos apetitosos ao pé de uma árvore e disse às crianças que aquela que chegasse lá primeiro ficaria com tudo para si. Quando foi dado o sinal para partir, as crianças deram as mãos e começaram a correr dessa maneira. Quando lé chegaram, agarraram no cesto, sentaram-se à volta e gozaram juntas o sabor daquele prémio.
Nelson Mandela descrevia o Ubuntu com o seguinte testemunho: “Qualquer pessoa que viaje pelo nosso país e pare numa aldeia não tem necessidade de pedir alimento ou água: imediatamente as pessoas lhe oferecem hospitalidade. Ubuntu não significa não pensar em si mesmos, mas em colocar-se a pergunta: quero ajudar a comunidade que me rodeia a ser melhor? O céu e o inferno também passam por aqui.

Sintamo-nos abençoados

pe. Tolentino Mendonça, homilia, Capela do Rato, 1.janeiro.2016

Queridos irmãs e irmãos,
Neste primeiro dia do ano celebramos Maria com um título especial, um título, se DSC_4322 (681x1024)quisermos, até radical, porque a saudamos como Santa Maria Mãe de Deus, theotókos. Foi um caminho que a própria Igreja fez e uma discussão muito grande num concílio. A pergunta era se não era excessivo chamar Maria Mãe de Deus, chamar uma pessoa humana mãe do próprio Deus. Isso parece um paradoxo total, uma coisa nunca vista.
Mas o que celebramos em Maria, a sua maternidade divina, é também a visão cristã sobre a pessoa humana. No fundo do Cristianismo há um otimismo, se quisermos radical, em relação àquilo que a pessoa humana é capaz. O Cristianismo o que é que diz? Que cada ser humano é capaz de gerar o divino, de trazer em si o divino. Cada ser humano é capaz de ser cúmplice do próprio Deus, é capaz de ser a Sua imagem e semelhança, é capaz de ser o Seu canal de transmissão, é capaz de ser a Sua presença no mundo, é capaz de ser o grande sinal de Deus na história.
A esta crença liga-se a bênção. Neste primeiro dia do ano as leituras concentram-nos em torno à bênção. Deus diz a Moisés e a Aarão que abençoem os filhos de Deus. E o que é abençoar? A própria palavra benedire quer dizer: dizer bem, dizer o bem que cada pessoa é, dizer o bom que cada pessoa é. E como isso é fundamental para a vida! É o próprio Deus que nos abençoa, que diz o bem que existe em nós. É tão bela a bênção que Deus ensina a Aarão e a Moisés a atribuírem ao Povo de Deus: “O Senhor te abençoe e te proteja, o Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável, o Senhor volte para ti os seus olhos e te conceda a paz.”
Neste início do ano, queridos irmãs e irmãos, sintamo-nos abençoados, sintamos que somos filhos, filhos amados de Deus, confiemos no bem que Deus vê em nós. Simone Weil dizia que: “Mais importante do que termos fé em Deus é compreendermos que Deus tem fé em nós.” Esta fé que Deus tem na nossa Humanidade é a âncora, é a alavanca que nos transforma. Sintamo-nos por isso abençoados, vencendo todo o sentimento interior de orfandade, de distância, de exclusão. Sintamo-nos verdadeiramente filhos, isso que S. Paulo também hoje nos diz na Carta aos Gálatas: “Vós não sois escravos, vós sois filhos. Assim como filhos amados.” Aquilo que Deus disse no Batismo a Jesus “Tu és o Meu Filho muito amado, em Ti coloco o Meu amor.” é, no fundo, isso que Deus diz a cada homem, a cada mulher: “Tu, Meu filho muito amado.” E isso é a verdadeira bênção, a verdadeira bênção.
Às vezes na vida nós caminhamos mais sob o peso, sob a sombra da maldição do que sob a luz de uma bênção. Precisamos de ser abençoados, precisamos que a bênção nos seja recordada, nos seja lembrada, precisamos que nos digam o quanto somos queridos, amados por Deus, o quanto fazemos parte do Seu projeto qualquer que seja a nossa situação, a nossa trajetória, o nosso caminho. Sintamo-nos abençoados, abençoados por Deus.
