LIBERDADE E VERDADE

bento-16Bento XVI, Fé Verdade Tolerância

A questão

Na consciência da humanidade de hoje a liberdade aparece como o bem máximo ao qual todos os outros bens estão subordinados. A jurisprudência dá à liberdade da arte, à liberdade de expressão de opinião, a total precedência sobre qualquer outro valor ético. Valores que aparecem em concorrência com a liberdade, que possam tornar necessária a sua limitação, são tidos como grilhões, como “tabus”, relíquias de proibições e medos arcaicos. A ação politica tem de ser credenciada pelo seu fomento da liberdade. Também a religião só se pode afirmar enquanto se apresente como força libertadora para o homem e para a humanidade. Na escala de valores que importam ao homem e à sua vida humanamente digna, a liberdade é o valor básico e o fundamento absoluto do direito humano. Perante ela, o conceito da verdade é visto sobretudo com suspeita. Recordamos quantas opiniões e sistemas reclamaram já para si o conceito da verdade; quantas vezes não serviu a afirmação da verdade como meio para reprimir a liberdade. Acresce o cepticismo, alimentado pelas ciências da natureza, contra tudo o que não se pode esclarecer ou provar com exatidão; tudo isto parece ser apenas avaliação subjetiva, que não pode ser de obrigatoriedade geral. A posição moderna na questão da verdade tem a sua expressão mais categórica na palavra de Pilatos: O que é a verdade? Quem declara estar ao serviço da verdade com a sua vida e com a sua palavra e ação, deve contar, no mínimo, com a classificação de visionário ou fanático. Pois “para além, a nossa vista está obstruída”, como diz Goethe no seu Fausto, e assim caracteriza o sentir de todos nós. Sem dúvida, perante uma “paixão da verdade” que se apresente com demasiada segurança, há razões que cheguem para perguntar com cautela: O que é a verdade? Mas há igualmente outras tantas razões para perguntar. O que é a liberdade? Que queremos propriamente dizer, quando louvamos a liberdade e quando a colocamos no mais alto grau a nossa escala de valores? Creio que o conteúdo geralmente associado à exigência da liberdade foi bastante bem interpretado pelas palavras com que Karl Marx exprimiu uma vez o seu sonho de liberdade. A situação da futura sociedade comunista cai tornar possível “fazer isto hoje, amanhã aquilo, caçar de manhã, pescar à tarde, fazer criação de gado à tardinha, tecer críticas depois do jantar, conforme me der vontade…” É exatamente nesse sentido que o sentimento geral irrefletido entende liberdade – como direito e a possibilidade de fazer tudo o que nos parece, e não ter de fazer nada que não queiramos. Por outras palavras, a liberdade significaria que o nosso querer é a única lei das nossas ações, e que a vontade pode querer tudo e ter a possibilidade de realizar tudo o que quer. Aqui levantam-se, porém, novas questões: até que ponto a vontade é livre? E quem medida é razoável? Será uma vontade irrazoável uma vontade livre? É realmente liberdade uma liberdade irracional? É realmente um bem? Não deverá a definição da liberdade, a partir do poder querer e do poder fazer o que se quer, ser completada pela sua referência à razão, à totalidade do homem, para que não resulte em tirania do irracional? Não pertencerá à mútua implicação da razão e da vontade a procura também da comum razão de todos os homens, conseguindo assim a recíproca compatibilidade das liberdades? É evidente que na questão da razoabilidade da vontade, da sua ligação à razão, está latente a questão da verdade.

Não são apenas reflexões abstratas filosóficas que nos obrigam a fazer perguntas, mas a nossa muito concreta situação social, onde, é certo, persiste inquebrantável a exigência da liberdade, mas em que aparecem, no entanto, dúvidas sempre mais dramáticas quanto aos movimentos de libertação e aos sistemas de liberdade. Não esqueçamos que o marxismo surgiu como a única grande força política do sec. XX a reclamar para si a criação do novo mundo da liberdade e do homem liberto. Foi exatamente para a liberdade e para a criação do mundo novo, que fez com que aderissem a ele muitos dos espírtos mais arrojados da nossa época: enfim, até apareceu como a força que podia mudar a doutrina cristã da redenção numa prática de liberdade realista – como força que podia instaurar o reino de Deus à maneira do verdadeiro reino do homem. O desabar do socialismo real nos Estados da Europa de Leste não removeu tais esperanças por completo; aqui e além elas persistem silenciosamente e procuram novas formas. À derrocada política e económica não correspondeu uma superação espiritual efetiva, e por isso a questão levantada pelo marxismo ainda não se encontra solucionada. É, todavia, óbvio que o seu sistema não funcionou como prometido. Que esse pretenso movimento de libertação, a par do nacional-socialismo, foi o maior sistema de escravatura na história dos tempos modernos, já ninguém o pode negar. A dimensão da cínica destruição do homem e do mundo é muitas vezes coberta por um manto envergonhado de silêncio, mas contestá-la já não é possível a ninguém.

