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Somos analfabetos do silêncio

foto taize françaJosé Tolentino Mendonça na E do Expresso

Ao que parece, durante anos, o compositor John Cage sondou a possibilidade de elaborar uma obra completamente silenciosa, mas impedia-o duas coisas: a dúvida se uma tarefa assim não estaria, desde logo, votada ao fracasso, porque tudo é som; e a convicção de que uma composição tal seria incompreensível no espaço mental da cultura do Ocidente. Contudo, encorajado pelas experiências que se realizavam já nas artes visuais, construiu a sua peça intitulada 4’33’’. A proposta de Cage era completamente insólita: os músicos deviam subir ao palco, saudar o público, sentar-se ao instrumento e permanecer, em silêncio, por quatro minutos e trinta e três segundos, até que, de novo, se levantassem, agradecessem à plateia e saíssem. Na assistência instalou-se a polémica e choveram as vaias. Mas ao longo de toda a sua vida, John Cage referiu-se a essa peça com sentida reverência: “A minha peça mais importante é essa silenciosa; não passa um só dia que não me sirva dela para a minha vida e para tudo o que faço. Recordo-a sempre que tenho de escrever uma nova peça. Quando penso no contributo que a experiência poética ou religiosa possa dar num futuro próximo à humanidade, penso francamente que mais até do que a palavra será a partilha desse património imenso que é o silêncio. Na palavra fazemos a experiência da diferenciação, experiência certamente fundante, mas também ela parcial e insuficiente. Precisamos do auxí¬lio de outra ciência, a que recorremos pouco: o silêncio. Isaac de Nínive, lá pelos finais do século VII, ensinava: “A palavra é o órgão do mundo presente. O silêncio é o mistério do mundo que está a chegar”. Creio que é absolutamente urgente revisitarmos com outro apreço os territórios dos nossos silêncios e fazermos deles lugares de troca, de diálogos, de encontros. O silêncio é um instrumento de construção, é uma lente, uma alavanca. As nossas sociedades investem tanto na construção de competências na ordem da palavra (e pensemos como a escolarização está ao serviço da capacitação dos indiví¬duos em ordem a um funcionamento eficaz com a palavra) e tão pouco nas competências que operam com o silêncio. Somos analfabetos do silêncio e esse é um dos motivos porque não sabemos viver na paz. O silêncio é um traço de união mais frequente do que se imagina, e mais fecundo do que se julga. O silêncio tem tudo para se tornar um saber partilhado sobre o essencial, sobre o que nos une, sobre o que pode alicerçar, para cada um enquanto indiví¬duo e para todos enquanto comunidade, os modos possí¬veis de nos reinventarmos. Mas para isso precisamos de uma iniciação ao silêncio, que é o mesmo que dizer uma iniciação à arte de escutar. Na sociedade da comunicação há um défice de escuta. Numa cultura de avalanche como a nossa, a verdadeira escuta só pode configurar-se como uma re-significação do silêncio, um recuo crí¬tico perante o frenesim das palavras e das mensagens que a todo o minuto pretendem aprisionar-nos. A arte da escuta é, por isso, um exercí¬cio de resistência. Ela estabelece uma descontinuidade em relação ao real aparente, à sucessão ociosa do discurso, à enxurrada que a telenovelização do quotidiano (seja ele polí¬tico, económico ou cultural) comporta. A escuta constitui uma cesura, um corte simbólico, uma deslocação. Pense-se em como o silêncio dá a ver o património de uma amizade. E a pergunta é: como percebemos que dois desconhecidos são amigos? Pela forma como conversam? Certamente. Pelo modo como se riem? Claro que sim. Mas ainda mais porque nitidamente acolhem o silêncio um do outro. Entre conhecidos o silêncio é um embaraço, sentimos imediatamente a necessidade de fazer conversa, de ocupar o espaço em branco da comunicação. Com os amigos o silêncio nada tem de embaraçoso. O silêncio é um vínculo que une.