Hoje nós celebramos a quadragésima nona jornada de oração pela paz. O Santo Padre, o Papa Francisco, na mensagem deste ano coloca o ponto de atenção na necessidade de vencermos a indiferença. Ele diz: “Vence a indiferença se queres construir a paz.” E, de facto, é a vitória sobre a indiferença que nos dá razões de alegria. Por exemplo no Evangelho, os pastores, eles estavam nos seus rebanhos, na sua vida, quando foram chamados para ir ao presépio. Imagine-se que eles não iam, era menos uma razão de esperança, de grande esperança, para eles.
Tantas vezes nós perdemos a esperança, a nossa vida como que se desvitaliza, como que fica amorfa, cinzenta, encapsulada. Porquê? Porque construímos um muro de indiferença que não quebramos, e por isso nada nos toca também, nada nos redime. Às vezes não queremos sofrer: “Ah, eu vou envolver-me, vou saber, vou fazer, não quero sofrer, não quero ter trabalhos.” Há uma maneira de não sofrer, é não amar, mas isso também não é humano.
O Santo Padre, nesta Carta que erTantas vezes nós perdemos a esperança, aa importante que todos lêssemos (ela está disponível na internet e noutros meios), que começa por dizer isto, é a primeira frase da mensagem: “Deus não é indiferente.” Deus não é indiferente, Deus não é indiferente aos nossos sofrimentos, à nossa esperança, à nossa humanidade, pelo contrário Deus é parcial, Deus toma partido pela pessoa humana, Deus vem ao encontro da pessoa humana. O Santo Padre, fazendo o diagnóstico do mundo presente, diz: “Talvez o grande pecado do nosso tempo seja de facto a indiferença.” Numa sociedade da informação em que temos o conhecimento hora a hora, minuto a minuto, nesta aldeia global em que o mundo se tornou, a verdade é que também cresce uma indiferença. Vemos as imagens mas elas já não nos tocam, estamos como que anestesiados perante aqueles que nos rodeiam, perante a situação de tantos. Vencer a indiferença é o caminho para a construção da paz.
Mas como é que se vence verdadeiramente a indiferença? O Santo Padre, na sua mensagem, liga esta jornada de oração pela paz ao Ano Santo da Misericórdia que nos estamos a viver. Ele diz que: “A verdadeira vitória sobre a indiferença é aquela que acontece num coração misericordioso.” Neste ano de 2016 nós somos chamados a redescobrir a misericórdia. Cada um de nós, cada um de nós. O Santo Padre abriu as portas em Roma, na Basílica, mas aquilo é só um sinal de uma coisa que tem de acontecer no coração de cada um de nós. Abramos as portas do nosso coração e sintamos este desafio que a Igreja nos coloca este ano de cada um de nós redescobrir a misericórdia.
O Santo Padre diz uma coisa muito preciosa e precisa, diz ele: “Cada cristão torne a misericórdia o seu programa de vida.” Cada cristão torne a misericórdia o seu programa de vida. Neste ano de 2016, a misericórdia seja o nosso programa de vida. Que cada um de nós pergunte: o que é a misericórdia? O que é a misericórdia na minha vida? Eu já sei o que é a misericórdia? Eu pratico a misericórdia? O que é que eu tenho a aprender sobre a misericórdia? E como é que a misericórdia se pode expressar, na vida que eu tenho? Na humanidade que eu sou como é que ela se pode expressar?
Que a misericórdia seja a grande escola da paz, uma paz interior que começa no nosso coração, mas uma paz que sai para fora, uma paz que inunda a nossa vida, uma paz testemunhada na cidade, uma paz com uma dimensão política, uma dimensão económica, pedagógica, de relações. Que a misericórdia seja o nosso empenho neste ano de 2016. E, se assim for, que ano de esperança nós estamos a começar, que ano de alegria nós estamos a viver!