A superioridade moral do sistema liberal na política e na economia, que deste modo se evidenciou, não provoca, no entanto, nenhum entusiasmo. É demasiado grande o número de pessoas que não partilham dos frutos desta liberdade, ou mesmo perdem qualquer liberdade: o desemprego torna-se novamente um fenómeno de massas; o sentimento de não ser necessário, da utilidade, atormenta os homens não menos que a pobreza material. A exploração sem escrúpulos pratica-se cada vez em maior escala, o crime organizado faz uso das oportunidades do mundo livre, e no meio de tudo vagueia o fantasma do sem-sentido. O filósofo polaco Andrzej Szczypiorski descreveu cruamente nas Semanas Académicas de Salzburgo, em 1995, o dilema da liberdade que se fez sentir depois da queda do muro; vale a pena ouvir mais em pormenor:

“Não existe qualquer dúvida de que o capitalismo trouxe grandes progressos. Também não há qualquer dúvida de que não satisfez expectativas. No capitalismo ouve-se sempre o grito das grandes massas cujas ambições não foram atendidas… O naufrágio da concepção soviética do mundo e do homem na prática politica e social foi uma libertação da servidão para milhões de vidas humanas. Todavia, no pensamento europeu, à luz da tradição dos últimos duzentos anos, a revolução anticomunista é também o fim das ilusões iluministas, a destruição portanto da concepção intelectual em que se baseava o desenvolvimento desta Europa… Apareceu uma singular época de uniformização do desenvolvimento, de ninguém conhecida até aqui. E de repente tornou-se claro – porventura a primeira vez na história – que havia apenas uma única receita, um único caminho, um único modelo, uma única maneira de dar forma ao futuro. E os homens perderam a fé no sentido das transformações em curso. Também perderam a esperança de que o mundo possa ser mudado, que valha a pena mudar o mundo… A falta hoje de alternativa faz, porém, que os homens levantem questões completamente novas. Primeira dúvida: talvez o Ocidente não tivesse razão. Segunda dúvida: se o Ocidente não tinha razão, quem tinha então razão? Como na Europa ninguém duvida que o comunismo não tinha razão, coloca-se a terceira pergunta: talvez não exista o que tenha razão? Mas, se assim é, então todo o tesouro de pensamento do Iluminismo não tem qualquer valor… Talvez que a velha máquina de vapor do Iluminismo, após duzentos anos de trabalho útil e ininterrupto, tenha parado diante dos nossos olhos e com a nossa ajuda. E o vapor escapa-se apenas para o ar. Se, de facto, é assim, então são negras as perspetivas.”

Por mais questões que se possam levantar contra esta exposição, não podemos, contudo, afastar o realismo e a lógica das questões fundamentais de Szczypiorski; e, ao mesmo tempo, o diagnóstico é de tal maneira deprimente, que não podemos parar aqui. Não tinha ninguém razão? Acaso não haverá nada em que se tenha razão? Os fundamentos do Iluminismo europeu, em que se apoia o nosso caminho de liberdade, serão falsos, ou pelo menos deficientes? Não é a pergunta “O que é a liberdade?”, afinal, não menos complicada que a pergunta “O que é a verdade?”. O dilema do Iluminismo, em que inegavelmente caímos, força-nos a pôr as duas perguntas de maneira nova e, de maneira nova, a procurar a sua mútua implicação. Para avançar é necessário que pensemos de novo o ponto de origem do percurso moderno da liberdade; a correção de percurso – de que claramente precisamos para que, na escuridão das perspetivas, se tornem visíveis novos caminhos – tem de se reportar aos inícios para aí tornar o seu ponto de partida. Naturalmente, só posso fazer aqui a tentativa de lançar alguma luz sobre a grandeza e os perigos deste caminho dos Tempos Modernos, para ajudar a uma nova tomada de consciência.