os benefícios do cansaço

DSC_4521 (1024x681)José Tolentino Mendonça na E do Expresso

(…) Esta nova forma de existência coloca-nos perante um animal laborans que é constrangido a explorar-se a si mesmo, mesmo quando não tem uma evidente constrição externa, tornando-se ao mesmo tempo vítima e carcereiro, explorado e explorador. O que o faz sofrer não é, por isso, que alguma coisa não seja possível de obter ou alcançar, mas que ele não seja capaz de abraçar, a toda a linha, o regime epocal novo que garante que nada é impossível. Como consequência, as patologias da sociedade de prestadores já não são do tipo bactérico ou viral, mas de tipo neuronal. Passou-se a viver num estado depressivo latente gerado, em grande medida, por esta sensação difusa de não estar a responder a tudo, a participar em tudo, a usufruir de todas as possibilidades acenadas. A depressão, o défice de atenção, a hiperatividade, o burnout, os distúrbios boderline de personalidade estão alinhados com este excesso de positividade em que infatigavelmente mergulhamos. Uma via de saída é, mais do que nunca, reaprender a fazer um bom uso do cansaço. vivemos um tempo que ignora o valor da interrupção, da pausa, do espaço intermédio ou do intervalo. (…)

O Cristianismo está a morrer?

José Tolentino Mendonça, Expresso

Um artigo de Guido Ceronetti nas páginas do “La Repubblica” reacendeu a questão, pelo menos entre alguma intelligentzia católica: “O cristianismo está a morrer?” Ceronetti não tem dúvidas e vê os seus sinais por toda a parte, mesmo se a “anestesia total” e mque vivemos nos traga alheados do alcance desta “enorme amputação”. Segundo ele, não está longe o dia em que se verifique na Praça de São Pedro o que Ingmar Bergman filmou em “Luz de Inverno”, onde o pastor Ericsson aparece a celebrar missa numa capela completamente esvaziada de fiéis. O cenário, o rito, o oficiante estarão, como ali, presentes: as multidões é que já não.

Qual o motivo? Guido Ceronetti não hesita em relembrar um sibilino aforisma de Emil Cioran: “O cristianismo morreu quando deixou de ser monstruoso.” Que o cristianismo tenha perdido a sua monstruosidade é, para Ceronetti, um facto de certa maneira inevitável, pois todos os monoteísmos caminham para a sua falência (e ele aproveita a oportunidade para prever, por exemplo, depois da morte do cristianismo, a agonia próxima do Islão). A questão não é, portanto, essa, mas sim o que a tornou tão premente nos tempos que correm. O que é que acelerou a morte do cristianismo? E a resposta que ele dá, sendo extraordinariamente sedutora para os que cultivam a religião como a guloseima requintada que acompanha o chá, e da qual Marcel Proust falava com a maestria que sabemos, não deixa de ser de um simplismo inusitado em termos de leitura da realidade. Para ele, o catolicismo deixou de ser monstruoso (leia-se, impressivo, loquaz, divino) quando os papas colocaram de lado os tronos gestatórios e a retórica visual do poder; quando as liturgias adotaram os vernáculos; quando, com o Concílio Caticano II, prevaleceu uma visão pastoral e dialogante da relação de Igreja com o mundo; ou, mais recentemente, quando o papa Bento XVI decidiu resignar.

É curioso constatar que, para os profetas da morte do cristianismo, este seja no fundo uma realidade medieval, inseparável do poder do Estado e, inclusive, dominando-o, constituindo o padrão único de conduta e de aspirações de uma sociedade tendencialmente homogénea, e capaz de impor-se a toda a linha: individual e coletiva, cultual e cultural, ética ou estética. Esquecem-se que o cristianismo nasceu de uma dúzia de discípulos hesitantes à volta de um pregador perseguido; que a relação com as multidões e com os aparelhos do poder foi tudo menos linear e pacífica; e que a primeira, e mais estrondosa, catedral cristã foi (e continua a ser) a memória de um sepulcro vazio, no meio de um jardim. O debate a fazer em torno do cristianismo não é certamente o da sua agonia, mas o da recomposição em que ele hoje vive. É precisamente por estar vivo que o cristianismo se reconfigura, desloca os seus âmbitos, procura e tansmite outra perceção de si. O estremecimento inegável que atinge a esfera do religioso explica-se não tanto pela expressão de Ceronetti, “monoteísmos em agonia” quanto por aquela outra, proposta pela socióloga Danièle Hervieu-Léger, a de “religiões em movimento”.

Pois, o que será o cristianismo do futuro? O teólogo Karl Rahner escreveu, como uma espécie de testamento, três coisas que fazem pensar: 1) o cristianismo voltará a ser formado por pequenas comunidades, mas vivendo com maior entusiasmo e simplicidade a sua fé; 2) a adesão à crença não acontecerá por pressão sociológica, mas por um caminho pessoal, livre, maturado e esclarecido; 3) o cristianismo perderá relevância politica e estratégica, mas reganhará espaço para afirmar o santo poder do coração.