O sentido do provisório

pe. José Tolentino Mendonça, homilia do domingo XXXIII do tempo comum

A aproximação do final do ano litúrgico, que se conclui no próximo domingo com a festa de Cristo Rei, lembra-nos uma verdade que muitas vezes, engolidos pela experiência do tempo, nós esquecemos. Essa verdade é que a experiência cristã é também uma experiência apocalíptica.
Isto o que é que quer dizer? Quer dizer que a experiência cristã olha para o mundo enquanto construção, enquanto representação – esta construção e esta representação que nós conhecemos como provisórias. O cenário do mundo é passageiro. Isto é, tudo aquilo que nós vemos, que nós construímos, que nos serve como lei, como regra, como norma, como cultura, tudo isso tem uma dimensão provisória.

É como se vivêssemos nas verdades penúltimas. E depois, haverá as verdades últimas. Quer dizer, este cenário do mundo, esta ordem do mundo, tem de se confrontar com a verdade definitiva, com o Absoluto, com aquilo que não passa. Esse confronto, esse diálogo do provisório com o Absoluto, é um diálogo que faz estremecer o provisório, que mostra a insuficiência do provisório. Mostra como as nossas obras, as nossas construções, aquilo que nos apaixona, aquilo que nos parece a coisa mais importante e mais prioritária, muitas vezes é relativizado por uma outra ordem, essa sim mais importante.

A verdade é que nós no dia a dia esquecemo-nos muito disso e vivemos como se este formato do mundo fosse para sempre, como se as construções que vemos fossem durar eternamente, como se a nossa cultura, os nossos hábitos, passassem a ser uma regra para todos os homens de todos os tempos e de todas as gerações, e não é assim. Muito daquilo que nós hoje absolutizamos é absolutamente provisório e será superado, será transformado. Porque isso tem a ver com as coisas penúltimas. E é o confronto, sempre necessário, com a verdade última, com a finalidade última, com aquilo que é eterno, que dá um verdadeiro sentido e uma verdadeira dimensão àquilo que nós vivemos, àquilo que nós somos, àquilo a que nós aspiramos.

Nesse sentido, o Cristianismo é, não apenas foi, uma religião apocalíptica. Porque ele não olha para aquilo que hoje nós temos e aquilo que hoje nós somos como definitivo – isso está em superação, isso será criticado, renovado, reavaliado, no encontro com o Eterno. Ser cristão é saber também isso, é olhar para o mundo, olhar para o presente, olhar para nós próprios, para o nosso próprio mundo, para o nosso próprio presente, e não perder uma dimensão crítica. Isto é, perceber que isto é o que pode ser agora, ou isto é o que temos agora, mas nem sempre será assim. O último juízo, o último olhar, a última validação, a definitiva, será de Deus. E isso dá-nos um sentido de humildade muito grande. Eu não posso viver a absolutizar as coisas, tenho que manter o sentido do provisório, o sentido do crítico, o sentido da humildade. Sabendo que é assim agora mas poderá ser de outra forma. É o que eu penso, mas eu tenho que me submeter ao juízo de Deus e ao pensamento de Deus. É agora a Lei universal mas só Deus verá, só Deus decidirá o que é que há de restar de tudo isto que agora nós somos e nós vemos.

Para nós cristãos, o critério último de validação é aquele que Deus nos dá na pessoa de Jesus Cristo. Jesus, a sua vida, torna-se o critério da eternidade. Por isso é que nós vemos esta linguagem apocalíptica que diz: “Tudo cairá, tudo soçobrará, o sol já não será o sol, a lua já não será a lua, já não receberemos a luz, as estruturas do mundo todas se alterarão, virão os anjos de Deus e alterarão aquilo que nós vemos de uma forma radical, colocando tudo em causa.” É uma linguagem simbólica muito forte para dizer isto: o nosso presente, o nosso instante precisa ser criticado, iluminado pelo eterno.

Nós temos de construir uma vida que não seja uma vida fechada, trancada, intransigente na sua própria lógica, como se nós tivéssemos a vida na mão, como se nós fossemos os decisores finais. Não somos. Temos de fazer uma vida que ao mesmo tempo não seja uma vida cínica. Isto é, nós não vivemos no mundo desacreditando no mundo, nós não vivemos não gostando da vida, não gostando dos outros porque o nosso coração está noutro lado. Não é isso. Nós amamos a luz do mundo, nós amamo-nos uns aos outros, nós queremos construir alguma coisa com sentido. Sabemos que o Reino começa a ser vivido aqui, mas também sabemos que a chave do sentido não está na nossa mão. Sabemos que a estrutura do mundo é provisória nas suas formas, e sabemos que o último juízo, a última palavra, é a Palavra de Deus. (…)

Mas viver criticamente o presente, abrir-se à alternativa de Deus, abrir-se ao juízo de Deus perceber que nós habitamos o tempo do fim leva-nos a duas coisas fundamentais que hoje as leituras também nos lembram. Primeiro, leva-nos a um centramento na pessoa de Jesus. Nós estamos a ler, domingo a domingo, a Carta aos Hebreus que é um texto político muito forte, muito contundente e que diz, no fundo, o seguinte: Cristo é a superação da ordem política, da ordem religiosa, da ordem social, cultural como nós a conhecíamos. Jesus supera, Jesus é a própria alternativa ao que nós absolutizamos. Isso obriga-nos também a deixar cair tanta coisa, a relativizar tanta coisa. Porque Jesus não apenas superou o Sacerdócio antigo, Jesus vai sempre à frente. Isto previne-nos da tentação de às vezes aprisionarmos Deus na nossa lógica, capturarmos Jesus – nós é que sabemos o que Deus pensa, nós é que sabemos o que Jesus julga. Não, nós não sabemos e o que sabemos é que Ele supera, que o juízo de Deus é sempre maior que o nosso.

Nesse sentido, nós crentes não nos substituímos a Deus. Ser crente não é ser dono de Deus, é ser um servidor humilde, é ser um enamorado de Deus, é ter a paixão, sentir o amor em si. Adorar quer dizer amar muito, mas amar não é prender, não é limitar Deus. Pelo contrário, é com a nossa pobreza, colocando-nos a nós próprios no lugar, ampliarmos o amor de Deus, ampliarmos a misericórdia de Deus.

Nós estamos às portas de começar o Ano Santo da Misericórdia, e um dos apelos do Papa Francisco tem sido esse continuamente: “A Igreja não pode ser um funil para a misericórdia de Deus.” Nós não podemos afunilar a história e as vidas dos outros numa lógica muito certinha, muito racional, muito prudente mas onde não se faz a experiência da misericórdia. Nesse sentido, é preciso cada um de nós deixar nas relações uns com os outros, na forma como estamos na vida, como estamos no mundo, como estamos perante nós próprios, Deus ser Deus. Tu, cristão, deixas, permites que Deus seja Deus? Permites na tua vida, no teu comportamento, na tua maneira de falar, de julgar, de reagir aos acontecimentos? Permites que Deus seja Deus? Ou te colocas tu no lugar de Deus como se soubesses, como se esgotasses o pensamento de Deus?

Ora, a misericórdia, o Ano Santo da Misericórdia, pedem que olhemos para Jesus como Aquele que ultrapassa, como aquele que supera. Mas também como Aquele que nos supera. A misericórdia de Cristo é maior que a minha misericórdia. Seria terrível se a misericórdia de Cristo se esgotasse na pequenina, na ínfima provisão de misericórdia que eu trago. A sabedoria de Deus é maior do que a minha sabedoria. Seria uma tragédia absoluta se eu representasse a sabedoria de Deus, ou se eu pretendesse isso.

Aceitar que Jesus nos supera, que Jesus é maior que o nosso coração, que é maior que as nossas palavras. Isso obriga-nos a uma contenção, a uma liberdade muito grande e à liberdade mais difícil que é a liberdade face a nós próprios – face ao nosso eu, às nossas certezas, aos nossos tiques. Ganhar essa liberdade e perceber: Cristo é maior, Cristo é maior e eu tenho de me confiar a Ele, tenho de aceitar que Ele me supera, que Ele vai à minha frente. Tenho de ser discípulo, não mestre de Jesus, tenho de ser Seu discípulo – vivermos aceitando que Jesus nos supera.

De certa forma, aceitar que o Espírito Santo é maior do que a Igreja, que o mistério de Deus é maior do que aquilo que nós sabemos acerca Dele – essa é a verdadeira dimensão mística – e percebermos que somos servidores da sua compaixão, servidores da sua misericórdia.
Um segundo aspeto, que nos lembra o profeta Daniel. É dizer “Num tempo em que a provisoriedade, a fragilidade, a vulnerabilidade do mundo se acentuam.” (e nós olhamos para o nosso mundo e percebemos isso), o que é que está a emergir com esta violência toda? É a insuficiência do mundo, é a sua ferida, é a sua dor, é a sua guerra, é o seu desencontro, é a sua incapacidade de fazer pontes, é a sua loucura. Mas num tempo como este qual deve ser a nossa atitude? A que é que cada um de nós é chamado? O profeta Daniel lembra-nos o chamamento fundamental dizendo: “Os sábios resplandecerão como a luz no firmamento, e os que tiverem ensinado a muitos o caminho da justiça brilharão como estrelas por toda a eternidade.”
Então, o que é que nos é pedido? Uma grande sabedoria, uma grande sabedoria. Este tempo que nós vivemos, um tempo tão difícil, com desafios tão exigentes, com cenários tão contraditórios, tão paradoxais, este é o momento de sabedoria. Não é o momento para perdermos a cabeça, mas é o momento para arrumarmos a cabeça, é o momento para fazermos um verdadeiro discernimento espiritual, é o momento para nos firmarmos naquilo que é importante, é o momento para buscarmos uma prudência que não é só nossa mas também vem de Deus.

Uma verdadeira sabedoria total, que não é apenas a sabedoria que a ciência, que o conhecimento nos dão, mas é também uma sabedoria humana, uma sabedoria espiritual. Este é o momento em que o mundo precisa de homens sábios, de mulheres sábias que no pequenino da vida, no pequenino da história e no grande, possam apontar caminhos de sabedoria. Os caminhos de sabedoria que sejam ensinar a muitos o caminho da justiça. É essa capacidade de transmitir: transmitir valores, transmitir esperança, transmitir este sentido profundo de uma justiça que sem a caridade é sempre incompleta, fica sempre aquém da sua missão. Mas aqueles que souberem transmitir e ensinar uma justiça assim, esses permaneceram na eternidade como estrelas acesas no céu.

Queridos irmãs e irmãos, o cenário do mundo é passageiro. O mundo é agitado por uma violência muito grande. Nós sabemos que o mundo, na sua construção, é provisória, e tem de ser criticado por aquilo que é eterno, que é o que Deus nos mostra, este amor radical que Deus nos mostra na vida de Jesus Cristo.

Mas é-nos confiada uma missão, e essa missão resume-se bem nas palavras que hoje Daniel nos lembra: vivermos com sabedoria, procurarmos uma sabedoria do alto para a nossa vida. Não ficarmos a reagir apenas às nossas emoções, procurarmos uma verdadeira sabedoria e ensinarmos a muitos uma justiça que seja verdadeiramente justa, transformadora, iluminadora do mundo.
Porque, aquilo que nós fazemos com amor, aquilo que nós investimos de amor, de sageza, de fraternidade, isso não é abalado, isso não passa, isso é o princípio da eternidade que nós colocamos no aqui e no agora da turbulência do mundo.

O sopro que nos faz ser

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Pentecostes, 24 maio 2015

(…) A palavra “espírito”, que o grego traduz por “anemos “, que quer dizer ânimo, como nós utilizamos, mas que quer dizer “vento, sopro”, no hebraico diz-se “néfes”, e néfes é a vida. E o que é a vida? A vida é este sopro vital sem o qual nós não podemos viver. Ora, o sopro vital não é apenas o oxigénio de que nós precisamos para existir neste instante. O sopro vital é este Sopro de Deus de que cada um de nós é objeto para poder ser e ser plenitude. DSC_4650 (1024x681)E, por isso, é tão importante tomar consciência da presença do Espírito Santo nas nossas vidas, rezar ao Espírito Santo, pedir que Ele venha, pedir que Ele nos ilumine, pedir a Sua interceção, pedir que Ele permaneça connosco, pedir que Ele nos encha de todos os Seus dons. Porque o Espírito é uno e é múltiplo. O Espírito é fantasioso, é criativo. O Espírito, sendo apenas um só, Ele está em todos de uma maneira única, de uma forma diferente. Ele distribui os carismas, Ele distribui os talentos, as qualidades, as potencialidades, a originalidade do próprio ser. É o Espírito o defensor ao mesmo tempo da unidade e da originalidade. Cada um de nós é um cristão original no Espírito Santo, e traz para a comunidade um dom que é único. Por isso precisamos tomar consciência e pedir ao Espírito Santo que nos renove, que nos recrie.

DSC_4700 (681x1024)Aquela expressão que muitas vezes usamos do “desalmado”, ou então do “desanimado”, quer dizer isso muitas vezes, que é o modo como nós vivemos: vivemos sem alma, vivemos sem ânimo. Isso é efetivo, é real nas nossas vidas. Ora, o entusiasmo, o Deus que nos faz dançar, que nos faz ser, que nos enche, que nos dá o fulgor, a intensidade, que nos faz brilhar, é o Espírito. É o Espírito. E, por isso, precisamos acolher o Espírito Santo nas nossas vidas. Uma Igreja conformista, uma Igreja parada, de onde não nasce nada, uma Igreja que vive a satisfazer os mínimos é uma Igreja sem Espírito Santo. É uma Igreja que deixa o Espírito Santo como um estranho, à porta. É o Espírito Santo que acorda em nós a paixão, a vontade, a criatividade para exprimir em novas linguagens, em novas gramáticas o coração da nossa fé.

Em Itália há um mosteiro, o mosteiro de Bose (já tenho falado dele de vez em quando), que é uma comunidade monástica jovem. Eles têm uma parede da qual eu me lembro muitas vezes. Numa parede têm o que eles chamam os nossos pneumatóforos. Pneumatóforo quer dizer condutor do Espírito Santo, aqueles que nos trouxeram o Espírito. Então, os pneumatóforos são os visitantes proféticos que passaram pela comunidade como hóspedes e a desafiaram, a inspiraram a ser.DSC_4626 (1024x681) De facto, nós precisamos de nos inspirarmos uns aos outros. Precisamos de ser luz, de desafiar. Quantas vezes nós achamos que ser cristãos é ser condescendentes uns com os outros. É dar palmadinhas nas costas e dizer: “Deixa lá. Afinal, podia ser pior.” Claro que podia ser pior, mas também podia ser muito melhor. Nesse sentido, há um dever de inspirar a vida uns dos outros, de sermos pneumatóforos, de levarmos o Espírito, de abrir horizontes, de apontar estrelas, de levantar os olhos mais longe, de dizer: “Tu és capaz. Tu consegues, no Espírito Santo.” E é assim que nós, irmãos, acordamos e percebemos que o Pentecostes não foi um acontecimento do passado, mas é um acontecimento de presente.

Nós precisamos do Espírito Santo, precisamos que Ele venha, precisamos de contagiarmo-nos uns aos outros com o fogo do Espírito Santo. E se encontramos um irmão/uma irmã mais desanimada, mais cansada, o que nós temos a fazer é de lhe passar o Espírito Santo. Na Igreja das origens os cristãos viviam a impor as mãos uns aos outros. DSC_4845 (1024x681)Esse impor as mãos era essa passagem efetiva do Espírito Santo. Ora, com um abraço, com uma palavra, com uma presença, nós também impomos as mãos, nós o que fazemos é passar vida de um coração para o outro.

Queridos irmãos, sejamos bons condutores de vida, desta vida espiritual. Porque sem o Espírito Santo nós somos só o pó, nós somos só a terra, nós somos só o barro, nós somos só isto que se vê daqui, e isto que morre aqui, todos os dias, a todas as horas. É o Espírito que nos torna maiores, é o Espírito que nos projeta. O Espírito Santo é a alavanca da Igreja e é a alavanca da história. O Espírito Santo é o mestre, é o mapa, é o oceano, é a viagem. Por isso, acolhamos o Espírito Santo, neste dia para as nossas vidas, para este momento preciso que cada um de nós está a viver, e que há de ser um momento de traduzir o Espírito Santo de uma forma pessoal e nova nas nossas existências.